quinta-feira, 13 de outubro de 2016

Gociante Patissa e M’Bangula Katúmua: Dois projectos literários oriundos de Benguela




Isaquiel Cori


Os escritores Gociante Patissa e M’Bangula Katúmua partilham, ao menos, três coisas: são naturais de Benguela, nasceram no período pós-colonial e a existência de ambos decorreu em grande parte nos dias e anos tumultuosos da guerra de má memória. Os livros “Fátussengóla, o homem do rádio que espalhava dúvidas”, do primeiro, e “Humanus”, do segundo, aparecem juntos na colecção Novos Autores, editada pelo Grecima, a par de nove de outros tantos autores.
“Fátussengóla, o homem do rádio que espalhava dúvidas” é uma colectânea de 14 contos ambientados em localidades diversas da província de Benguela, do interior ao litoral, que resgatam da memória da infância e adolescência do autor toda uma galeria de personagens e situações marcantes, seja pelo lado do insólito ou dos afectos.
Gociante Patissa na verdade não é um autor de primeira viagem. Publicou em 2008 “Consulado do vazio”, poesia, em 2010 “A última ouvinte”, contos, em 2013 “Não tem pernas o tempo”, novela, e em 2014 “Guardanapo de papel”, poesia.
                                                             

Trata-se de um autor empenhado em apurar a sua própria voz, notando-se na sua escrita a fuga à facilidade e o evitar dos trilhos há muito batidos. Atente-se ao modo de construção deste parágrafo do conto “Minha mãe é hortelã”, em que além das imagens profundamente originais o leitor pode à vontade inverter a ordem com que as frases se apresentam sem afectar, contudo, a coerência do discurso narrativo:
“Ele, que não era de andar por aí a distribuir socos e pontapés, abraçou tal via. Era homem já quase feito, de caroço no mamilo e uma barba que não se lhe podia confundir com simples pêlos de calor do funji. Mesmo a catinga do sovaco dele anunciava os ingredientes prontos para dar bebés. Quem lhe provasse o sabor da surra já não voltava a gozar.”
Retenha-se esta outra preciosidade, a abertura do conto “No reino dos rascunhos”: “O velho estava velho, muito velho, logo doente. Para ser confirmado inerte, só lhe faltava parar o fôlego. Vendo bem, aquilo até podia ter outro nome, respirar é que não era.”
Como não há bela sem senão, a escrita de Patissa às vezes denota um excessivo “cuidado” em conformar-se às normas, às regras estabelecidas do “bem falar português”, sacrificando a emergência daquilo que podia ser considerada a sua própria linguagem, escorada nos interstícios mais íntimos do seu substracto cultural benguelense. “Havia um cão no quintal em que em tempos fui morar…” in “A estrela que não voltei a ter”. “… só não tendo o dono do alheio sucedido graças ao gradeamento interior aplicado poucas semanas antes da investida”, in “Gestão de vazios”.
Patissa, note-se, neste mesmo livro demonstra um grande domínio da sócio-culturalidade umbundo, fazendo recurso a palavras e provérbios da região.
Autor de imenso potencial criativo, Patissa tem o dom do olhar, da captação das singularidades aparentemente invisíveis e insuspeitas das situações e das personalidades.
O seu conto mais significativo é o que dá título ao livro: “Fátussengóla, o homem do rádio que espalhava dúvidas”. É uma narrativa digna de figurar na mais selecta das antologias de literatura angolana. É a biografia de uma personagem tão singular na ficção como na vida. (Aliás, “… a profissão de biografista independente faliu, como hoje vemos”). Fátussengóla, de nome verdadeiro Virgulino Kaendangongo, “que na língua umbundo significa eterno sofredor”, é um personagem da estirpe de um Mestre Tamoda de Uanhenga Xitu, com o qual partilha o estatuto de orador, as poses e o gosto pela mais gratuita verborreia. Fátussengóla ganha imediatamente a simpatia e a compaixão do leitor pela forma soberba como o autor o apresenta, seja descritivamente, seja pelo desdobrar dos diálogos. E o final da estória encerra tanta preciosidade como o tesouro que nele é revelado.

Em causa o ser humano

Humanus, de Mbangula Katúmua, é um conjunto de cinquenta poemas sóbrios, reflexivos, escritos na forma de sonetos, essa maneira tão antiga e clássica de poemar (duas quadras seguidas de dois tercetos). E Katúmua vai tão longe no seu exercício de preciosismo formal que todos os seus poemas, rigorosamente, são rimados.
“Das velhas profecias que nos liam outrora / Agora veio um velho cancioneiro hegeliano / Uma espécie de novo cardápio do contra / Que encerra teorias de combate miliciano // O inimigo agora é outro / São os potes de luz / O nosso mastro / É a nossa própria voz // Eis que vos apelo / Gritemos bem alto / Até que nos solte o pêlo // Sobre estas laudas ninguém dança / Nem mesmo no dia em que comemorarmos / A nossa morte sobre a ponta de uma lança”, in “15”.
Os poemas de “Humanus” não devem ser lidos uma única vez. Nem, necessariamente, na ordem proposta pelo autor. A uma primeira leitura o formalismo preciosista e até mesmo academicista dos poemas ressoa a algo decadente, perfeitamente démodé. Mas tão logo nos concentramos mais na leitura damo-nos conta que, afinal, a fórmula rígida adoptada pelo autor contém autênticos vulcões de emoções e sentimentos a respeito do mundo e da vida.
                                                                 

“A noite não chega a tempo / De contar os sonhos das gentes / Enquanto isso, ouvem-se vozes do topo / Para anestesiar os fétidos corpos delirantes // Vozes cansadas, sinfonias de morte / Ruas estreitas, passos apressados / Na paisagem agreste / Sonhos condenados // Na desnuda avenida daqui / Que ferozmente colapsa / Como os discursos do Maquis // Mas, quem ouviu não esqueceu / Os caminhos, a dor que perpassa / As entranhas da pátria, e o dia que nasceu”, in “28”.
O sujeito poético em vários poemas de “Humanus” parece desapegado da vida, situando-se numa colina qualquer a partir da qual observa a cena humana. E se fala de coisas que já viveu, recorda outras que poderia ter vivido. No limbo entre o sonho e a realidade, entre o celeste e o terrestre, ele confessa-se: “Suspendo-me nos píncaros dos sonhos / Donde me chega homofóbica melodia / E vejo no meu irmão um marciano”.
Ao contrário do seu coetâneo Gociante Patissa, em que as marcas da sua “benguelensidade” estão em todos os quadrantes dos seus textos (na geografia, na linguagem e na filosofia proverbial e até na temporalidade), o poeta de “Humanus” é um ser dilacerado na sua subjectividade que se dirige ao homem comum, desarvorado do seu lugar e até do seu tempo.
“Ainda que farto de ti, ó ser distante / És o caminho que busco e que sigo / Longe da consumição do inimigo / Contemplo de perto luz reluzente // Nos pés fartos de caminhar / Tenho feridas e bolhas de água / Para de todos saciar essa inócua / Sede de infinito clarear // Caminhantes de uma terra longínqua / Somos todos o húmus desta terra / De ventre esviscerado // Ninguém sabe se quando enterra / Uma sôfrega lágrima inócua / Constrói um destino obliterado”.

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M’Bangula Katúmua (pseudónimo literário de Martinho Bangula Katúmua) nasceu em Benguela em 1985. É licenciado e mestre em sociologia. Actualmente é secretário provincial da Brigada Jovem de Literatura de Benguela e docente universitário.
Daniel Gociante Patissa nasceu na comuna de Monte Belo, município do Bocoio, provincia de Benguela, em Dezembro de 1978. É licenciado em linguística, especialidade de inglês, pela Universidade Katiavala Bwila.







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