Isaquiel Cori
Os
escritores Gociante Patissa e M’Bangula Katúmua partilham, ao menos, três coisas:
são naturais de Benguela, nasceram no período pós-colonial e a existência de
ambos decorreu em grande parte nos dias e anos tumultuosos da guerra de má
memória. Os livros “Fátussengóla, o homem do rádio que espalhava dúvidas”, do
primeiro, e “Humanus”, do segundo, aparecem juntos na colecção Novos Autores,
editada pelo Grecima, a par de nove de outros tantos autores.
“Fátussengóla,
o homem do rádio que espalhava dúvidas” é uma colectânea de 14 contos
ambientados em localidades diversas da província de Benguela, do interior ao
litoral, que resgatam da memória da infância e adolescência do autor toda uma
galeria de personagens e situações marcantes, seja pelo lado do insólito ou dos
afectos.
Gociante
Patissa na verdade não é um autor de primeira viagem. Publicou em 2008
“Consulado do vazio”, poesia, em 2010 “A última ouvinte”, contos, em 2013 “Não
tem pernas o tempo”, novela, e em 2014 “Guardanapo de papel”, poesia.
Trata-se
de um autor empenhado em apurar a sua própria voz, notando-se na sua escrita a
fuga à facilidade e o evitar dos trilhos há muito batidos. Atente-se ao modo de
construção deste parágrafo do conto “Minha mãe é hortelã”, em que além das
imagens profundamente originais o leitor pode à vontade inverter a ordem com
que as frases se apresentam sem afectar, contudo, a coerência do discurso
narrativo:
“Ele,
que não era de andar por aí a distribuir socos e pontapés, abraçou tal via. Era
homem já quase feito, de caroço no mamilo e uma barba que não se lhe podia
confundir com simples pêlos de calor do funji. Mesmo a catinga do sovaco dele
anunciava os ingredientes prontos para dar bebés. Quem lhe provasse o sabor da
surra já não voltava a gozar.”
Retenha-se
esta outra preciosidade, a abertura do conto “No reino dos rascunhos”: “O velho
estava velho, muito velho, logo doente. Para ser confirmado inerte, só lhe
faltava parar o fôlego. Vendo bem, aquilo até podia ter outro nome, respirar é
que não era.”
Como
não há bela sem senão, a escrita de Patissa às vezes denota um excessivo
“cuidado” em conformar-se às normas, às regras estabelecidas do “bem falar
português”, sacrificando a emergência daquilo que podia ser considerada a sua
própria linguagem, escorada nos interstícios mais íntimos do seu substracto
cultural benguelense. “Havia um cão no quintal em que em tempos fui morar…” in “A estrela que não voltei a ter”.
“… só não tendo o dono do alheio sucedido graças ao gradeamento interior
aplicado poucas semanas antes da investida”, in “Gestão de vazios”.
Patissa,
note-se, neste mesmo livro demonstra um grande domínio da sócio-culturalidade
umbundo, fazendo recurso a palavras e provérbios da região.
Autor
de imenso potencial criativo, Patissa tem o dom do olhar, da captação das
singularidades aparentemente invisíveis e insuspeitas das situações e das
personalidades.
O
seu conto mais significativo é o que dá título ao livro: “Fátussengóla, o homem
do rádio que espalhava dúvidas”. É uma narrativa digna de figurar na mais
selecta das antologias de literatura angolana. É a biografia de uma personagem
tão singular na ficção como na vida. (Aliás, “… a profissão de biografista
independente faliu, como hoje vemos”). Fátussengóla, de nome verdadeiro
Virgulino Kaendangongo, “que na língua umbundo significa eterno sofredor”, é um
personagem da estirpe de um Mestre Tamoda de Uanhenga Xitu, com o qual partilha
o estatuto de orador, as poses e o gosto pela mais gratuita verborreia.
Fátussengóla ganha imediatamente a simpatia e a compaixão do leitor pela forma
soberba como o autor o apresenta, seja descritivamente, seja pelo desdobrar dos
diálogos. E o final da estória encerra tanta preciosidade como o tesouro que
nele é revelado.
Em causa o ser
humano
Humanus,
de Mbangula Katúmua, é um conjunto de cinquenta poemas sóbrios, reflexivos,
escritos na forma de sonetos, essa maneira tão antiga e clássica de poemar (duas
quadras seguidas de dois tercetos). E Katúmua vai tão longe no seu exercício de
preciosismo formal que todos os seus poemas, rigorosamente, são rimados.
“Das
velhas profecias que nos liam outrora / Agora veio um velho cancioneiro
hegeliano / Uma espécie de novo cardápio do contra / Que encerra teorias de
combate miliciano // O inimigo agora é outro / São os potes de luz / O nosso
mastro / É a nossa própria voz // Eis que vos apelo / Gritemos bem alto / Até
que nos solte o pêlo // Sobre estas laudas ninguém dança / Nem mesmo no dia em
que comemorarmos / A nossa morte sobre a ponta de uma lança”, in “15”.
Os
poemas de “Humanus” não devem ser lidos uma única vez. Nem, necessariamente, na
ordem proposta pelo autor. A uma primeira leitura o formalismo preciosista e
até mesmo academicista dos poemas ressoa a algo decadente, perfeitamente
démodé. Mas tão logo nos concentramos mais na leitura damo-nos conta que,
afinal, a fórmula rígida adoptada pelo autor contém autênticos vulcões de
emoções e sentimentos a respeito do mundo e da vida.
“A
noite não chega a tempo / De contar os sonhos das gentes / Enquanto isso,
ouvem-se vozes do topo / Para anestesiar os fétidos corpos delirantes // Vozes
cansadas, sinfonias de morte / Ruas estreitas, passos apressados / Na paisagem
agreste / Sonhos condenados // Na desnuda avenida daqui / Que ferozmente
colapsa / Como os discursos do Maquis // Mas, quem ouviu não esqueceu / Os
caminhos, a dor que perpassa / As entranhas da pátria, e o dia que nasceu”, in
“28”.
O
sujeito poético em vários poemas de “Humanus” parece desapegado da vida,
situando-se numa colina qualquer a partir da qual observa a cena humana. E se
fala de coisas que já viveu, recorda outras que poderia ter vivido. No limbo
entre o sonho e a realidade, entre o celeste e o terrestre, ele confessa-se:
“Suspendo-me nos píncaros dos sonhos / Donde me chega homofóbica melodia / E
vejo no meu irmão um marciano”.
Ao
contrário do seu coetâneo Gociante Patissa, em que as marcas da sua
“benguelensidade” estão em todos os quadrantes dos seus textos (na geografia,
na linguagem e na filosofia proverbial e até na temporalidade), o poeta de “Humanus”
é um ser dilacerado na sua subjectividade que se dirige ao homem comum,
desarvorado do seu lugar e até do seu tempo.
“Ainda
que farto de ti, ó ser distante / És o caminho que busco e que sigo / Longe da
consumição do inimigo / Contemplo de perto luz reluzente // Nos pés fartos de
caminhar / Tenho feridas e bolhas de água / Para de todos saciar essa inócua /
Sede de infinito clarear // Caminhantes de uma terra longínqua / Somos todos o
húmus desta terra / De ventre esviscerado // Ninguém sabe se quando enterra /
Uma sôfrega lágrima inócua / Constrói um destino obliterado”.
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M’Bangula
Katúmua
(pseudónimo literário de Martinho Bangula Katúmua) nasceu em Benguela em 1985.
É licenciado e mestre em sociologia. Actualmente é secretário provincial da
Brigada Jovem de Literatura de Benguela e docente universitário.
Daniel
Gociante Patissa nasceu na comuna de
Monte Belo, município do Bocoio, provincia de Benguela, em Dezembro de 1978. É
licenciado em linguística, especialidade de inglês, pela Universidade Katiavala
Bwila.
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