FORTUNA CRÍTICA DO ROMANCE “DIAS DA NOSSA VIDA”, DE ISAQUIEL
CORI (3)
“OBRA CULTURALMENTE
RELEVANTE
E SOCIALMENTE
INCÓMODA”
Por: Gociante
Patissa
O
título é sóbrio, poético e vai de encontro ao fio condutor da narrativa, que é
na verdade uma recriação de um passado muito recente, tão recente que se
confunde com o presente em termos de contexto sociopolítico do país chamado
Angola sob governação do MPLA. DIAS DA NOSSA VIDA remete desde logo à ideia de enfrentar momentos
decisivos, passíveis de alterar o rumo, para o bem ou para o mal.
O
tema é actual, o que em certa medida parece ser reflexo do momento actual de
esperança e uma relativamente maior abertura no espartilho da auto-censura. A
construção da narrativa em DIAS DA NOSSA VIDA, quanto a mim sob a
premissa arriscada do realismo social, resulta numa obra esteticamente bem
posicionada, culturalmente relevante e socialmente incómoda. É seguramente um
contributo para se escrutinarem os bastidores –
para não dizer submundo – da tensão entre os movimentos revolucionários
pós-2002 e o regime contestado, aqui caricaturado no personagem Reinaldo, dos
Serviços de Inteligência da República (SIR) com flagrantes indicadores de
subversão da democracia, onde a “causa” dá lugar às lógicas de mercado e a
coerência ao sofisma.
O
narrador é um observador profundo, instigador à reflexão, ao mesmo tempo
destilando um humor fino e pitadas de sarcasmo. Fugindo do panfletário, que até
venderia muito, nota-se uma maturidade do narrador. Ao mesmo tempo que denuncia
a degeneração dos serviços de inteligência que, no lugar de defender a nação,
defendem o regime, dá-nos uma perspectiva humana do ser humano, trocadilho
propositado, na medida em que o leitor alcança os sentimentos e o valor da
família no coração de pessoas com (excesso) de poder. Mostra também a pressão
social em torno dos rostos dos “revus”, suas virtudes e defeitos.
Quanto
à linguagem, temos um narrador cativante e profundo na sua aparente
simplicidade. A leitura é dinâmica, com orações curtas, como que em fala de
rádio. Embalando na leitura, experimenta-se um sincronizar sensorial e passamos
a viver a trama como se nos entrasse pelos ouvidos na voz de um prendado
locutor. É a veia jornalística de Isaquiel Cori que lateja. Aliás, diria mesmo
que o autor se auto-denuncia na janela psicológica do personagem central quando
diz que… “Desenvolvi um
sentido visual para as palavras de tal modo que mais do que as ouvir eu as via
a ganhar forma nos lábios dos interlocutores e a esvoaçar no ar como bolhas de
sabão, antes de desaparecerem do horizonte do meu olhar ou captadas pelos meus
ouvidos.”
O
aspecto negativo a apontar, fora as raríssimas gralhas, reside na ponta solta,
a menos que haja planos futuros de continuidade. Parece inverosímil que uma
criança de oito anos soubesse já que o pai e demais membros da família são
“bufos”. Pode ter-me escapado algo mas creio que seria necessário dar resposta
à pergunta: quem “instrumentalizou” a criança? A dado momento intuí que fora o
tio Manel Fidacaixa. Não ficou claro. Então se o personagem Reinaldo investiu perícia
para escrutinar a fonte, chegando mesmo a enviar a esposa a Luanda, não faria
sentido revelar “a garganta funda” que despertara de maneira tão explícita o
menor para o legado familiar de bufo?
Com
os melhores cumprimentos de Benguela!
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