Isaquiel Cori
A brisa, bem
perceptível no assobiar característico e no balançar da folhagem das árvores, corria
livremente pelas ruas quase desertas. Um ou outro humano circulava,
rigorosamente com roupas a cobrir o corpo inteiro e máscara sobre a boca e o
nariz, a que alguns ainda juntavam uma viseira de plástico envidraçado. Uns
tantos quadrúpedes sem dono - cães e gatos – habitavam os cantos escuros e
quando por algum motivo se punham a correr, na claridade da lua, a sombra em movimento
duplicava-lhes o tamanho. As ruas estavam quase vazias mas os acontecimentos
dos últimos meses faziam pressentir uma brutal, horrível e mortal presença
microscópica: o novo coronovírus, agora chamado SARS-CoV-2, o vector da
covid-19, doença que acuava os seres humanos nas suas residências. A vida
humana parecia suspensa. Reinava a dúvida, uma total ausência de certeza que
ressoava no ar e nas consciências aprisionadas.
Será desta que a hegemonia humana na terra se vai desmoronar? E há-de
ser um reles ser microscópico a impor uma nova ordem natural, uma nova
hierarquia da vida na terra, com os seres humanos debilitados, escravizados,
mortos?
Os mosquitos esvoaçavam
e zumbiam de contentes, aliados naturais que aparentavam ser do novo
coronavírus e da ordem mundial
emergente. Toda a sorte de bactérias – cocos, bacilos e espirilos – bem como os
vírus antigos, dos humanos conhecidos ou desconhecidos, igualmente, pareciam
saudar o eclodir de um mundo com humanos fracos.
Num dado ponto
pouco iluminado da rua ouvem-se gritos. É um jovem, sem camisa, o dorso
brilhante de suor e da luz que vinha de uma lâmpada pendurada num fio
invisível. Dois homens vestidos a rigor, como mandam as ordens da quarentena,
tentavam segurá-lo, imobilizá-lo, dominá-lo. Estava difícil. O jovem continuava
a debater-se. E a gritar.
“Não estou
bêbado. Me dá o meu kumbu, o meu kumbu. Eram
2 mil”.
A noite, como
dito acima, é luarenta. A paisagem urbana é típica de uma foto antiga a preto e
branco. Os quadrúpedes em fuga são perseguidos pelos fantasmas de si mesmos.
“Deus vai te
condenar, Deus vai te condenar. Você vai na cidade dos malucos, na cidade dos malucos!”,
o jovem de dorso nu continuava insubmisso, as suas falas desconexas soavam como
profecias e, por isso, reforçavam o medo que estava no ar. O ambiente aí não
era bom, pelo que o jovem ficou para trás, ele, os seus gritos, as suas falas obscuras
e os homens que o tentavam conter.
Na memória deste
que vos conta e que no tempo daquelas ruas escuras e vazias circulou, veio a
lembrança fugidia de um mundo vibrante de além mar e de além lá: europas, américas, ásias, oceanias... atormentados
pela covid-19, e agora esta África aqui... A espécie humana definha e nem se
escuta o dobrar dos sinos. A horda microscópica, invisível, se levanta e espeta
a sua adaga inefável no pulmão humano, fibrando-o e cortando os aéreos canais
vitais. E a voz inaudível do Rei SARS-CoV-2 grita bem lá no fundo da humana garganta:
“Quem é afinal mais poderoso, nós os micro seres, ou vós os auto-proclamados
senhores do universo? Reconhecereis, por fim, que a inteligência também reside
no infinitamente pequeno? E que a nossa presença no universo não tem medida e
se expande por todo o espaço vazio? Pois é. Alargai o vosso entendimento, não
estais sozinhos no mundo. Durante milhares de anos coexistimos convosco,
observámo-vos, toleramos a vossa petulância, assistimos à vossa crueldade para
com os outros seres vivos e para convosco mesmos. Certamente arranjareis uma
forma eficaz de nos conter, sabemos dos esforços que tendes feito para parar a
nossa progressão. Mas esta é só uma vaga. Outras e outras se seguirão. E nós
não estamos apenas na Terra. Em breve vós ireis explorar outros planetas,
outros mundos, a começar por Marte. Estirpes de nós, mais violentas, mais
resilientes, mais mortíferas, estão lá e no universo a fora. E sempre que um
humano de lá regressar transportará essas estirpes, que se juntarão a nós para
solucionar então a charada genómica, que irrevogavelmente porá fim à existência
da espécie humana na Terra. E não vos iludais: tal como no restante universo, a
vida na Terra pode seguir o seu curso sem vós, humanos! Aliás, a vida na Terra
durante milhões de anos prosperou sem vós.”
Este que vos
fala, dotado de uma sensibilidade fora do comum, sentiu-se dominado pelo medo,
medo do claro/escuro da rua, medo do céu escuro, medo do silêncio vibrante,
medo dos próprios pensamentos, medo tão visceral que cada um dos passos que
dava exponenciava todos os outros medos que sentia. Esta acumulação de medos
pôs este que vos fala a correr como um míssil, sem saber do que fugia, se do
SARS-CoV-2, se da condição de ser humano...
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