quarta-feira, 14 de outubro de 2020

Fuga impossível

 Isaquiel Cori

 


A brisa, bem perceptível no assobiar característico e no balançar da folhagem das árvores, corria livremente pelas ruas quase desertas. Um ou outro humano circulava, rigorosamente com roupas a cobrir o corpo inteiro e máscara sobre a boca e o nariz, a que alguns ainda juntavam uma viseira de plástico envidraçado. Uns tantos quadrúpedes sem dono - cães e gatos – habitavam os cantos escuros e quando por algum motivo se punham a correr, na claridade da lua, a sombra em movimento duplicava-lhes o tamanho. As ruas estavam quase vazias mas os acontecimentos dos últimos meses faziam pressentir uma brutal, horrível e mortal presença microscópica: o novo coronovírus, agora chamado SARS-CoV-2, o vector da covid-19, doença que acuava os seres humanos nas suas residências. A vida humana parecia suspensa. Reinava a dúvida, uma total ausência de certeza que ressoava no ar e nas consciências aprisionadas.  Será desta que a hegemonia humana na terra se vai desmoronar? E há-de ser um reles ser microscópico a impor uma nova ordem natural, uma nova hierarquia da vida na terra, com os seres humanos debilitados, escravizados, mortos?

Os mosquitos esvoaçavam e zumbiam de contentes, aliados naturais que aparentavam ser do novo coronavírus  e da ordem mundial emergente. Toda a sorte de bactérias – cocos, bacilos e espirilos – bem como os vírus antigos, dos humanos conhecidos ou desconhecidos, igualmente, pareciam saudar o eclodir de um mundo com humanos fracos.

Num dado ponto pouco iluminado da rua ouvem-se gritos. É um jovem, sem camisa, o dorso brilhante de suor e da luz que vinha de uma lâmpada pendurada num fio invisível. Dois homens vestidos a rigor, como mandam as ordens da quarentena, tentavam segurá-lo, imobilizá-lo, dominá-lo. Estava difícil. O jovem continuava a debater-se. E a gritar.

“Não estou bêbado.  Me dá o meu kumbu, o meu kumbu. Eram 2 mil”.

A noite, como dito acima, é luarenta. A paisagem urbana é típica de uma foto antiga a preto e branco. Os quadrúpedes em fuga são perseguidos pelos fantasmas de si mesmos.

“Deus vai te condenar, Deus vai te condenar. Você vai na cidade dos malucos, na cidade dos malucos!”, o jovem de dorso nu continuava insubmisso, as suas falas desconexas soavam como profecias e, por isso, reforçavam o medo que estava no ar. O ambiente aí não era bom, pelo que o jovem ficou para trás, ele, os seus gritos, as suas falas obscuras e os homens que o tentavam conter.  

Na memória deste que vos conta e que no tempo daquelas ruas escuras e vazias circulou, veio a lembrança fugidia de um mundo vibrante de além mar e de além lá:  europas, américas, ásias, oceanias... atormentados pela covid-19, e agora esta África aqui... A espécie humana definha e nem se escuta o dobrar dos sinos. A horda microscópica, invisível, se levanta e espeta a sua adaga inefável no pulmão humano, fibrando-o e cortando os aéreos canais vitais. E a voz inaudível do Rei SARS-CoV-2 grita bem lá no fundo da humana garganta: “Quem é afinal mais poderoso, nós os micro seres, ou vós os auto-proclamados senhores do universo? Reconhecereis, por fim, que a inteligência também reside no infinitamente pequeno? E que a nossa presença no universo não tem medida e se expande por todo o espaço vazio? Pois é. Alargai o vosso entendimento, não estais sozinhos no mundo. Durante milhares de anos coexistimos convosco, observámo-vos, toleramos a vossa petulância, assistimos à vossa crueldade para com os outros seres vivos e para convosco mesmos. Certamente arranjareis uma forma eficaz de nos conter, sabemos dos esforços que tendes feito para parar a nossa progressão. Mas esta é só uma vaga. Outras e outras se seguirão. E nós não estamos apenas na Terra. Em breve vós ireis explorar outros planetas, outros mundos, a começar por Marte. Estirpes de nós, mais violentas, mais resilientes, mais mortíferas, estão lá e no universo a fora. E sempre que um humano de lá regressar transportará essas estirpes, que se juntarão a nós para solucionar então a charada genómica, que irrevogavelmente porá fim à existência da espécie humana na Terra. E não vos iludais: tal como no restante universo, a vida na Terra pode seguir o seu curso sem vós, humanos! Aliás, a vida na Terra durante milhões de anos prosperou sem vós.”

Este que vos fala, dotado de uma sensibilidade fora do comum, sentiu-se dominado pelo medo, medo do claro/escuro da rua, medo do céu escuro, medo do silêncio vibrante, medo dos próprios pensamentos, medo tão visceral que cada um dos passos que dava exponenciava todos os outros medos que sentia. Esta acumulação de medos pôs este que vos fala a correr como um míssil, sem saber do que fugia, se do SARS-CoV-2, se da condição de ser humano...

 

 

 

 

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