quarta-feira, 29 de agosto de 2012

ELEIÇÕES GERAIS EM ANGOLA 2012

Campanha eleitoral de "quase quase"

 
Isaquiel Cori

A campanha para as eleições presidenciais e legislativas de 31 de Agosto, para mim, deixou uma sensação de “quase quase”, de algo incompleto, inacabado. Nesse período, os políticos esgrimem os seus mais profundos argumentos para aliciamento do eleitorado, chegando ao extremar das posições. Em todo o mundo é nas campanhas eleitorais que se revelam os instintos mais básicos dos políticos e em que os seus discursos não escondem ao que vêem e põem mais claramente a nu o seu destino e vocação: a manutenção ou a conquista do poder.
A campanha eleitoral, se não chegou a ser ruim, foi morna. Num previsível crescendo, vieram ao de cima algumas questões que, fora desse período, o bom senso convencionou não abordar, por ferirem a ainda tão frágil reconciliação nacional. A memória da guerra, que vem sendo fixada, num meritório esforço de exorcismo, através de livros de vários autores/actores preocupados em fornecer subsídios aos historiadores, foi lançada na agenda da campanha por várias formações políticas. Eu, que julgava que a guerra, não devendo jamais ser esquecida, transformara-se em mero registo da história e reminiscência tênue na memória de uma ou duas gerações que os tempos acelerados prematuramente envelheceram, fiquei assustado. É que na boca dos políticos o tema da guerra  tem um enorme potencial de deitar por terra o edifício reconciliatório que a nação conseguiu construir ao longo dos anos de paz. Tenho dito aos amigos que têm a paciência de me escutar que a temática da guerra deve ser entregue aos sociólogos, historiadores, antropólogos, psicólogos, filósofos e outros académicos, para a dissecarem da mesma forma como os biólogos matam o seu objecto de estudo para descortinarem o seu modo de funcionamento interno e assim chegarem a verdades mais gerais. Não mencionei os escritores e os poetas porque estes há muito mergulharam no interior da guerra e os seus livros estão aí a  interpelar as nossas consciências e a mostrar a dimensão da loucura colectiva.
Voltando à vaca fria. Ainda não foi desta que a campanha eleitoral serviu para unir os angolanos. Os partidos políticos, apesar de se dizerem interessados no voto de todos os angolanos, na prática mostraram-se fundamentalmente sectários, quase inteiramente voltados para os seus militantes e apoiantes. Por exemplo, os actos políticos de massas, sendo uma exibição da força interna e organizada do partido, ao mesmo tempo constituem um momento de separação entre o “nós” e os “outros”.
Os tempos de antena na televisão e na rádio foram um maçante desfiar de monólogos, de discursos unidireccionais e arrogantes.
De repente, os serviços noticiosos mais nobres da TPA e da RNA, invadidos com notícias redundantes, tornaram-se intragáveis, obrigando os consumidores mais lúcidos a exercerem o direito de mudar de canal. O MPLA, naturalmente, aproveitando o vazio legal, e estando-se no período do “tudo ou nada”, em que em causa está acima de tudo a continuidade no poder,  tirou o maior proveito possível da comunicação social pública. Esse facto traz a tona a necessidade imperiosa de se legislar e regulamentar a respeito de todos os aspectos da campanha eleitoral, ao invés de os deixar à deriva da ética e do bom senso. Traz igualmente à ribalta a questão das relações entre o jornalismo e a política e do quanto entre nós o jornalismo está profundamente inquinado pela política. É ainda sintoma de que o jornalismo angolano hoje ainda não se emancipou para ganhar o estatuto de consciência moral da sociedade e almejar um lugar de respeito na história.
Do lado da UNITA vieram os maiores motivos para calafrios. A bandeira da fraude antecipada, da desconfiança visceral nas instituições, o nacionalismo fundamentalista com alardes racistas, tribalistas e regionalistas, que se julgava superado com o choque cultural e científico da modernidade, revelaram uma UNITA acossada nos seus medos, presa a questões atávicas de identidade.
A CASA-CE, que alguns apontaram como a terceira via, revelou-se uma força política inteiramente tributária do carisma do seu líder, que lhe confere a aparente unidade e capitaliza e canaliza algumas frustrações oriundas do MPLA e da UNITA. Ora, até aonde irá uma formação política essencialmente reactiva, assente em bases tão precárias?
A campanha eleitoral permitiu enxergar melhor aquela franja de jovens que se autodenominam revolucionários e que, há alguns meses, protagonizaram manifestações de rua contra o regime instituído. De tendência confusamente libertária e anarquista, essa franja de jovens viu-se órfã com a exclusão do Bloco Democrático do processo eleitoral. O BD era a formação política que mais se esforçava por enquadrá-los politicamente, juntando-se invariavelmente às suas manifestações de rua.
A campanha eleitoral revelou mais uma vez a força dos partidos políticos e a fragilidade dos movimentos políticos reivindicativos apartidários. Depois das eleições os jovens ditos revolucionários terão de redefinir a sua identidade, os seus propósitos ideológicos, optando por um partido político existente, criando eles próprios um partido político ou fundando uma associação da sociedade civil.. Sob pena da sociedade assimilá-los como meros arruaceiros.
Enfim, na sexta-feira (31 de Agosto) vou votar lá para o final do dia, pois só o poderei fazer depois da jornada de trabalho. Cá estarei para depois debitar umas quantas palavras sobre os resultados eleitorais.


KANDENGUES ONTEM, KOTAS HOJE


ISAQUIEL CORI
 
 

Envolvidos profundamente na aventura de viver, mergulhados no dia-a-dia, perdemos muitas vezes a noção da transcendência e do quanto o tempo que vivemos, repartido por minutos e horas, nos transforma. Mas chega finalmente o dia em que somos como que arrancados desse torpor e violentamente catapultados para a visão da nossa existência passageira.

Foi o que aconteceu comigo, num desses dias cinzentos e iguais. Caminhava eu para casa, depois de uma esgotante jornada de trabalho, quando um rapaz, de um grupo de quatro ou cinco em aceso debate inconclusivo, apontou para mim e disse vigorosamente: “Olha, ainda bem. Está aqui um kota da banda, vamos tirar as dúvidas com ele”.

Foi como se me tivessem acertado com um soco no peito. “Kota eu, desde quando!”, exclamei, quase a cambalear.

Pousei no chão o peso do dia, feito de rotina e tédio, e lancei um repentino e profundo olhar sobre a minha existência. Uma profusão de pensamentos e imagens tomou conta da minha cabeça e fui dominado por um sentimento misto de saudade, dor, perda e exaltação.

Submisso, entregue à vida com a vontade de a viver sem queixumes, não reparara que ela, aos poucos, de modo insidioso e silencioso, me foi corroendo a inocência e pondo calos na minha alma. A anteriormente densa e enorme floresta em que cada árvore era um amigo, ou em que cada amigo era uma árvore, estava, via eu agora com uma nitidez estonteante, repleta de clareiras. E era mais difícil respirar.

 “Ainda ontem criança, hoje já sou um kota da banda? Como não me apercebi do passar do tempo, meu Deus?”, interroguei-me.

Lutando pela vida, a vida transcorrera em mim e até aqui não me apercebera do quanto o tempo me transformara. Sempre a viver na desportiva, com muito “fair play”, apesar de já ter constituído um lar, de ter sido sacudido por muitos embates da vida, de possuir a cabeça ornamentada por uns quantos cabelos brancos e ter sido prematuramente “premiado” com umas doenças típicas de mais velhos, jamais, verdadeiramente, me sentira “kota”.

Mas agora, ante a solicitude confiante e infantil do rapaz, da candura com que se dirigiu a mim, abriu-se-me uma nova perspectiva e, como nunca antes, assumi, na intimidade e em toda a plenitude, a minha condição de mais velho. Afinal, o tempo não perdoa. A vida chamava-me à responsabilidade.

 “Qual é a vossa dúvida, kandengues”, perguntei, já no papel de “kota da banda”.

 

 

Kota da banda – Mais velho do bairro

Kandengue da banda – Miúdo do bairro

PS: Esta crónica está publicada algures neste blog. Acabo de revê-la com algumas alterações.

terça-feira, 26 de junho de 2012

MENDES DE CARVALHO / UANHENGA XITU: "SINTO QUE PODIA TER FEITO MAIS"

O veterano político e escritor, Doutor Honoris Causa pela Universidade Metodista de Angola, insiste que é um mero contador de estórias




Isaquiel Cori


O veterano escritor e político reformado Mendes de Carvalho “Uanhenga Xitu”, foi distinguido com o título de Doutor Honoris Causa pela Universidade Metodista de Angola (UMA), no passado dia 25 de Maio. Foi a primeira vez que uma instituição de ensino universitário no país atribuiu tal título. Na Carta Doutoral, assinada pela reitora Teresa José Adelina da Silva Neto, a UMA refere que a homenagem leva em conta “a dedicação de toda uma vida, pela via da sua profissão, enquanto enfermeiro, pela via da sua dedicação às artes, e à cultura em geral, enquanto escritor, e pela via da sua intervenção política comprometida, primeiro como opositor ao governo colonial português, depois como governante e como deputado, à construção de uma Angola livre e independente e à ilustração e bem estar do seu povo”.
O jornal Cultura aproveitou a oportunidade para colher algumas palavras do escritor, que, apesar da força da idade (quase 88 anos) ainda conserva a lucidez do discurso.

Jornal Cultura - Qual é o seu sentimento, depois de ter recebido o título de Doutor Honoris Causa pela Universidade Metodista de Angola?
Mendes de Carvalho/Uanhenga Xitu – Recebi muitos elogios, não sei se merecidos. Diante da minha biografia e dos elogios sinto que podia ter feito muito mais.
JC – Continua a escrever?
MC/UX – Já não escrevo.
JC – Há quanto tempo não escreve?
MC/UX – Há uns anos. Quase perdi a vista e ouço muito pouco. Tentei ditar aos meus sobrinhos, mas a coisa não é a mesma. Acabei mesmo por deixar de escrever.
JC – Não sente a falta do exercício da escrita?  
MC/UX – Leio um pouco os jornais e tenho uma filha que me lê alguns livros. Por exemplo eu nunca tinha lido os meus livros. Quando a minha filha me leu “O Ministro” dei-me conta que é um livro que continua muito actual.
JC – Até que ponto as suas obras são ficção ou realidade?
MC/UX - Nos meus livros a ficção e a realidade se entrelaçam.
JC – A trama da maioria das suas obras se desenvolve no meio rural. O ambiente urbano nunca o cativou?
MC/UX – Nasci e cresci no meio rural. Lá as coisas são mais vivas mas sei que o meu “mato” não é necessariamente o “mato” de hoje. Muita coisa mudou e as pessoas também mudaram de comportamento. Deixo as coisas do meio urbano para os que sabem escrever. Os meus livros não têm literatura, não sou capaz de fazer redacções literárias. Eu penso em kimbundo e traduzo para o português. As minhas memórias da infância e da juventude tenho-as em kimbundo e elas é que serviram de material para os meus livros.
JC – O que é que mais o preocupa quando pensa na literatura angolana?
MC/UX – Alguns jovens já estão a dizer muitas das coisas que eu esperava.
JC – O que é que esperava?  
MC/UX – O retrato da vida do povo, a sua miséria, o seu estar, a realidade actual.
JC – Nunca pensou em passar para o papel a sua trajectória de vida, as suas memórias?
MC/UX – As minhas memórias estão nos livros que publiquei. Considero o livro “O Ministro” uma relíquia.
JC – Considera este livro o mais importante que escreveu?
MC/UX – Um dos mais importantes. Todos eles são meus filhos. O “Mestre Tamoda” tem as suas características próprias. Em “Manana” fui longe demais, mergulhei fundo na tradição, na vida dos mais velhos, no conhecimento do feitiço, do xinguiladores…
JC – Começou a escrever na cadeia, no Tarrafal, em Cabo Verde. Como era possível?  
MC/UX – Escrevíamos nuns papéis de embrulho, que vinham da loja. Era animado por rapazes como o António Jacinto, o António Cardoso e o Luandino Vieira. Quase todos os meus livros foram escritos na cadeia. Lá eu tinha tempo, sonhava. Escrever era um passatempo.
JC – Além do poema “Eu sou pueta de Kimbundu”, que está no livro “O Ministro”, não se lhe conhecem outros poemas. A poesia nunca o cativou?
MC/UX – Não sou poeta. Não tenho jeito para escrever poesia. Mas gosto de boa poesia.
JC – Quais os escritores que mais respeita e admira?
MC/UX – O Luandino Vieira, o Pepetela, os cabo-verdianos Baltasar Lopes, autor do romance “Chiquinho”, e Manuel Lopes, que escreveu “Chuva Braba”.  
JC – Ainda é muito procurado por jovens aspirantes a escritores?
MC/UX – Continuam a procurar-me. Perguntam-me se os meus livros são ficção ou realidade e querem que eu os ensine a escrever. Eu digo que a ficção também é realidade.
JC – Continua a insistir que não é um escritor mas um simples contador de estórias. Isso não é excesso de modéstia?
MC/UX – O que é um escritor? É um homem que escreve livros com preocupações de linguagem. Os camaradas é que me dizem que sou escritor. A forma nunca me preocupou. O importante era escrever. Não me gabo como escritor porque sei que cometi muitos erros. Não é modéstia a mais.
JC – Disse que continua a pensar em kimbundo. Os jovens parecem cada vez mais longe do aprendizado das línguas nacionais…
MC/UX – Não falo tão bem, mas ouço muito bem. Dos nossos pais recebemos o erro, por influência do colonialismo português, de que as nossas línguas eram língua de cão.
JC – Que conselhos dá aos mais novos, aos jovens?
MC/UX – Aconselho-os a estudar, a ler muito, a confiar no trabalho que o Presidente da República está a fazer. Hoje há mais casas, mais estradas, o caminho-de-ferro está a funcionar. Neste últimos anos foi feito muito trabalho. Por isso há esperança de que o futuro será muito melhor.


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Agostinho André Mendes de Carvalho, de pseudónimo literário Uanhenga Xitu, (n. 29/08/1924), dentre as várias funções que exerceu foi ministro, embaixador e deputado pela bancada do MPLA. Escreveu os livros: “Meu Discurso” (1974), “Mestre Tamoda” (1974), “Bola com Feitiço”, (1974), “Manana” (1974), “Vozes na Sanzala – Kahitu” (1976), “Os Sobreviventes da Máquina Colonial Depõem” (1980), “Os Discursos de Mestre Tamoda” (1984), “O Ministro” (1989) e “Cultos Especiais”, (1997).
A editora Mayamba reeditou este ano os livros “O Ministro”, "Manana" e "Bola com feitiço - Kahitu".


MOÇAMBICANOS FALAM DE AGOSTINHO NETO

DVD reúne depoimentos sobre o primeiro presidente da República de Angola

Isaquiel Cori

O DVD produzido pela Fundação Agostinho Neto, com depoimentos de 13 personalidades moçambicanas sobre Agostinho Neto, o primeiro presidente da República de Angola, é digno de merecer a maior divulgação possível. Lançado em Janeiro  na província do Bié, no quadro dos festejos do Dia da Cultura Nacional, a obra, até aqui, teve escassa repercussão em Angola, ao contrário do que aconteceu em Moçambique, onde foi posta a público no dia 25 de Maio num acto bastante mediatizado que contou com a presença do Presidente Armando Guebuza.
Os depoimentos abarcam um longo lapso de tempo da vida de Neto, desde os tempos de estudante em Portugal, nos anos 1940/50, até 1979, o ano da sua morte. A trajectória de Agostinho Neto é narrada, através das memórias das personalidades moçambicanas, na sua dimensão de estudante consciente da importância da libertação do país do jugo colonial, de líder do Movimento Popular de Libertação de Angola (MPLA), de homem de cultura e de estadista. A permear todas essas dimensões ressalta sempre uma constante: a do homem simples, humilde e camarada, não obstante a sua enorme estatura intelectual e simbólica. “Era um indivíduo que falava pouco mas pensava muito. E quando falava só dizia as coisas muito acertadas” (Joaquim Chissano). “Ele tinha uma conversa para todos” (Mariano Matsinha).
As relações estreitas entre o MPLA e a FRELIMO, o contexto em que as mesmas se desenrolaram, as amizades – cumplicidades - entre os dirigentes de ambos os países, alicerçadas e edificadas ao longo da luta de libertação nacional, são evocadas pelos depoentes, cada um, naturalmente, à sua maneira.
Segundo Mariano Matsinha, fundador da FRELIMO, “havia troca de informação institucionalizada, organizada e informal sobre o que acontecia em Angola e em Moçambique”.
Joaquim Chissano, ex-presidente de Moçambique, e ao longo de muitos anos ministro dos Negócios Estrangeiros, afirma que conheceu pessoalmente Agostinho Neto em Dar-es-Salam (Tanzânia) em 1965, num encontro de movimentos de libertação das então colónias portuguesas, em que “ele (Neto) tomou posições muito construtivas”.
O escritor Mia Couto, que foi repórter presidencial ao tempo de Samora Machel, e nessa qualidade esteve muito próximo de Agostinho Neto, centra o seu depoimento na vertente cultural, fala da “dimensão mitológica” e exalta as qualidades do poeta. Para ele, a poesia de Agostinho Neto é de “um africano que bebeu a cultura do mundo e que era um homem universal”: na sua poesia não há “uma proposta de um nacionalismo estreito, que nega as contribuições dos outros”. Mia Couto cita particularmente o poema “Depressa”, contido no livro “Sagrada Esperança”, como um exemplo de “poesia pura”, com “uma mensagem intemporal que deve ser ensinada nas escolas, porque ensina os jovens a terem uma atitude”.
Outro depoimento de grande impacto, sem desprimor para os outros, é o de Sérgio Vieira, que foi director do gabinete do presidente Samora Machel. Algumas das suas informações são autênticas revelações, verdadeiras pérolas de memória histórica. Por exemplo, o facto da FRELIMO ter fornecido armas, incluindo morteiros BM-21, ao MPLA, usadas na crucial batalha de Kifangondo, em 1975; a criação, no dia 12 de Novembro de 1975, de um “banco de solidariedade” com as contribuições de um dia de salário dos funcionários moçambicanos, que arrecadou mais de um milhão de dólares que foram entregues ao jovem governo angolano.
Sérgio Vieira dá igualmente a conhecer que pouco antes da independência de Angola, diante da situação de incerteza que se vivia, o MPLA transferiu “todos os haveres” do Banco de Angola para o Banco de Moçambique. Tais “haveres” foram devolvidos ao Banco de Angola logo depois de proclamada a independência. Outra revelação: Agostinho Neto celebrou o seu último aniversário natalício, em 1978, em Moçambique.
Um dos momentos de maior tensão dramática, do conjunto de depoimentos, é aquele em que o mesmo Sérgio Vieira fala dos acontecimentos e das consequências do 27 de Maio de 1977 em Angola. “Houve descarrilamentos, à margem dos órgãos próprios. Esses descarrilamentos, em particular, feriram o presidente Neto. Ele ficou extremamente magoado, porque era um homem de grande sensibilidade e humanismo”.
Malangatana Ngwenya, essa personalidade irradiante da cultura moçambicana, que faleceu pouco depois de ser entrevistado, fala da poesia de Neto e de como ela terá enriquecido a sua visão estética. Outros depoentes são Marcelino dos Santos, Raimundo Pachinuapa, Bonifácio Massamba, Alberto Chipande, Roque Félix, Abdul Bulamusein, Aiuba Cuereneia e Frederico Alberto.
Os depoimentos do DVD “Moçambicanos Falam de Agostinho Neto” foram recolhidos pelos jornalistas Altino Matos e Horácio Pedro, sob coordenação de Amarildo da Conceição. As filmagens foram feitas pela Dread Locks. A Fundação Agostinho Neto, que concebeu, produziu e realizou o projecto, teve o apoio dos bancos BAI e BPC.

Lançamento concorrido
O lançamento do DVD em Maputo aconteceu a 13 de Junho, no Centro Cultural Joaquim Chissano, na presença do chefe de Estado moçambicano, Armando Guebuza, da presidente da Fundação António Agostinho Neto (FAAN), Maria Eugénia Neto, de centenas de personalidades influentes da sociedade daquele país e do corpo diplomático.
O Presidente da República de Moçambique, a quem foi outorgado o título de  membro honorário da FAAN, considerou Agostinho Neto um “intelectual de primeira água”, com alta perspicácia política e uma personalidade humanística contagiante. Sublinhou que a voz de Agostinho Neto não era apenas ouvida, mas sobretudo respeitada internacionalmente.
Armando Guebuza referiu que Neto colocou toda a sua estatura ao serviço do povo angolano e do alcance da independência nacional.  
Maria Eugénia Neto afirmou que o DVD foi produzido para que não se percam as memórias dos camaradas moçambicanos que conviveram com Agostinho Neto, antes e depois da independência, e para que também “não se adultere a verdadeira história de Angola e do MPLA”.
Na mesma cerimónia a FAAN fez a doação de valores monetários, um total de dez mil dólares, a duas escolas primárias, uma da cidade da Beira, província de Sofala, e outra do bairro Kumbeza, no distrito de Marracuene, na província de Maputo.  Maria Eugénia Neto entregou, igualmente, ao Presidente da República de Moçambique, um poema seu, emoldurado, em homenagem ao primeiro presidente daquele país, Samora Machel.
Amarildo da Conceição, alto funcionário da FAAN, disse ao jornal Cultura que ainda este ano vai ser lançado o DVD com depoimentos de personalidades de Cabo Verde que conviveram com Agostinho Neto. Referiu que a Fundação já procedeu à recolha de depoimentos do mesmo cariz em Angola, Argélia, Cuba, Namíbia, Congo Brazzavile, RDC e Tanzânia, que em devido tempo também serão publicados.

quarta-feira, 13 de junho de 2012

Revista Literatas: Uma pedrada no charco


Isaquiel Cori

Com o voluntarismo, a generosidade e o espírito de partilha que lhe são próprios, o poeta e amigo Frederico Ningi colocou-me na rota de distribuição da versão online da revista Literatas.

Da literatura moçambicana conhecia os velhos escritores revelados e consagrados no período anterior ou imediatamente posterior à independência do país, com realce para Noémia de Sousa, José Craveirinha, Luis Bernardo Honwana. A antologia panorâmica do conto moçambicano “As Mãos dos Pretos”, de Nelson Saúte, editada pela Publicações Dom Quixote, permitiu-me alargar e actualizar esse conhecimento aos autores que desabrocharam nos anos posteriores à independência, até à década de 1990. Nomes como Ungulani Ba Ka Khossa, Albino Magaia, Paulina Chiziane, Marcelo Panguana, Suleimane Cassamo, e outros, passaram a integrar o meu imaginário com os seus contos escolhidos por Nelson Saúte.

Ora, de 2000 para cá havia um vácuo no conhecimento do que se passava em Moçambique em termos literários. O que se estava a fazer? Para lá do grande vulto de Mia Couto, que novos autores emergiram? Quais eram as suas preocupações temáticas? Como enquadravam, literariamente, a nova sociedade moçambicana, emergida no pós-guerra?

Aparentemente tão próximos, pela história e pela língua, Angola e Moçambique parecem culturalmente distantes: não existe um intercâmbio directo de obras culturais. O que se conhece de um lado e do outro é o que é publicado em Portugal.

A revista Literatas surgiu precisamente como uma pedrada no charco, uma iniciativa de jovens moçambicanos que aproveitam as facilidades proporcionadas pelas novas tecnologias para quebrar barreiras e ligar criadores da língua portuguesa espalhados pelo mundo. Com a Literatas Moçambique está mais junto a nós: na revista sentimos o pulsar e as inquietações dos novos autores e vislumbramos um pouco da dinâmica criativa e espiritual do país.

Mas também nos vemos ao espelho, pois, volta e meia, estão autores angolanos nas suas páginas, alguns dos quais em autêntica revelação,  a fazer jus ao ditado de que “nenhum profeta faz milagres na sua própria terra”.

Parabéns a Nelson Lineu, Eduardo Quive, Amosses Mucavele e a toda a equipa da Literatas! Que o vosso exemplo de empreendedorismo frutifique por muitos e longos anos.




segunda-feira, 11 de junho de 2012

Professora Carmen Tindó: Encantada pela magia das letras africanas


Isaquiel Cori

Carmen Tindó, professora de Literaturas Africanas da Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ), esteve recentemente em Luanda, onde apresentou o novo romance de Manuel Rui, “Travessia por Imagem”, a convite da Editora Kilombelombe, e assistiu ao lançamento do Jornal Cultura. Já de regresso ao Brasil, ela respondeu a algumas questões colocadas por este jornal, enviadas por e-mail.


Jornal Cultura - O que nos pode dizer do estado actual dos estudos universitários no Brasil, em geral, e na UFRJ, em particular, a respeito da literatura dos países africanos de língua portuguesa?
Carmen Tindó - Há, na UFRJ e em muitas outras universidades brasileiras, grande interesse pelos estudos literários e históricos acerca do continente africano, especialmente sobre Angola, Cabo Verde, Moçambique, Guiné-Bissau e São Tomé e Príncipe. Creio que por serem os países de África que têm o português como uma de suas línguas. Lecciono há 19 anos as Literaturas Africanas na UFRJ e o interesse veio crescendo a cada ano, tendo aumentado com a Lei 10.639, criada pelo Presidente Lula, que exige a obrigatoriedade do ensino das culturas africanas e afro-brasileiras em todos os níveis de ensino e em todo o território brasileiro. Quando implantei, na UFRJ, o Setor de Literaturas Africanas em 1993, quase nenhum aluno ouvira falar dessas literaturas. Hoje, só na UFRJ, há mais de 30 teses e dissertações sobre as letras africanas, especialmente sobre autores angolanos: Pepetela, Luandino Vieira, Paula Tavares, Ondjaki, Boaventura Cardoso, Manuel Rui, Uanhenga Xitu, Ruy Duarte de Carvalho, João Melo, João Maimona, Agualusa, Arnaldo Santos, entre outros. Nas demais universidades brasileiras, há também diversas teses e dissertações, cujos autores angolanos estudados são, quase sempre, os mesmos que acabei de mencionar.
JC - Que autores e livros de Angola e dos países africanos de língua portuguesa mais têm chamado a atenção da comunidade académica brasileira?
CT - Na maioria, os editados no Brasil e em Portugal. São os autores angolanos que referi na resposta anterior. Também são autores moçambicanos, como Mia Couto, Paulina Chiziane, Craveirinha, entre outros. Os livros de Mia Couto, Pepetela, Ondjaki e Agualusa são muito procurados. Os da Paulina Chiziane também. Alguns textos já são clássicos: Luuanda, do Luandino Vieira; os contos de Jofre Rocha, falando dos musseques; os de Arnaldo Santos, focalizando o Kinaxixi; “A morte do velho Kipacaça”, de Boaventura Cardoso; Quem me dera ser onda, de Manuel Rui; Mayombe, de Pepetela e muitas outras obras. Paula Tavares teve toda a sua poesia publicada, em 2011, no Brasil. Antologias poéticas também saíram, reunindo poemas de José Craveirinha, Rui Knopfli, Luís Carlos Patraquim. As obras inteiras de Mia Couto e Pepetela estão sendo publicadas no Brasil. Isso é importantíssimo, pois são mais lidos os escritores editados no Brasil, em virtude de os livros saírem mais baratos.
JC - As obras de autores africanos de língua portuguesa, no Brasil, circulam apenas nos círculos universitários, por exigência curricular, ou tendem a ganhar também espaços nas livrarias e na imprensa?
CT - Em geral, a maioria dessas obras referidas só circula nos meios universitários. Na imprensa e nas livrarias, costumam aparecer: Mia Couto, Pepetela, Paulina Chiziane, Ondjaki, Agualusa. Paula Tavares começa a ser veiculada, depois de ter a obra poética reunida numa antologia publicada no Brasil pela Editora Pallas. O mesmo ocorre com as antologias dos poetas moçambicanos Craveirinha, Knopfli e Patraquim, editadas em Belo Horizonte. 
JC -    Nas obras de autores angolanos, o que mais interessa aos  leitores brasileiros?
CT - A reinvenção de mitos, tradições e a revisitação da história angolana pela ficção; o papel da mulher angolana nas sociedades tradicionais e na modernidade; o humor como crítica social. Obras como Jaime Bunda, do Pepetela; Filhos da pátria, de João Melo; Quem me dera ser onda, do Manuel Rui, entre outras, agradam muito, pois apresentam um riso que satiriza aspectos da sociedade angolana, alguns dos quais podem ser associados a determinadas situações ocorridas em contextos sociais brasileiros.
JC  - Tem uma ideia,  nem que seja aproximada, de quantas teses de licenciatura (graduação) e doutoramento, tendo como tema a literatura dos países africanos de língua portuguesa, foram produzidas, nos últimos anos, nas universidades brasileiras e, particularmente, na  UFRJ?
CT - Como respondi na primeira pergunta, na UFRJ, temos cerca de 30 teses e dissertações. A UFF deve ter também umas 30; a USP deve ter mais de 50; em todo o Brasil deve haver já umas 200. No portal da CAPES, órgão brasileiro de fomento e apoio à pesquisa universitária, as teses e dissertações de todo o Brasil são digitalizadas na íntegra para serem consultadas pelo público brasileiro e internacional. O endereço desse site é: http://capes.gov.br/avaliacao/cadastro-de-discentes/teses-e-dissertacoes
JC - Particularizando: o que a levou a dedicar-se profissionalmente ao estudo e ensino da literatura angolana, em particular, e africana, em geral?
CT - Eu sempre gostei de literatura, mas leccionava língua portuguesa e literatura brasileira. Quando soube que a UFRJ abriria concurso para Professor das Literaturas Africanas, resolvi estudar e fazer as provas. Eu tinha muitos livros, pois, quando fora a Cuba, comprara. Uma colega, casada com um engenheiro português que trabalhava em Luanda, sempre que voltava de Angola, me trazia variados livros; muitas obras eu também tinha adquirido quando viajara a Lisboa. Autores como Luandino Vieira, Mia Couto, Pepetela, Manuel Rui, Paula Tavares e Boaventura Cardoso me mostraram as múltiplas possibilidades de diálogos com a literatura brasileira. Decidi, então, mergulhar no estudo dessas obras. A qualidade dessas me fez optar por essas letras, cuja magia literária me encantou e me fez abraçar o ensino das literaturas africanas de língua portuguesa, na UFRJ, onde lecciono há 19 anos.
JC - Considera a literatura angolana suficientemente autónoma e adulta?
CT -
Embora a literatura angolana seja ainda recente, considero-a autónoma e adulta, uma vez que já se pode falar em um sistema literário angolano. Sistema no sentido empregado pelo crítico brasileiro António Cândido, quando aborda a formação da literatura brasileira. Nas letras angolanas, depreendem-se movimentos literários, cujas propostas dialogam, algumas vezes se opondo e se ultrapassando, de modo que fundam “gerações”, cuja trajectória delineia o corpo da literatura angolana, um corpo sistêmico que lhe dá um estatuto de maioridade e autonomia. Na minha opinião, nada é suficiente e definitivo. Assim, a literatura angolana está aberta a mudanças, transformações, como as demais  literaturas. Gosto muito da produção literária angolana. Penso que esta, aos poucos, se afirmará, cada vez mais, no Brasil e no mundo.
JC - Na sua última estadia em Luanda, o que mais lhe chamou a atenção?
CT -
O que mais me chamou a atenção foi ver uma preocupação com a cultura. Parabenizo a iniciativa do lançamento do “Jornal Cultura”, que pretende retomar alguns aspectos da antiga Revista Cultura, da qual participaram Luandino Vieira e outros. As muitas obras na cidade de Luanda podem ser, por muitos, consideradas como ícones da paz e da reconstrução nacional na sociedade angolana. Contudo, o desenvolvimento de Angola, a meu ver, tem de priorizar a cultura, as letras, a educação, a saúde e o transporte. Por isso, ao estar presente ao lançamento do “Jornal Cultura” e ao ouvir as propostas deste, fiquei muito bem impressionada, acreditando que será um veículo importante de desenvolvimento cultural em Angola. Também me despertou a atenção a alegria do povo comemorando dez anos de paz; ficou patente que nenhum angolano deseja mais guerras. Outro aspecto que me sensibilizou foi ver a quantidade de amigos que, nestes 19 anos de estudo das literaturas africanas, fiz em Angola.


Carmen Lúcia Tindó R. Secco é doutorada em Letras pela Universidade Federal do Rio de Janeiro e foi responsável pela implantação da disciplina de Literaturas Africanas no
Departamento de Letras Clássicas da mesma universidade.

quinta-feira, 10 de maio de 2012

MALENGU JUSTIN ISOLA COMPOSTOS QUÍMICOS DO DITUMBATE

PRIMEIRA TESE DE DOUTORAMENTO NA UNIVERSIDADE AGOSTINHO NETO

Alguns dias depois de ter defendido a sua tese de doutoramento, o Professor Mulangu Malenga Justin, da Faculdade de Engenharia da Universidade Agostinho Neto, ainda recebia os efusivos cumprimentos de colegas, alunos, familiares e até de pessoas desconhecidas. “O professor agora é doutor duas vezes”, brincou, em jeito de felicitação, um dos seus colegas.

POR: ISAQUIEL CORI

Intitulada “Contribuição para o estudo de plantas medicinais em Angola com actividade hepato-protectora: caracterização do perfil fenólico da Boerhaavia Diffusa L”, foi a primeira tese de doutoramento defendida na Universidade Agostinho Neto, em toda a sua história. O acto decorreu no dia 17 de Abril, no Campus Universitário da Camama, em Luanda. Malengu Justin obteve do júri, presidido pelo Magnífico Reitor da UAN, Professor Doutor Orlando da Mata, uma distinção com louvor, o mais alto nível de excelência.

A pesquisa desenvolvida por Malengu Justin, ao longo de quase dez anos, visou extrair, separar e identificar os compostos químicos activos da planta Boerhaavia Difusa, a nossa muito conhecida Ditumbate, em kimbundo, Kudyangulu, em Umbundo, e Bamba, em Côkwe. O estudo avaliou, igualmente, os efeitos da natureza do solo e das condições climáticas sobre a quantidade de compostos químicos activos da planta.



O investigador começou as análises científicas preliminares do Ditumbate em 2003, no Laboratório de Farmacognosia da Faculdade de Farmácia da Universidade do Porto, em Portugal. A espectrometria de massa, que consiste na separação das moléculas, foi feita num laboratório em Espanha. Já o trabalho de análise quantitativa e qualitativa das moléculas foi realizado inteiramente no laboratório da Faculdade de Engenharia da Universidade Agostinho Neto, com a ajuda de um aparelho chamado Cromatógrafo Líquido de Alta Eficiência.

O LESRA (Laboratório de Engenharia de Separação, Reacção e Ambiente), segundo Malengu Justin, em entrevista ao Jornal Cultura, é um orgulho da instituição. Dispõe de equipamento de ponta, adquirido graças ao financiamento de empresas do ramo petrolífero que operam no país.

O Ditumbate prolifera em todas as regiões do país. No estudo foram utilizadas amostras provenientes de Porto Quipiri, Centro Emissor do Cazenga e do jardim do LESRA. Uma das curiosas conclusões foi de que cada amostra tinha o seu próprio perfil químico, em função da natureza dos solos.

O trabalho de investigação de Malengu Justin teve o mérito de identificar doze compostos químicos, oito dos quais foram detectados pela primeira vez no Ditumbate.

“Eu isolei e analisei as substâncias que compõem a planta, cabe agora, por exemplo, aos farmacêuticos determinar o efeito medicinal de cada uma delas”, disse Malengu Justin.

Segundo o cientista, vários estudos de etno-farmacologia e fito-farmacologia, em Angola e no estrangeiro, apuraram que o Ditumbate é eficaz no tratamento de patologias cardio-vasculares e genito-urinárias, da heptatite B, icterícia, e outras. Está igualmente consagrado que é um protector do fígado.

Malengu Justin reconhece o legado científico da bióloga Manuela Batalha Van-Dúnen, que fez um estudo pioneiro, no pós-independência, de catalogação sistemática das plantas medicinais, com base em pesquisas etno-botânicas em várias regiões do país. O académico faz um apelo aos jovens estudantes universitários: “temos de despertar o interesse pelas plantas medicinais. Há que resgatar o saber tradicional a respeito das suas propriedades terapêuticas. Esse saber constitui parte da memória colectiva e é o ponto de partida para os estudos científicos”.

Uma fonte da Reitoria da UAN afirmou a este jornal que o programa de defesa de teses de doutoramento vai prosseguir. A programação está dependente das várias Faculdades.



Perfil do académico



Mulangu Justin nasceu aos 23 de Setembro de 1943, em Lubumbashi, na República Democrática do Congo. Fez a licenciatura em Electroquímica na Universidade de Bruxelas, Bélgica. Vive em Angola há trinta anos. Casado, com quatro filhos, é professor titular do Departamento de Engenharia Química da Faculdade de Engenharia da UAN. Já teve participação em três projectos industriais. É adepto do Barcelona e do Petro de Luanda.

O estudioso revelou ao Jornal Cultura que lhe foi feita, por uma autoridade que não identificou, a proposta para requerer a cidadania angolana.

O seu trabalho de doutoramento serviu de base para um artigo que publicou na revista Phytochemical Analysis, editada em Inglaterra. Fala fluentemente o português, francês, swahili, lingala e tchiluba, e, razoavelmente, o inglês e o espanhol.

“Vou repousar um pouco e depois vou tentar interessar os meus alunos a continuarem as pesquisas, sob minha direcção”, disse, questionado a respeito dos seus planos.









Escritor João Maimona: "HÁ FRAGILIDADE DE CONTACTO ENTRE OS MÚSICOS E OS POETAS"


Encontrámos o poeta João Maimona na sua residência, numa dessas manhãs insuportavelmente quentes de Luanda.  O homem apresentava um aspecto radiante. A Bienal Internacional de Poesia de Luanda (BIP), de que ele é um dos mentores, já tinha as portas abertas no CEFOJOR. “Estamos a entrar na decadência. Nas décadas de 2030 ou 2040 vai ser difícil isolar ou desanichar valores literários”, avisou. Por outro lado, Maimona queixou-se da falta de contacto entre os músicos e os homens de letras: “os nossos músicos não falam com os poetas”.    

POR: ISAQUIEL CORI


Jornal Cultura – Como surgiu a ideia da realização em Luanda de uma bienal internacional de poesia?

João Maimona – Comecei a frequentar a Bienal Internacional de poesia de Liège, na Bélgica, na década de 1990. Depois frequentei as noites poéticas de Struga, na antiga Jugoslávia, e o Festival Internacional de Poesia de Berlim. Nasceu assim a ideia de conceber a Bienal Internacional de Poesia de Luanda. Convidei o Abreu Paxe, o Jomo Fortunato e o Fernando Alvim, juntámos as nossas ideias e os poucos recursos materiais que tínhamos e assim nasceu a BIP.



JC – A BIP nasce num contexto global em que as bienais de poesia tendem a desaparecer. Concorda?

JM – Esse desaparecimento tem muito a ver com a insuficiência de recursos materiais, que estão cada vez mais difíceis de captar. 

JC – De um modo geral, não terá mesmo decrescido a percepção da importância e do valor da poesia?

JM – Não. A poesia é um organismo funcional, vivo. A poesia não atrai muita gente porque é a arte mais sofisticada. Nem toda a gente consegue decifrar ou interpretar a mensagem poética. A prosa é mais fácil, a poesia é mais fechada. Mas não se pode falar da sua morte. Ela continua viva.

JC – De que modo a poesia está viva na BIP?

JM – A nossa ideia principal é revitalizar a presença da poesia angolana e, acima de tudo, internacionalizá-la de modo permanente e crescente. Pretendemos também revitalizar a presença da poesia angolana na vida cultural de Angola e na vida dos angolanos. Hoje estamos em Luanda, na próxima edição poderemos estar no Lubango, em Cabinda ou no Moxico. Mas também no Rio de Janeiro ou em São Paulo.

JC – Estaremos então diante de uma Bienal Internacional de Poesia de Luanda com regime itinerante?

JM – Apesar da designação Bienal Internacional de Poesia de Luanda, ela poderá deslocar-se a outras localidades. Levando sempre o nome de Luanda, o nome da Nação angolana

JC – Que valor atribui à poesia na formação do homem?

JM – Tem um valor significativo. Muito elevado. A poesia faz parte do segmento pedagógico da formação de cada um de nós, encaminha o homem para a descoberta de outras esferas. Na poesia a pessoa encontra segmentos linguísticos que servem para a sua própria formação. Sem receio de contradição, digo que a poesia é uma arquitectura pedagógica.

JC – Pode dizer-se que a poesia torna-nos mais humanos?

JM – Sim, a poesia humaniza. E eu dou o meu próprio exemplo. Quando entrei em contacto com a poesia, o meu diálogo estabeleceu-se no domínio da francofonia. Fui lendo René Char, Victor Hugo… e mais tarde passei para o horizonte da língua portuguesa. Passei então a ler poetas como Eugénio de Andrade, Carlos Drummond de Andrade e outros. Encontrei nessa poesia segmentos claros de humanização, como por exemplo, a exaltação da alegria. Quando o desassossego se transforma em alegria, estamos diante de algo fundamental. O mesmo acontece com as temáticas das liberdades individuais e da ausência de paz e estabilidade. Angola atravessou um longo período de ausência de paz social, mas conseguimos, com os nossos meios, através do diálogo, instalar o clima de estabilidade. Isto é humanização.

JC - A poesia terá então, também, contribuído para que os angolanos sobrevivessem à guerra e conquistassem a paz?

JM – Há pouca gente que lê poesia, mas a mensagem poética circula muito, a uma velocidade sui generis. Quando o verso sai da boca de um poeta é como se fosse o slogan de um político. A população capta imediatamente a mensagem. No meu livro “Trajectória Obliterada”, Prémio Sagrada Esperança em 1984, há uma estrofe do poema “Ramos de grito”, em que eu digo: “No silêncio distante, ardente silêncio / No íntimo das nuvens, tombam chamas / que agasalham as lágrimas”. Isto é, para o poeta, apesar de distante, o povo há-de chegar ao silêncio, à paz.

JC - A poesia associada à música não conseguiria uma maior difusão? O que falta para que haja uma aliança mais forte entre a música e a poesia, no contexto do país?

JM – É um tema complicado. Ao fazer a sua abordagem podemos ser acusados de elitismo. A verdade é que os nossos músicos não falam com os poetas. Não há contacto ou interacção entre os músicos e os homens de letras.

JC – Está a querer dizer que os músicos não conhecem ou não valorizam o acervo poético nacional?

JM – Há fragilidade de contactos entre os músicos e os poetas.

JC – Está a referir-se ao contacto pessoal ou com a produção poética?

JM – Eu diria que o músico não quer investigar. O poeta oferece o seu texto, que circula. O músico tem de ir ao encontro do texto, estudá-lo e então levá-lo à música. Isto é o que falta no nosso meio.

JC – A seu ver, a poesia angolana é suficientemente estudada nas escolas?

JM – Eu sou docente e duvido que haja um estudo profundo da nossa poesia nas escolas.

JC – Sendo assim, onde e como serão forjados os novos poetas?

JM – Estamos a entrar na decadência. Nas décadas de 2030 ou 2040 vai ser difícil isolar ou desanichar valores literários. Eu pertenço à geração de 1980 e sou produto do tempo colonial. Não estou aqui a elogiar o tempo colonial, mas a retratar o meu passado. A formação que tive não tem nada a ver com a arquitectura da formação de hoje. Como é que um aluno que não lê algum dia vai produzir uma obra literária? Fala-se mal o português e não há contacto com outras línguas, sejam africanas ou ocidentais. Isso é uma lacuna. Dentro de vinte ou trinta anos vamos ter um quadro literário limitadíssimo. Por exemplo, enquanto escritor, se eu conseguir, no seio da minha família, introduzir os hábitos de leitura, a formação e a educação, pode ser que surja nela um homem ou mulher de letras. E nas outras famílias?

JC – Por tudo o que acaba de dizer, a tendência é que haja igualmente cada vez menos leitores?

JM – O núcleo de leitores vai ficar reduzido. Se formos a uma biblioteca, encontraremos um número limitadíssimo de estudantes a consultar livros, apenas para responder às solicitações dos professores. Aquilo não é pesquisa. Quando vai a uma biblioteca, o estudante deve preocupar-se com as solicitações dos professores mas também fazer pesquisas no sentido de descobrir novos autores e penetrar mais profundamente no texto que encontrou. Há uma limitação enorme, que não podemos admitir.

JC – O que se deve então fazer para que o cenário sombrio não se concretize dentro dos próximos vinte ou trinta anos?

JM – Tudo começa por uma vontade política. As estruturas que definem e consolidam a política devem jogar um papel importante. O aluno é um sujeito que tem meios limitadíssimos, mas se  perceber que o Estado está a criar condições para que haja desenvolvimento, ele avança e corresponde. Enquanto não sentir que há projectos e definições sólidas, o aluno deixa-se estar.

JC - Os grandes poetas, que por si sós já constituem uma instituição, como é o seu caso, não poderiam também fazer a sua parte, de modo a propiciar o surgimento de novos valores literários?

JM – Obrigado no que me diz respeito. Tenho feito algo e o exemplo mais marcante é a iniciativa da Bienal Internacional de Poesia de Luanda. É uma contribuição valiosa para a formação do angolano. A BIP entrou no calendário cultural de Angola, que ganha assim uma nova dimensão.





João Maimona (Uíge, 1955) é médico veterinário especializado em  Virologia Médica e Epidemiologia Animal. Foi deputado à Assembleia Nacional (1993-2000) pela bancada do MPLA. Publicou os seguintes livros de poesia: “Trajectória Obliterada” (1985) - INALD, “Les roses perdues du Cunene” (1985) – LÉS ÉDITIONS JEAN-        -MARIE BOUCHAIN, “Traço de União”, (1987) – U.E.A., “As abelhas do dia”, (1988) – U.E.A., “Quando se ouvir o sino das sementes” (1993) – U.E.A., “Idade das palavras” (1997) - INALD, “No útero da noite”  (2001) – NZILA, “Festa de Monarquia” (2001) - KILOMBELOMBE, “Lugar e origem da beleza” (2003) - KILOMBELOMBE, “O sentido do regresso e a alma do barco” (2007) - KILOMBELOMBE. Teatro: “Diálogo com a peripécia” (1987) - INALD e “As colheitas do senhor governador” (2010) - KILOMBELOMBE.


Esta entrevista foi originariamente publicada na edição número 3 do Jornal Cultura, do grupo Edições Novembro

segunda-feira, 10 de outubro de 2011

Escritor João Tala: “Conto os meus mortos e revejo as cicatrizes”


 


O poeta e ficcionista João Tala lançou, recentemente, na União dos Escritores Angolanos, o livro de contos “Rosas & Munhungo”. Tala é autor dos livros “A Forma dos Desejos”, poesia, prémio Primeiro Livro da UEA, 1997, “O Gasto da Semente”, poesia, menção honrosa do Prémio Sagrada Esperança do INALD, 2000, “A forma dos Desejos II”, Chá de Caxinde, 2003, “Lugar Assim”, poesia, UEA, 2004, “Os Dias e os Tumultos”, contos, Grande Prémio de Ficção da UEA, 2004, “A Vitória é Uma Ilusão de Filósofos e de Loucos”, Grande Prémio de Poesia da UEA,  2005, “Surreambulando”, contos, UEA, 2007, e “Forno Feminino”, poesia, Kilombelombe, 2009.

Isaquiel Cori

Vida Cultural - Cada conto refere-se a uma mulher. São curtas mas grandes estórias de amor. Amores vividos ou sonhados?
João Tala - As personagens principais dos contos em Rosas & Munhungo  são mulheres distintas que vivem diversas situações, ou são reconhecidas num cenário do pós-guerra imediato. Um traço comum entre essas mulheres é a superação de traumas e outros estados psicológicos daí decorrentes, pelo amor. A característica estilística tem uma grande carga onírica onde o real vivido se revê na composição do sonho.
VC - O título "Rosas & Munhungo" sugere amor e boemia. Quer comentar?
JT - Rosas, como sendo flores, é simbologia feminina, portanto, associada à mulher. Essas personagens, a maioria delas, adaptaram-se a ambientes que lhes eram hostis, ou então a carência cede-lhes o argumento para “ir à rua”. Daí a expressão kimbundo munhungo que é sinónimo de libertinagem, num sentido mais ousado da boemia.
VC - A proveniência médica do autor está muito presente pelo uso notório de termos do jargão médico. Este uso é propositado ou decorre, digamos, de deformação profissional?
JT - Deformação profissional e porque a personagem representa gente. A essência da medicina são as pessoas.
VC - No estrito sentido do texto pressentem-se algumas ressonâncias intertextuais que fazem lembrar o argentino Jorge Luis Borges, o moçambicano Mia Couto, o angolano Boaventura Cardoso e mais remotamente o também angolano Luandino Vieira. Assume essas influências?
JT - Leio muitos escritores. Mas, no interesse da minha escrita, são os latino-americanos que mais me inspiram. Começou, esse interesse, com a leitura da colecção “Vozes da América Latina” que o nosso INALD dava à estampa nos primórdios de 80 do século passado, principalmente quando li “Pedro Páramo”, de Juan Rulfo. Seguiram-se depois “O Trovão entre Folhas”, de Roa Bastos, os livros de Gabriel Garcia Marques, entre outros. Do Boaventura Cardoso fascinou-me mais “A Morte do Velho Kipacaça”. Já Luandino Vieira e Mia Couto, salvas as diferenças, parecem enquadrados dentro da mesma dinâmica de reinvenção que a mim fascina, mas não creio que perceba na minha escrita esse modo de conceber o texto. Borges é uma leitura mais recente.
VC - Desde “A Forma dos Desejos I” a mulher tem um lugar muito especial nas suas obras. É seu propósito constante homenagear a mulher? As mulheres tiveram ou têm um papel determinante na sua vida?
JT - Esclarecer sobre isto seria mais do domínio da psicanálise, já que é quase uma constante também na minha poesia. Evidentemente, não vou passar o filme da minha infância e flagrar o papel delas no meu “esquecimento”. Fica para depois.
VC - O contar recorrente de estórias e histórias humanas do tempo da guerra faz parte dos seus livros? Acredita que isso faz falta à reconciliação nacional?
JT - Não o faço pela reconciliação. Faço-o pelo hábito de contar. O militar que conte os cartuchos e o que ainda resta para esmagar. Eu conto os meus mortos, revejo as cicatrizes, teço sonhos, amo e amargo-me. Não fui voluntário quando um dia me cangaram para a tropa onde eu conviviria mais de perto com a guerra. Isso assim, é também matéria para poesia. Escrevo sobre aquilo que vivi e o que me está mais próximo é a guerra. Se analisar bem, saberá que só falta aos políticos reconciliarem-se e deixarem de arrastar os militantes dos partidos nas suas paranóias. De resto, nem a Bíblia reconciliaria. Por exemplo, não acredito que o malanjino não se dê bem com um bieno ou que um bakongo seja inimigo de um umbundo. Só entre militantes de uns e de outros é que se destilam ódios. É maka deles, os políticos.
VC – Sendo um dos autores mais premiados no país, a sua obra não deveria ter uma maior divulgação em Angola e no estrangeiro?
JT - Para tal, falta ao João Tala a cunha. Dizem que isso se faz com a imprensa e com agregação a grupos privilegiados. São coisas de acontecer.
VC - O que o faz escrever? O que o move enquanto escritor?
JT - A leitura. Eu leio mais do que escrevo e isso me inspira, insufla no meu cérebro imagens que persigo no acto da escrita. Depois há o hábito de contar, há a beleza da poesia.
VC - Na qualidade de poeta, que avaliação faz do legado poético de Agostinho Neto?
JT - Posta a pergunta em termos de “legado” fica difícil responder. Agostinho Neto concebeu belas criações poéticas, com um simbolismo que se remetia aos conteúdos da sua época, com plena satisfação estética. No seu tempo o neo-realismo fazia escola com preocupações que tinham no centro a vida simples dos homens mais simples. E no seu caso, a sua terra então colonizada e oprimida, estava no centro das suas inquietações.
VC - A literatura angolana está robusta? Vê nela sinais de renovação?
JT - A geração à qual pertenço, iniciou nos anos 80 uma movimentação que daria em fartos acontecimentos literários. Essa inspiração colectivista, depois que o tempo fez a sua natural selecção, permite hoje distinguir a maturidade dos que jamais se despojaram do interesse pelo estudo e trabalho. Sim, essa literatura está mais robusta. Quanto aos sintomas de renovação ou inovação costumam estar mais associados ao desempenho universal da literatura. Somos apenas peças dessa grande engrenagem, cada um contribuindo para o produto final. Só o génio é outra coisa.


OBS: ESTA ENTREVISTA FOI ORIGINARIAMENTE PUBLICADA NO SUPLEMENTO VIDA CULTURAL DO JORNAL DE ANGOLA, EDIÇÃO DE 09 DE OUTUBRO DE 2011.