Da literatura à política, da música às artes plásticas, do sério ao cómico, do sagrado ao profano, do real ao ficcional, os nossos textos terão como substracto Angola, o país e as suas gentes. Queremos nos enriquecer com a experiência de quem divide connosco a existência neste Mundo de hoje, nesta época que nos coube viver. Simbolicamente, procuraremos estabelecer uma ponte com o passado e com aqueles que, não estando já vivos, deixaram um rasto de vida.
quinta-feira, 5 de maio de 2016
"MESU MAJIKUKA": OS REFORÇOS E OS PESOS MORTOS NAS ORGANIZAÇÕES
"MESU MAJIKUKA": OS REFORÇOS E OS PESOS MORTOS NAS ORGANIZAÇÕES: Numa dada formação que frequentei sobre Gestão de Capital Humano nas Organizações, o mestre falava, a dado momento, sobre os "pesos mo...
segunda-feira, 2 de maio de 2016
ESCRITOR LUANDINO VIEIRA: "ESTÁ A PASSAR UM ELEFANTE E VOCÊ OLHA PARA AS PULGAS?"
ISAQUIEL CORI
Luandino Vieira (n. 1935) é considerado pela crítica como um dos mais importantes ficcionistas angolanos, do espaço de língua portuguesa, e não só. Ausente do país desde 1992, “por razões pessoais e familiares”, regressou a Angola para o lançamento do seu mais recente romance, “O Livro dos Rios” – primeiro título da trilogia “De Rios Velhos e Guerrilheiros”. Na entrevista que segue, presenciada e participada pelo seu amigo e colega Arnaldo Santos, Luandino Vieira fala não só da sua obra literária mas também da sua participação na luta anti-colonial (chegou a passar 12 anos confinado ao centro prisional do Tarrafal de Santiago,em Cabo Verde ). “Nós
tivémos a sorte histórica de poder participar num momento absolutamente ímpar
da nossa história, que foi a luta de libertação nacional, que deu lugar à
independência política”, diz. E cita Mendes de Carvalho: “O MPLA é um rio de
muitas águas”.
O escritor Luandino Vieira foi alvo, em Novembro de 2014, de várias homenagens, que culminaram com o colóquio “De Luuanda (1964) a Luandino (2014): Veredas”, na Faculdade de Letras da Universidade do Porto. Em 2015 publicou, pela Editorial Caminho "Papéis da Prisão: apontamentos, diário, correspondência (1962-1971)", que ele considerou uma súmula dos doze anos que passou confinado pelo regime colonial português no Campo Prisional do Tarrafal, em Cabo Verde. Tudo isso, e uma detalhadíssima infografia sobre a sua obra publicada no Rede Angola, trouxe à tona da minha memória o papel determinante que o Luandino Vieira teve na auto-assumpção da minha condição de escritor. Efectivamente em 1990, salvo lapso de memória, encontrei-o na Ler & Escrever, uma pequena livraria e editora que funcionava ao lado do Hotel Globo, em Luanda. Dei-lhe a ler o manuscrito do romance "Sacudidos pelo Vento", que ele elogiou rasgadamente, mas pedindo que o reescrevesse. Assim o fiz e levei-o ao concurso Sonangol de Literatura de 1994, onde obteve Menção Honrosa. Muito mais tarde, em 2004, do lugar recôndito de Portugal para onde se retirara, recebi um postal seu, onde dizia: "Mão amiga fez-me chegar o teu livro e vejo que ganhaste asas para voar e fazer coisas para o engrandecimento da nossa terra". Referia-se ao meu livro de contos "O Último Feiticeiro".
Em 2006 Luandino Vieira ganha o Prémio Camões mas recusa-se a recebê-lo. Nesse mesmo ano vem a Luanda e fiz tudo para o encontrar e o entrevistar, numa altura em que estava ligado à preparação da primeira edição dos Cadernos ÉME, do Secretariado do Bureau Político do MPLA para Informação, sob direcção editorial executiva do jornalista Fernando Tati. O encontro e a entrevista consumaram-se em Novembro de 2006, em casa do escritor Arnaldo Santos, num ambiente descontraído. A entrevista alargou-se a Arnaldo Santos, um velho compadre de Luandino Vieira, e rendeu umas três horas de gravação, com temas centrados na vida e obra de LV mas também de Arnaldo Santos. Transcrevi às pressas as falas do LV, com a intenção de mais tarde fazer o mesmo com as do Arnaldo Santos. Infelizmente, viria a perder o registo magnético da entrevista numa mudança de casa. Até hoje essa lembrança dói-me.
Comecei a ler Luandino Vieira na adolescência. Livros como "A Vida Verdadeira de Domingos Xavier", "Luuanda", "João Vêncio. Os seus Amores", "Lourentinho, Dona Antónia de Sousa Neto & Eu", li-os fechado no meu quarto, no Kassequel, ainda rapaz imberbe, muitas vezes à noite, à luz do candeeiro a petróleo. Eram livros do meu irmão mais velho, Borges António Cristóvão, de grata e saudosa memória. A entrevista ao mestre Luandino Vieira, publicada originariamente nos Cadernos ÉME, em 2006, está também algures neste blogue, com o título "Alguém passeia em mim". Abaixo, decidi retomar o título da primeira publicação, além de caprichar mais na edição.
Luandino Vieira (n. 1935) é considerado pela crítica como um dos mais importantes ficcionistas angolanos, do espaço de língua portuguesa, e não só. Ausente do país desde 1992, “por razões pessoais e familiares”, regressou a Angola para o lançamento do seu mais recente romance, “O Livro dos Rios” – primeiro título da trilogia “De Rios Velhos e Guerrilheiros”. Na entrevista que segue, presenciada e participada pelo seu amigo e colega Arnaldo Santos, Luandino Vieira fala não só da sua obra literária mas também da sua participação na luta anti-colonial (chegou a passar 12 anos confinado ao centro prisional do Tarrafal de Santiago,
PERGUNTA – Depois de catorze anos de
ausência de Luanda, como é que vê a evolução da cidade de Luanda?
LUANDINO VIEIRA – Nota-se, obviamente, que se passaram catorze anos
entre aquilo que eu deixei e aquilo que eu encontro. Acho que a cidade está em frenesim. Eu não
posso dizer que seja um movimento desusado, mas para mim é um movimento
surpreendente. Posso estar também a confundir, porque só dei duas ou três
voltas na cidade, praticamente no centro histórico, na Baixa, na Marginal.
PERGUNTA – Já esteve no Kinaxixi?
LV
– Ainda não fui ao Kinaxixi. Tenho isso programado. Quero ir a Viana porque
falando com amigos que moram já fora do centro, soube que Luanda está a chegar,
calmamente, às margens do Kwanza. Isso dá uma ideia da expansão nesses últimos
anos. Encontrei uma cidade que, estranhamente, eu pensava que ia ser mais
diferente. E depois dei-me conta que afinal é a minha cidade. Fisicamente,
olhando, a gente nota que houve muitas mudanças. Há prédios que não havia, nos
sítios que não havia.
Mas
o que permanece é muito mais forte, em termos de identidade do território e do
espaço, do que as marcas visíveis do que se está a fazer agora em termos de
desenvolvimento da cidade: as novas soluções para o trânsito, as novas soluções
urbanísticas…
Portanto,
é um sentimento ainda um bocado difícil para mim ao fim de uma semana. Vejo que
é diferente mas ao mesmo tempo é igual. É como quando a gente mete a chave na
porta, entra em casa e reconhece que está em casa mas algumas coisas foram
mexidas. Agora… é um movimento e penso que não foi só um acréscimo de
movimento, ou o que se chama de crescimento, vamos mesmo dizer talvez, de
desenvolvimento. Mas imagino que tenha sido um aumento enorme de problemas de
gestão do território, de controlo do território… Não é tarefa fácil para
ninguém gerir este espaço de Luanda, um espaço carregado de valor simbólico que
vem de muitos séculos. O que é Luanda? Há uma parte de Luanda que já é mítica,
simbólica.
PERGUNTA – O próprio Luandino Vieira,
com os seus livros, contribuiu para um certo paradigma mítico de Luanda.
LV
– Os escritores funcionam tanto no plano da realidade como no plano dos sonhos.
Às vezes confundem as duas coisas, felizmente, para projectar alguns sonhos.
Essa cidade que nós, eu e o Arnaldo Santos, pusemos nas nossas obras, por
exemplo aí a área do Maculusso e do Kinaxixi, o tempo é que vai dizer se eram
valores simbólicos que tinham a sua verdade real ou que têm a sua vigência para
a definição da identidade da cidade. Para a nossa geração e para a geração
seguinte e pelo facto dos livros terem sido publicados… isso tem uma certa
premência. Esse espaço foi que nos inventou a nós. Enquanto crianças ele
definiu uma parte da nossa identidade. O que fizemos foi talvez passar isso
para a letra escrita, para a literatura e tentar transmitir sonho, que afinal,
se calhar, não se adequava à realidade.
PERGUNTA – É certo que essa visão, esse
sonho, se quisermos, foi adoptado por gerações posteriores. Há quem não viveu
nos musseques de Luanda naquele tempo (antes da independência) e a ideia que tem
dos musseques é a que é descrita nos livros do Luandino e de outros escritores
da sua geração.
LV
– Por isso tenho o cuidado de dizer que nem sempre transmitimos o real;
transmitimos às vezes o que sonhámos que era e o sonho do que deveria ser.
Portanto, os jovens devem fazer essa leitura com a devida cautela. A literatuta
tanto se alimenta do que é real como do que é fictício, da sua própria ficção,
do sonho dos escritores. Olhando para trás, não há que renegar esse traço,
essas notas que estão no meu trabalho literário. Continua a haver esse passado
do modo como o escrevi há muitos anos.
PERGUNTA – O Luandino está cá em Angola
já para ficar?
LV
– Ainda não estou para ficar porque estive fora estes anos todos por motivos
rigorosamente familiares e particulares e que não têm nada a ver com outra
coisa que não seja isso. Como deve calcular, nós acumulámos muita coisa.
Sobretudo os escritores acumulam papéis à mais, memórias à mais... Esta
oportunidade de vir foi ditada por compromissos de lançar os livros ao mesmo
tempo, eu e o meu compadre Arnaldo Santos; Kinaxixi e Makulusu... E, claro,
para aproveitar a ocasião para ver como é que devo arrumar, o que é que devo
arrumar para trazer. Se não podemos escolher o sítio onde nascemos podemos
escolher, ao menos algumas vezes, o sítio aonde queremos morrer.
PERGUNTA – Acaba de dizer que esteve
fora de Angola estes anos todos por razões estrictamente familiares e
particulares. Será então escusado perguntar-lhe das circunstâncias que o
levaram a sair de Angola em 1992?
LV
– Em 1992, quando recomeçou a guerra civil, naqueles termos, eu já não tinha
nenhum cargo, nenhum compromisso; e foi-me dada uma bolsa para criação
literária, de dois anos. Recebi a bolsa e fui para Portugal para pesquisar e
para tentar escrever. Não consegui escrever naquele tempo e entretanto
comprometi-me com a minha mãe a ficar com ela até aos seus últimos dias. E foi
o que sucedeu.
PERGUNTA – Constou-me que chegou a
rasgar (ou a queimar) um romance que já tinha pronto.
LV
– Eu ainda trabalho à moda antiga. Não tenho computador e escrevo à mão. Não
sei guardar arquivos e, portanto, só a minha memória é o meu arquivo. Depois de
escrever achei que o melhor era queimar; às vezes é melhor começar tudo de novo
do que tentar emendar. Às vezes o pano onde a gente quer pôr o remendo já não
aguenta o remendo.
PERGUNTA – Tem dito repetidamente,
quando perguntado, que negou o Prémio Camões por razões pessoais e íntimas.
Será descabido supôr que essa negação terá também alguma coisa a ver com o
escândalo que resultou da atribuição, em 1965, do
"Grande Prémio de Novelística" da Sociedade Portuguesa de Autores,
com a intervenção das autoridades fascistas, que dissolveram aquela sociedade?
LV
– Não tem nenhuma relação com os prémios anteriores, nem com o modo como existe
o Prémio Camões.
PERGUNTA – A sua recusa não significa
então uma negação do Prémio Camões enquanto instituição?
LV
– O Prémio Camões é uma boa instituição. Eu não conheço em pormenores os
regulamentos e a filosofia do prémio mas sei que é um prémio para os escritores
que enaltecem ou desenvolvem a língua portuguesa, para escritores de todos os
países que utilizam a língua portuguesa. Neguei-o por razões pessoais e
íntimas. A última vez que escrevi e publiquei, não quer dizer que seja a última
vez que escrevi, foi em 1972. De 1972
a 2006 quantos anos se passaram? Se se meditar um pouco
sobre isso, os leitores actualizados da literatura, os que lêem e vão seguindo
o movimento editorial, os que conhecem outros escritores, outras obras dos
antigos escritores, novas obras dos novos escritores, o surgimento de novos
talentos, de novas correntes literárias, haveriam por exemplo de perguntar (não
quero dizer que seja essa a razão, mas eu se fosse leitor perguntava) como é
que não sendo o prémio de carreira, porquê que atribuem um prémio a um escritor
que está morto? O Prémio Camões não é um prémio póstumo. E um escritor que fica
tanto tempo sem publicar... Poucas pessoas sabiam que eu estava vivo, mesmo
fisicamente. Estou convencido que muita gente dizia: “Ele deve ter morrido,
nunca mais o vimos, nunca mais o ouvimos”. Isto é apenas um exemplo.
As
minhas razões foram rigorosamente íntimas e pessoais. Não têm nada a ver com a
instituição do prémio, nem como o prémio é atribuído ou não atribuído. Têm a
ver com o modo como eu vejo a minha situação de escritor dentro do sistema
literário em língua portuguesa, o meu papel e o meu lugar nesse sistema
literário.
ARNALDO SANTOS – Contra a vontade do entrevistador eu atrevo-me a
dizer que não há escritores mortos como o Luandino estava aqui a defender.
Porque os escritores, como Agostinho Neto, Viriato Cruz, etc., que até
fisicamente estão mortos, continuam muito vivos. É um argumento que eu tenho
contra o meu compadre.
LV – Até podemos entrar em
polémica. A polémica seria sobre se aquilo que se chama um
escritor e que é definido por um nome se refere à pessoa ou às obras. É
evidente que essas obras foram produzidas por alguém. Mas no trabalho literário
o próprio escritor, depois, às vezes pergunta “quem é que em mim escreveu
isto?”
PERGUNTA – Defende uma perspectiva
mística do acto de escrever?
LV
– Não é mística, porque sucede. A gente escreve e mais tarde lê e diz assim,
“mas eu escrevi isto? Fui eu? Alguém em mim escreveu isto?”
PERGUNTA – Ou: “Terei sido possuído
por...”
LV
– Não, não é isso. Penso que não é a possessão, nesse sentido. Mas a nossa
identidade pessoal é uma coisa muito complexa e é feita de muitos dados. O
nosso ADN literário, digamos assim, inclui tudo quanto a gente leu e tudo
quanto a gente sonhou e quanto a gente ouviu. Nenhum de nós sabe o que é que
está arquivado aqui nessas pastas do nosso cérebro. E muitas vezes nós não
temos a mínima percepção de que isto estava lá guardado e damo-nos conta de que
estava porque apareceu na escrita. O Arnaldo está aqui e sabe que se começamos
um texto da maneira errada, isto é, se conduzir é com o volante à esquerda e a
gente começa a conduzir com o volante à direita, temos que parar e mudar de
trânsito. Isto é, rasgar e começar de novo; por aquele caminho não vamos lá.
Quem é que nos diz que por aquele caminho não vamos lá?
A
nossa identidade literária determina muitas vezes muitos textos dos quais não
tínhamos sequer a percepção de que existia essa capacidade em nós. Ou essa incapacidade,
quando falhamos: “porquê que falhei se tinha tudo tão bem pensado na minha
cabeça?”
PERGUNTA – Dirijo-me ao Arnaldo Santos.
Concorda com o Luandino?
AS
– Você já notou que nós não temos as mesmas ideias sobre este assunto. Porque
eu não considerava, de forma nenhuma, o Luandino um escritor morto. E mais
ainda: eu tinha boas razões para admitir que o júri, que era formado por gente,
à partida, inteligente, sabedora, etc., quando pegou na obra dele, não estava por
estas considerações, com as quais eu concordo plenamente, para avaliar a obra
do escritor Luandino Vieira, para lhe atribuir o Prémio Camões. O júri foi
mesmo buscar essa obra, independentemente do autor se ter arquivado lá no
convento de Sampaio.
Eu
não considerava de forma nenhuma o Luandino um escritor morto. Eu sabia que o
escritor continuava vivo, movia-se ou vivia como escritor, portava-se como
escritor, eu convivia com ele como escritor, falava e inclusivamente mandava os
meus textos a ele como escritor. Logo, o escritor estava aí. Ele só precisava
era sacudir aquela preguiça que normalmente os escritores costumam passar. Ele
sacudiu e temos aí um escritor vivo para mais livros, muitos mais livros.
PERGUNTA – Luandino: é verdade que
durante os anos todos em que ficou sem publicar fez como que uma longa viagem
interior e vivia como um eremita? Fez um auto-exílio, na tentativa de, se
calhar, recuperar motivação para a
escrita?
LV
– Não, não foi na tentativa de recuperar motivação para a escrita. Ao longo
destes anos fui sempre escrevendo. Pelo menos guardando na minha memória temas
e mesmo frases e palavras. Passei a meditar sobre a literatura, sobre o meu
trabalho anterior, sobre a realidade que tinha dado origem ao meu trabalho
anterior, sobre a minha participação modesta nessa realidade e sobre os
elementos fundamentais dessa realidade; portanto, era uma meditação mais sobre
a minha identidade.
De
modo que ao longo destes anos todos o isolamento físico ajudou... O isolamento
físico é devido também ao meu modo de estar no mundo. Não sou pessoa de muita
confusão. Mas isso permitiu-me ver uma parte do meu relacionamento com a nossa
realidade que eu não tinha aprofundado muito mas que em todos os livros já
estava.
Eu
voltei ao Domingos Xavier [“A Vida Verdadeira de Domingos Xavier”, 1974] e
obviamente o aspecto militante do livro... li e segui o aspecto humano dos
personagens, sendo personagens que foram criados sobre figuras que eu conheci e
passaram aqueles dramas... Por exemplo, num capítulo, um dos personagens, já
não me lembro quem, olha para o rio Kwanza... eu me dei conta de que logo ali,
num romance que não tinha nenhuma intenção de tocar na nossa natureza, que é
afinal o nosso grande aquário onde todos nós angolanos nos movemos, já estava
lá essa preocupação com a natureza, com o rio Kwanza. No Domingos Xavier já
estava lá o Kwanza!... E fui descobrir que aos oito/nove anos eu tinha feito
uma viagem pelo kwanza acima, num daqueles barcos que faziam cabotagem para Calumbo... coisa que no meu
subconsciente estava adormecida, tal e qual como andei na escola ou ia, pela
mão do meu pai, ao centro espírita, como ia aos Coqueiros, ao Clube Atlético de
Luanda... coisas que não tendo sido valorizadas estavam na génese dos quadros
em que se movia o meu trabalho literário, a minha ficção literária. Isso fez-me
compreender que a presença da terra angolana (rios, montanhas, pássaros) –
agora aqui com o meu compadre, aqui na casa dele, a primeira coisa que a gente faz
é identificar quem está a cantar na mulembeira; aí um “dikole” farta-se de
cantar, um “mbolo quinhentos” canta, canta, canta; os “plim-plau” não saem
daqui... – então isso fez-me reflectir:
... “Afinal eu tenho reduzido a minha maneira de ver a nossa
realidade, porque a presença avassaladora da terra não tem sido reflectida”.
Agora,
isso que chamam exílio, auto-exílio, não existe. Eu já disse isto e posso
repetir: há uma certa tendência da comunicação social para emoldurar as
atitudes das pessoas. E então em relação aos escritores, aos artistas, aos
músicos, essa moldura passa também por alguns preconceitos. Vamos ser claros.
PERGUNTA – O auto-exílio pode acontecer
em qualquer lado, não implica necessariamente uma viagem de um lado para o
outro.
LV
– Sim. E podia estar aqui muito mais exilado do que eu estava lá, em Portugal. Eu nunca
deixei de estar em
Angola. Devo fazer esta precisão: têm que nos dar, a nós
também escritores e artistas, a possibilidade, este privilégio de sermos também
humanos e de podermos ficar num sítio qualquer só porque procuramos trabalho,
porque há o emprego, porque gostamos de viver ali, porque a nossa família nos
pede para estar... O escritor, o músico, o artista, se não está é porque
exilou-se, auto-exilou-se... Exílio político? Não está de acordo? Não é nada
disso. Eu sinto necessidade de ir fazendo algumas introspecções porque até os
combóios que andam em duas linhas paralelas, em certa altura tem que ter
agulheiros, tem agulhas para desviar... Se queremos viver conscientemente temos
que ir de vez em quando, não digo permanentemente, ir aferindo a nossa própria
actividade, a ver se está de acordo com aquilo que nós somos e sentimos
sinceramente ou se nos estamos a desviar dessa nossa matriz que é a nossa força
interior. Pode soar a desculpa, mas não é.
PERGUNTA – “O Livro dos Rios” é assim a
redescoberta do tema da Natureza...
LV
– É a assumpção. Assumir inteiramente que do nosso real a Natureza tem tanta
força como a acção dos homens. Mais: porque os homens reflectem no seio dessa
Natureza. Só que nós, os humanos, somos muito vaidosos e não estamos atentos.
Passamos por uma árvore e é uma árvore... metemos a moto-serra e a cortamos.
Chegamos a um sítio qualquer e não vemos que sem este sítio nós não teríamos a
nossa identidade. Sobretudo nós, os urbanos, os citadinos.
Eu
gosto de estar aqui, na casa do meu compadre, porque a mulembeira está ali, e o
sape-sapeiro... Hoje vamos tentar podar um pau de maçã da Índia que está com
uma doença, a ver se ainda a salvamos. Isto faz parte da nossa identidade. E “O
Livro dos Rios” e os outros dois que se seguem, tratam fundamentalmente disto:
a relação do homem angolano com a terra angolana, naquilo que a terra define e
ajuda a definir, naquilo em que o homem tem consciência. Isso traz um grande
orgulho. Penso que se alguma coisa de novo eu pude introduzir nesse primeiro
livro já não é só o orgulho de sermos angolanos, de termos as conquistas que
fizémos em 40 anos de luta... É também esse orgulho da terra, dos rios... A
angolanidade é um todo.
Ontem,
falando com alguém que me estava a tentar dar umas indicações sobre a questão
dos diamantes no nosso país, quando é que aparecem referidos como riqueza, ele
me relatou um facto relativo ao século XVII. E falámos de Santa Maria da
Matamba, da igreja onde se passaram as exéquias de Njinga Mbande ou do momento
em que se lançou a primeira pedra dessa igreja... A palavra Matamba, que
desperta logo o nosso imaginário histórico, lá onde a Njinga ficou os últimos
anos da sua longa e combatente vida, desperta-nos também para aquela região. E
aí a gente caminha e vê Kalandula, caminha e vê o Lucala... e não pode deixar
de pensar nas Pedras de Pungu-a-Ndongo... Portanto, toda a história angolana é
a relação, também, dos homens angolanos com a sua terra e a sua constante luta
com as forças de conquista e ocupação. É também uma história de lugares. E eu
sou muito sensível a isso. Esse quadro da natureza passou a ser muito mais
importante do que, inconscientemente, já era...
E
uma história como a da mafumeira do Kinaxixi, que nós vimos em criança,
presenciámos o derrube, o corte daquela árvore... a história do corte daquela
árvore pode ser vista do ponto vista simbólico, mitológico, religioso, no
quadro das religiões tradicionais, dos espíritos que aí moravam. E pode ser
vista como um choque entre a modernidade e o passado que não queria que se
mexesse ali... mas era preciso rasgar aquilo, asfaltar, criar a urbe,
avançar... o famoso progresso, não é, o crescimento ou o desenvolvimento. Tudo
pode ser narrado sem esse facto, sem a lagoa do Kinaxixi, sem a mafumeira, sem
os espíritos... mas acho que será um relato mais pobre do que se relatarmos com
todas aquelas nuances.
Mas
sobre o Kinaxixi este senhor [referindo-se ao escritor Arnaldo Santos] pode me
corrigir, ele gosta de me corrigir, ele que também foi “apanhado” pela
mafumeira. Eu fui apanhado pelo galho da mafumeira, na chuva. Se era um sinal,
se não era um sinal, não sei.
PERGUNTA – No início desta conversa
perguntei-lhe se podia tratá-lo por “Camarada”...
LV
– Com certeza.
PERGUNTA – Mesmo em Portugal, nesses
últimos 14 anos, foi acompanhando a evolução política do país? Ou
reactualizou-se agora, no seu regresso?
LV
– Eu acompanho sempre. Claro que não é no pormenor. A questão política do nosso
país já não se vê só nas questões de pormenor, nem nas questões tácticas ou
circunstanciais. Obviamente que estando longe, não podendo ver o dia-a-dia, eu
vou tendo conhecimento do que foram as opções estratégicas; e também não tenho
formação política nem conhecimentos para dizer se foram certas ou erradas, naquele
momento. Só posso ver é o resultado, como cidadão e como “camarada”. Porque
isto de ser do MPLA, primeiro não é o cartão. Primeiro é o coração, depois é
que é o cartão. O cartão a gente perde; rasgam-nos ou caçumbulam-nos. Mas o
coração, este, ninguém nos tira.
A
questão estratégica deve ser medida por resultados. E quando, agora, no dia 11
[de Novembro] eu fui posto perante o resultado... Se houvesse um só resultado
já era muito bom para uma geração.
Nós
tivémos a sorte histórica de poder participar num momento absolutamente ímpar
da nossa história, que foi a luta de libertação nacional, que deu lugar à
independência política. A independência política está aí. Nunca esteve em causa. Outra coisa: a
integridade teritorial. Quando agora nós percebemos que todos os planos, desde
há muito anos, era que se para nos dominarem, se fosse preciso, partiam-nos aos
bocados...
Ninguém
conseguiu partir a nossa Nação, o nosso território. Estão aí as nossas
fronteiras... E a despeito, e sobretudo devido a multiplicidade cultural e
sociológica do nosso país, a unidade nacional está aí. Ao fim de 31 anos de
independência, diga-me um outro país que se pode gabar desses três factos que
são estruturantes e estratégicos? Não são muitos.
Os
quatro anos de paz traduzem-se neste vertiginoso crescer desta cidade. E eu
espero que quando visitar Benguela, Lubango,
Cabinda e outros lugares, encontre esse mesmo fervilhar. É certo que há muitos
defeitos... Mas eu me lembro dum mais velho que me ensinou, no campo de
concentração, uma coisa: quando passa um elefante, o caçador não pode estar a
olhar para as pulgas. Porque o elefante leva lama, leva pulgas, tem a pele
rasgada, carrega porcaria... você vai dizer “ai, o elefante está cheio de
porcaria!”... Está a passar um elefante e você está a olhar para as pulgas?
PERGUNTA – Foi propositado fazer
coincidir o lançamento do seu livro com o dia da Independência do país?
LV
– Quando me perguntaram qual era a data que queria para o lançamento, eu não
pensei duas vezes. Se tivesse pensado teria percebido que no dia 11 há coisas
muito, muito mais importantes do que o lançamento de dois livros de dois velhos
escritores. Mas era uma parte daquele orgulho. E sobretudo porque eu pedi
apenas para que no lançamento estivessem meus restados camaradas do campo de
concentração do Tarrafal, a quem o livro é dedicado. Foi só o entusiasmo.
Depois a realidade obrigou a corrigir. [Inicialmente previsto para o dia 11 de
Novembro, o acto formal de lançamento acabou por acontecer no dia 14].
PERGUNTA - Recuemos no tempo. Pode
falar-nos das circunstâncias que o levaram ao campo de concentração do
Tarrafal?
LV
– Eu acho que isso individualmente não tem importância, porque nós tivémos o
privilégio histórico, a nossa geração, de estar naquele momento histórico em
que as condições se reuniram para que a luta pela libertação nacional, pela
independência política, tivesse sucesso.
PERGUNTA – A questão do mérito coloca-se
porque apesar das condições históricas, as pessoas tiveram que agir em
determinado sentido...
LV
– Pois, mas houve sempre resistência popular ao invasor, houve a partir do
momento em que começou a haver intelectualidade, a introdução da imprensa...
isso você sabe melhor do que eu. Houve vários surtos. O nacionalismo angolano
não começou no pós-segunda guerra mundial, tem raízes pelos séculos fora, isto se
não quisermos ver o nacionalismo duma maneira estreita, como uma ideologia.
Não. Esse sentimento, esse movimento que resultava do choque e das contradições
das forças, entre invasores e invadidos, ocupados e ocupantes, os que
colaboravam e os que não colaboravam, os reinos e os que vinham... isso foi
formando, foi caldeando o nosso país.
Então,
nós tivémos o privilégio de estar naquele momento histórico e participámos.
Participações individuais? Foram sempre participações de grupos, de tal maneira
que, por exemplo em 1959 (para pôrmos a coisa já naquele período em que a
polícia política portuguesa, a PIDE, já estava instalada e começou a actuar
organizadamente sobre as ideias e os movimentos nacionalistas...) todos os dias
saíam panfletos e não eram assinados pela mesma organização. Uma pessoa podia
às vezes copiar a ideia que saía num panfleto, voltar a glosar esta ideia, que
já era assinada por outro dos movimentos que proliferavam: MINA, MIA, ELA,
PLUA, PCA... que sei eu?
Foi
essa a época, da luta pela difusão das ideias nacionalistas, pela organização e
contra a repressão, que depois deu, como resultado, uma maior eficácia e a
possibilidade do MPLA dirigir essas forças todas que actuavam em seu nome, com
o seu programa (muitas vezes não lido, só de ouvido: sabia-se que o programa
mínimo era este, o programa maior era aquele...).
Para
resumir, o camarada Mendes de Carvalho foi o que até hoje, como é o nosso mais
velho e o nosso mestre em muita coisa, em quase tudo, sintetizou melhor o MPLA.
Ele disse que o MPLA é um rio de muitas águas. Isso é o que faz a força do
MPLA. Nós tivémos a sorte de estar ou num ribeiro, ou num afluente da margem
esquerda ou num afluente da margem direita, às vezes estávamos só no muije,
outros estavam numa pequena lagoa... todas essas águas quando se juntaram foram
imparáveis. Hoje parece que isso é reconhecido.
PERGUNTA – O Luandino continua modesto. Na
verdade ficou preso quantos anos?
LV
– Da primeira vez que fui preso, no Processo dos 50, tiraram-me porque eu era
muito miúdo e, (penso eu que o juiz interpretou, para o despacho de pronúncia
final, orientações superiores) não convinha misturar sobretudo os brancos que
tinham uma boa situação... como é que uma pessoa que é gerente de uma empresa,
tem dinheiro, tem privilégios... “se mete nisto?”, como eles diziam. Depois, em
1961, fui condenado a 14 anos e cumpri 12 em prisão; depois pegaram em mim e
puseram-me em Lisboa com residência vigiada. Tinha uma caderneta e cada vez que
queria me deslocar tinha de ir à PIDE, eles punham lá um carimbo... “segue para
Santarém”... Ia lá visitar o meu pai... quando lá chegava a primeira coisa a
fazer, antes de ver o meu pai, era me apresentar à PIDE para carimbarem a caderneta...
Só depois é que, vigiado obviamente, podia visitar a família.
Temos
que render homenagem é à memória dos milhares e milhares de angolanos que
morreram, que deram o seu sangue, a sua vida, para a conquista da independência
política. Nós que passamos estes anos todos de cativeiro, temos o direito a
dizer isso com a modéstia e ao mesmo tempo o orgulho que temos nisso. Mas o
nosso sofrimento (pelo menos falo pessoalmente) comparado com o das grandes
massas... não, não tem comparação possível. Não é ser modesto... Trinta e um
anos depois a gente já pode ver qual é realmente o nosso lugar. É um pequeno
lugar, está ali, não é mais do que isso.
PERGUNTA – Escreveu “Nós, os do
Makulusu” em 15 dias. Continua com este ritmo frenético de escrita?
LV
– Não. Em relação a “Nós, os do Makulusu” até hoje não compreendo... Eu não sou
uma pessoa muito mística, ao contrário aqui do meu compadre, que tem a abertura
de espírito suficiente para enquadrar desde o misticismo ao realismo mais
científico só comprovado por experiência... É verdade que o ambiente cultural
da nossa terra e o ambiente natural, também um bocado mágico, dá-nos essa
percepção de que nem tudo na realidade é perceptível apenas com os instrumentos
científicos, da razão. Há coisas que é melhor desconfiar. Desconfiar é uma
atitude correcta. Enquanto não tivermos a certeza, desconfiámos. Alguém passeia
em nós…
Nós
atravessávamos no campo de concentração um período muito, muito difícil. As
notícias que nos chegavam... Não sei como é que nos chegou a notícia da morte
do Hoji-ya-Henda... e também d’alguns problemas que houve na Checoslováquia...
a morte do Che Guevara... Mas sobretudo internamente nós passávamos um período
de muito mais repressão, muitas limitações... E foi também um período muito
difícil para mim, pessoalmente, estive muitos meses sem notícias da família...
Então sucedeu que este livro [“Nós, os do Makulusu” ] foi escrito em 7 dias.
Nós
saíamos da caserna para dar umas voltas, para lavar a roupa, para apanhar
sol... o chamado recreio... Eu sentava-me no chão, debaixo de uma grande
acácia, no meio do campo, e fui escrevendo. O romance foi escrito assim, como se
eu estivesse, e agora vou arriscar mesmo, possuído por um espírito.
Alguém
me diz que sim, que é assim, porque foi nessa mesma árvore onde o Mendes de
Carvalho gravou à canivete uma frase, que eu já não lembro e que ficou lá. E
ambos sofremos muito, anos depois, no dia em que visitámos de novo aquele campo e vimos que
uma moto-serra tinha cortado aquela árvore. Outras árvores ficaram, mas aquela
tinha sido cortada. Fazendo ficção, estou a ler sinais que não existem. Mas a
verdade é que estas coisas se passaram. Como é que nós, por exemplo um mais
velho como o Mendes de Carvalho ou eu que também já vou a caminho de ser um
kota, como é que nós vamos ler isso? Porquê que cortaram precisamente aquela
árvore? Ah, é o acaso... Outros dizem, ah, isso é um milagre... Há muitas
coisas na vida para as quais a curta vida humana, quer individual quer às vezes
grandes colectivos, ainda não pode encontrar resposta. A resposta é mais
estratégica, precisa às vezes de séculos. Ainda há pouco tempo na Europa toda a
gente defendia que a terra estava quieta e que o sol é que girava à volta da
terra. Hoje sabe-se, cientificamente, que é o contrário.
PERGUNTA – No quadro global da sua obra,
qual é o livro que mais aprecia? Incluindo “O Livro dos Rios”.
LV
– É difícil dizer. Não é a velha e estafada imagem de que todos são nossos
filhos e que todo o pai ama a todos por igual. Todos eles, quando os publiquei, publiquei conscientemente.
Tenho a noção do que cada um deles representa ou pode ter de valimento. Mas se
me disserem assim: só podemos editar um livro... Em homenagem a esse espírito
que naquele momento deve ter habitado em mim (e tenho pena que se tenha ido
embora depois) eu escolheria mesmo o “Nós, os do Makulusu”.
PERGUNTA – Acredito que tenha uma ideia
geral daquilo que é a literatura angolana hoje. O que acha dela?
LV
– Nenhum de nós pode fazer futurologia. O hoje da literatura angolana conheço
mal, porque em Portugal não chegam algumas obras, pelos motivos que todos
sabemos. Conhecendo mal era muito atrevimento estar a fazer um balanço. A única
coisa que eu posso dizer, é tentando também ver as coisas em termos
estratégicos, fazendo a leitura do passado, tentando tirar ilações. E se no fim
do século XIX nos debruçássemos ou estivéssemos a ver a literatura que era
produzida naquele tempo, nomeadamente a que era publicada nos jornais, se se
pusesse essa questão aos homens do fim do século XIX e princípios do século XX,
àquela geração, será que eles poderiam por exemplo prever a geração dos Novos
Intelectuais de Angola, o movimento da Mensagem... seguramente que não.
Retrospectivamente, nós podemos agora encontrar uma ligação entre a literatura
feita em nome de ideias proto-nacionalistas, vamos utilizar o termo, e a que
depois apareceu já com ideias mais definidas, mais nacionalistas claras. Mas é
lendo, fazendo a leitura para trás. E quando o movimento da Mensagem produziu a
[revista] Mensagem ou quando o Mário [de Andrade] e o Francisco José Tenreiro
publicaram o Caderno de Poesia Negra de Expressão Portuguesa podia prever-se,
por exemplo, o que foi a actividade de 1975 a 1980, aquelas tiragens de 15 mil, 25 mil
exemplares, os livros a circularem a preço de maço de tabaco, as FAPLA a
distribuir livros quase com um carregador [de munições]... Podia-se prever? Era
muito difícil.
O
que une isso tudo é que há uma linha de continuidade no modo como se vê a
relação do homem angolano com a terra e os seus deveres para com a realidade.
Em todos os escritos há uma linha de continuidade que pode ser simplesmente
reduzida a isto: no meu entendimento o escritor angolano sempre foi
comprometido civicamente. Teve sempre uma noção de que a sua arte é a literatura,
que é a expressão dum sistema um pouco autônomo, mas o cidadão nunca fica de
parte; há um mínimo de participação que resulta dessa consciência cívica.
PERGUNTA – Essa participação cívica tem
necessariamente uma expressão política?
LV
– Às vezes tem expressão política e até militar. Houve escritores que foram
para a guerrilha... A participação cívica, como cidadãos, ficou na maneira como
os escritores angolanos vêem a sua literatura. E penso que esse traço também
define o nosso sistema literário nacional. Há críticos que dizem “ah, estes são
poemas militantes”. Está bem. Muitas vezes a qualidade literária é aferida por
isso mas outras vezes é essa característica que dá a grande qualidade
literária. A gente pode dizer que o poema do António Jacinto, “O grande
desafio”, é um poema absolutamente político; é radicalmente político... E é, em
simultâneo, radicamente literário.
Estas
coisas não são muito simples, nem se pode lançar o anátema de que “ah, é
militante, está a fazer poesia militante, logo, não presta”. Ou ao contrário,
“ah, não é militante, logo, é bom”. Em última instância a obra publicada é que
responde, não é o homem, sendo ou não militante. Agora, o homem que faz a obra
está lá na obra, quer seja como presença quer seja como ausência. E o responsável
último é ele.
PERGUNTA – Nós estamos num mundo cada
vez mais globalizado. Como é que se vê, a si e à sua obra, neste mundo
globalizado?
LV
– Eu vejo a globalização como esse grande movimento de aproximação das
actividades económicas em todo o mundo, o que, por arrasto, leva também a
aspectos sociais e culturais. Penso que me está a dirigir a pergunta no sentido
de eu, talvez, estabelecer a minha relação com as novas formas de informação e
comunicação.
Eu
confesso que quando começou esse grande movimento, fiz uma má avaliação. Não do
alcance, porque se percebeu logo que essa revolução tecnológica ia trazer uma
nova revolução no modo de entender e de nos relacionarmos com o mundo. Fiz uma
má avaliação do tempo. Pensei para comigo, “bom, quando isso chegar a ser um
dado fundamental no relacionamento entre as pessoas e, no nosso caso, no
relacionamento das pessoas que vivem no campo da criação ou das ideias ou da
troca de ideias ou do conhecimento ou da informação... quando isso chegar eu já
cá não estou”. Pensava que levaria algum tempo mais, mas afinal sou
surpreendido, por exemplo em 2005, com essa realidade de ser um excluído, um
info-excluído.
PERGUNTA – Pode remediar isso...
LV
– Pode ser remediado. As tecnologias são humanas e o modo de as utilizar.
Portanto, não é nada que qualquer cidadão, desde que queira, não possa adquirir
as competências mínimas para também meter o seu fiozinho na rede e ficar ligado
a todos os outros cidadãos, individual ou colectivamente. Disso eu tenho a
perfeita noção. Eu fiz uma avaliação do tempo e então fiquei descansado com o
meu método de trabalho da canetinha e apontamento e confiando na minha memória.
Agora dou-me conta que isso é insuficiente como modo de estar ligado, de estar
informado e de estar a participar tanto quanto mais não seja tendo conhecimento
do que se passa. Ainda não tomei a decisão de me “incluir”, por preguiça. É que
um infeliz traço do meu carácter é ser muito preguiçoso; isso é capaz de dar
muito trabalho.
PERGUNTA – Querendo ou não, a informação
sobre o Luandino e a sua obra está muito presente na Internet.
LV
– O meu neto e o meu filho e outras pessoas ficam muito irritados quando eu
digo “printa e mete no correio”, quando afinal é só fazer um clique para enviar
ou reenviar [Risos].
PERGUNTA – Como é que tem sido a sua
relação com as outras artes angolanas? Essa fruição, essa apreciação das outras
artes acrescenta alguma coisa à sua criação literária?
LV
– Até 1992 eu tive uma relação muito intensa com as outras áreas da criação
artística. Eu era inclusive membro da UNAP
[União Nacional dos Artistas Plásticos]. Desde criança que eu gosto da
boa música.
PERGUNTA – O que é que considera “boa
música”?
LV
– Bom... Música que é feita com algum conhecimento técnico e com sinceridade.
Por exemplo, oiço sempre com muita atenção a música tradicional, a música
popular, sobretudo o cancioneiro urbano. Com a pintura... sou um desenhador e
pintor frustrado. Houve uma altura em que na UNAP me incluíram
nos “pioneiros da gravura”... Fiz uns linóleos no tempo em que nos
multiplicávamos com muitos pseudónimos para ocupar o lugar nos jornais, para
dar a ideia de que éramos muitos, para a PIDE ficar baralhada... eu era o
Luandino, o José Muimbo, o Zé Graça... A gente ia multiplicando também as
expressões, para baralhar a polícia.
Sou
apreciador, pouco crítico, de jazz. O Gegê Belo não gosta que eu diga isto, mas
eu gosto de todo o jazz, sobretudo dos priomórdios, do período da formação, das
influências, quando vêem as canções de trabalho mais os blues...
Mantive
sempre ligações, por exemplo, com o Ole, o Kidá e os jovens que estavam, em
pintura, a estudar em Portugal, o Vitó (o filho do Viteix)... Pude me dar conta
de que para além da manutenção de uma linha que se vê em quase todos, de
expressão artística baseada não só em temas mas também em figurações populares
e uma coisa interessante que era uma certa expressão surrealista, sobretudo em
alguns pintores dos anos ’90, já não me lembro de nomes… acho que se fez um bom
caminho nas artes plásticas.
Na
música houve uma multiplicidade de estilos e a entrada do conceito de fusão e a
tal globalização, que faz com que se façam descargas de tudo na Net e se
misture... Mas não há dúvida que a música sempre foi um sector de grande
vitalidade. Quanto ao teatro não tenho absolutamente nada a dizer, já que não
tenho acompanhado o seu movimento.
No
cômputo geral, a actividade artística e criativa acompanha o desenvolvimento do
país. Umas vezes com uma certa perplexidade, à procura de caminhos; outras já
com a consciência de qual é o caminho da afirmação. Acho que as artes também
vão neste movimento de crescimento e de irrupção das forças que estavam contidas
pela guerra.
sábado, 19 de março de 2016
DESEJOS DE AMINATA, LIVRO DE LOPITO FEIJÓ: A INTIMIDADE CONJUGAL COMO OBJECTO DA POESIA
Isaquiel
Cori
O
novo livro de Lopito Feijó, “Desejos de Aminata”, editado pela Nóssomos, em
Portugal, é uma incursão poética e exploratória, com detalhes, pela topografia e
a toponímia do corpo feminino, do desejo carnal, do amor físico, tão profunda e
ousada que chega a ultrapassar os limites convencionais do erótico para ganhar
contornos quase, quase pornográficos.
É
claramente, uma declaração de amor, de devoção total à amada, que passa pela
posse e o desfrute do seu corpo. A intensidade da posse e do desfrute roça o
canibalismo. Em “Voo rasante”:
“No
triângulo viperino / então / este anjo de asas esferovíticas // de mansinho
voando / retorna mítico / à lavoura carnal…”
E
confunde-se com a loucura. No poema “Loucura ou Sinecura”:
“… sonho / impregnado / incondicional / mente
demente”.
Há
toda uma “onda fálica” que atravessa e paira sobre o poemário, com o poeta “digitando
versos / entre as coxas” da amada. Como resultado, o criador acaba por
“(ou)vir-se / na circunscrita extensão / dos secretos territórios!”
Em
“Onda bronzeada” o poeta faz o retrato fotográfico e circunspecto da diva:
Negra
quase encaracolada
semblante
misterioso
pescoço
naturalmente cheiroso
um
único braço
com
mão de mil dedos
peito
com dois seios
e
três mamilos em cada qual
abdómen
boquiaberto
com
sereno botão no umbigo
circundante
malandra cintura circunstante
dois
pares de pernas completas
o
resto logo se vê…
eis
a mulher da minha vida!
Num
mundo em que, com a generalizada estigmatização do machismo e a relativização
acentuada do ser masculino, as sensações, as percepções, são cada vez mais
femininas - como disse o outro, em tom de fatalidade, “a mulher é o futuro do
homem” – e, ainda, em que todo o homem que se preze faz questão de realçar o
seu “lado feminino”, Lopito Feijó traz-nos, com este livro, uma mão cheia de
poemas de um erotismo assumidamente másculo, um olhar sexual do homem sobre a mulher.
Um
olhar de um homem cheio de desejo de possuir a mulher amada, de perder-se nas
curvas, cantos, contracurvas e orifícios da intimidade do seu corpo e de desejo
épico e incontido de sorver os seus fluídos e de fundir-se fisiologicamente com
ela. Em “Conjunção carnal”:
“A
prática das carnes envolve / alguma espiritual ferocidade // sempre que as
minhas carnes penetram / os sagrados orifícios do teu corpo // preenchem o
tempo / em razão de consumistas orgias / e promiscuimos carnes com as nossas
carnes. // Conjugando o verbo renascer / faço-te criatura criadora”.
Os
seus instrumentos do desejo são os dedos tacteantes, o olhar microscópico, a
língua sorvedora e, sobretudo, o falo.
“Fecundos
/ acabamos na húmida tijoleira / quando gemidos entoas ao falo. // Falo do falo
do fogo das falas da fonte do divino / do sémen morninho e do próprio
canibal.” In “Para uma noite feliz”.
Símbolo
da agressividade e da arrogância masculina, o falo, ou o pénis em riste, ao
mesmo tempo que concentra o poder do macho – a capacidade de dar prazer físico
à mulher e de expelir a semente da procriação – é igualmente a sua fraqueza, ou
não fossem cada vez mais numerosos os casos de disfunção eréctil e ejaculação
precoce.
“Desejos
de Aminata” são os cantos de um homem detentor, em pleno, dos seus instrumentos
do desejo e feliz com a sua mulher, a mulher que lhe coube no universo em que
vivemos.
Efectivamente,
a mulher cantada neste poemário não é uma mulher qualquer, simbólica e
impalpável. Os poemas de “Desejos de Aminata” não evocam um amor platónico, com
imagens envoltas em nuvens de fumaça.
A
mulher cantada neste poemário, nada mais, nada menos, é a pessoa física que
atende pelo nome de Aminata Goubel, a companheira e esposa do poeta Lopito
Feijó. Ao escancarar a sua intimidade como o faz, com o melhor da sua
capacidade de criação poética, Lopito Feijó transforma Aminata numa das mais brilhantes
musas das letras angolanas e universais e oferece uma obra em que os leitores
podem espelhar o sentimento, devoção, paixão, amor, que nutrem pela esposa,
namorada, amiga ou companheira.
“Desejos
de Aminata” conta com uma magnífica edição da Nóssomos e inclui ilustrações
ágeis, escorreitas, elas próprias poéticas e sensuais, da autoria de Luandino
Vieira.
João
André da Silva Feijó, o Lopito Feijó, nasceu em Malanje aos 29 de Setembro de
1963. Deputado reformado da Assembleia Nacional, é actualmente poeta a tempo
inteiro. Publicou, entre outros, os livros:
“Doutrina” (poesia, 1987),
“cartas de Amor” (poesia, 1990), “Marcas da Guerra, Percepção Íntima &
Outros Fonemas Doutrinários” (poesia, 2011), “Lex & Cal Doutrina” (poesia,
2012), “Andarilho & Doutrinário” (poesia, 2013).
terça-feira, 15 de março de 2016
O OCASO DOS PIRILAMPOS, LIVRO DE ADRIANO MIXINGE
Por: Isaquiel Cori
Adriano Mixinge, historiador e crítico de arte por ora emprestado
à diplomacia - é adido cultural na Embaixada de Angola em Espanha - faz hoje a
sua terceira entrega literária, depois do romance "Tanda", publicado
em 2006, em Luanda, pela Edições Chá de Caxinde, e da colectânea de ensaios
“Made in Angola: arte contemporânea, artistas e debates”, pela editora
L`Harmattan, Paris, 2009.
Sobre o autor e as suas outras facetas não me vou debruçar mais,
dado que nas orelhas desta edição de "O Ocaso dos Pirilampos" consta
uma resenha biográfica sua bastante elucidativa.
“O Ocaso dos Pirilampos” é uma narrativa bastante singular, com enorme
pendor subjectivo, intimista e confessional. É um monólogo que se espraia numa
linguagem simbólica, carregada de imagens surrealistas e evocações fantásticas.
Trata-se de um discurso poético em prosa,
entremeado por poemas em versos de evocação e exaltação ao Semba. Cito, na pág
46:
"…
e se o Semba fosse uma dor
não
haveriam gargalhadas
os
tons berrantes estariam numa
superfície de cera
se
ele fosse o silêncio da terra
seríamos
figuras num cemitério em miniaturas
não
haveria sons errantes de outras eras"
O personagem-narrador está perfeitamente
definido, tem vida própria. A narrativa tem profundidade e densidade e suscita
imediatamente a adesão do leitor apesar da linguagem impregnada de simbolismos,
cujo entendimento remete, ou melhor, convoca, a sua experiência de vida e toda
a sua subjectividade. O narrador/herói/personagem
transporta o leitor pelos caminhos da sua própria intimidade, do seu corpo, da
sua sexualidade, da sua memória e dos seus sonhos.
O narrador-protagonista é um ser arrogante, detentor de um poder
ilimitado sobre a vida e a morte dos seus servidores. Trata-se de um poder unipessoal, absoluto. É
um poder centrado no seu próprio corpo, do qual, literalmente, tudo emerge,
tudo é criado. Ele é o grande demiurgo: as cidades nascem do interior do seu
corpo para depois serem excretadas através dos seus vómitos. As urbes não
passam, afinal, de “restos”, de dejectos do detentor do poder absoluto. E os
habitantes vivem sob o signo do grande-chicote, simbolizado no falo
omnipresente do todo-poderoso personagem-narrador. Cito, na página 75:
"Quando digo aos meus subordinados
para entrarem no lugar em que toco o batuque, observo-os primeiro bem se têm ou
não nádegas volumosas. Até mesmo antes de certificar-me dos atributos físicos
das vítimas, fico logo teso: senhoras respeitáveis, maridos fiéis, militares
arrogantes, polícias, professores, engenheiras, dirigentes de partidos
políticos, líderes religiosos e guias de seitas religiosas, médicas, simples
empregadas de limpeza, solteiros, casados ou boémios, gente educada ou
sanzaleira, eu os submeto todos com o falo e eles já sabem, se querem desfrutar
dos sons do meu batuque têm é que ficar calados e não podem ter opiniões
próprias. Tudo o que pensarem tem de ser uma interpretação ajustada às minhas
ordens".
A concepção do poder como o acto de excretar (urina, fezes ou
vómito) está no centro deste romance. O poder brota do corpo humano, é gerado
nas entranhas. De certo modo, este livro é também um tributo ao corpo, à
fisiologia e aos ritos do corpo. Cito, na página 33:
..."Tudo surgia
do meu estômago de uma maneira surpreendente, era uma emanação directa do meu
desejo, dos meus sonhos. Depois era trabalho dos intestinos delgado e grosso,
que se deformavam até ao ponto de se transformarem em moldes, campos de
cultivo, fornos ou tubos de ensaio. Quando senti a pressão do cólon sigmóide e
das côcegas do recto ao ânus, abri os olhos: houve luz e com ela vieram as
cores".
O monólogo, que jorra como uma corrente de consciência, revela um
personagem solitário, apesar do seu poder desmedido, obcecado pelo seu próprio
corpo e cujo falo, que concentra toda a sua força, é a origem do bem e do mal.
Porque se trata de um monólogo, com o eu a calcar e a dar ênfase à subjectividade da narrativa, “O Ocaso
dos Pirilampos” introduz o leitor no inferno que é a vida interior do narrador.
O eu do personagem/ herói / narrador agarra o
leitor, puxa-o, como os braços de um náufrago na derradeira tentativa de
agarrar-se ao pescoço do seu salvador, e intima-o a uma identificação imediata
com o personagem. Num primeiro momento, o leitor consuma essa identificação,
mas depois recua, tamanha é a crueza e a crueldade patenteada pelo discurso do personagem/ herói / narrador.
Cria-se assim, no plano da leitura, uma tensão psicológica. O
esforço que resulta da necessidade de manter distância do personagem-narrador e
do facto de não se ter outro caminho para o perceber senão o de assumir a sua condição,
com o risco da transferência do eu do
narrador para o eu-leitor, redunda
num dos efeitos mais perturbadores desta obra.
Mas a grande perturbação, diríamos mesmo, o choque, que deriva da
leitura de “O Ocaso dos Pirilampos”, está na natureza intrínseca do personagem
e naquilo que os medos, os receios, as ansiedades, as memórias, os sonhos e,
eventualmente, as realidades - positivas ou virtuais - do leitor, lhe podem
acrescentar. Desse ponto de vista, até pode resultar que, afinal, o
narrador-protagonista de "O Ocaso dos Pirilampos" seja inocente: quem
lhe transmite as ressonâncias medonhas, porventura reais – passadas ou presentes
- ou imaginárias, é o próprio leitor.
Adriano Mixinge, neste seu romance, desvela os medos e os
fantasmas do homem angolano, imerso numa época de imensas encruzilhadas e
incertezas quanto ao futuro e à própria existência. Trata-se de uma narrativa inquietadora,
pois o leitor acaba por ser colocado diante das suas mais íntimas e secretas
fragilidades. O livro é uma espécie de psicanálise do poder – absoluto e
ilegítimo – na sua fase de degenerescência.
Cito, da página, 118:
"Oiço insistentemente
um barulho muito familiar, eco do meu batuque agora já muito desafinado e
esbranquiçado. Os rios do meu corpo coincidem com as comichões da Nação.
Enquanto todo o meu corpo cavernoso, a minha glande e o meu prepúcio descansam,
resgato os melhores pensamentos das sucatas da vida. O que penso é para
redimir-me: eu sei que vocês serão uns ingratos e recordarão este tempo como o
tempo do fracasso de todas as utopias, o do ocaso dos pirilampos, o da
decadência da minha geração, a geração de todos os guerrilheiros convertidos em
novos-ricos, em novos-pobres, ou completamente abandalhados no mundo, na
vida."
Para terminar, diria que o livro "O Ocaso dos
Pirilampos", de Adriano Mixinge, tem a grandeza daqueles que "sintetizam
e iluminam" uma determinada época e enquadra-se na tradição combativa e de
vanguarda da literatura angolana. Deixemos o livro seguir tranquilamente o seu
percurso no circuito de distribuição e nas nossas consciências de leitores.
Muito obrigado.
OBS: Texto de apresentação lido no acto de lançamento do livro e simultaneamente de entrega do Prémio Sagrada Esperança a Adriano Mixinge, no Memorial Dr. António Agostinho Neto, em Luanda, no dia 07 de Março de 2014. A foto da capa é da edição portuguesa chancelada pela Guerra e Paz. A edição angolana foi feita pelo Instituto Nacional das Indústrias Culturais (INIC).
quarta-feira, 9 de março de 2016
Escritor Manuel Rui: "Escrevo sobre o riso por cima da lágrima"
Isaquiel Cori
Autor da letra do hino
da República de Angola, Manuel Rui é um dos escritores mais prolíferos e
versáteis da sua geração. Pontificam na sua já vasta obra a novela "Quem
me dera ser onda", o romance "Rioseco" e a série de cadernos
poéticos "Onze Poemas em Novembro". Este ano publicou, entre outras
obras, o romance "A Trança" e o livro de contos "Quitandeiras e
aviões". Na entrevista que se segue, Manuel Rui revela aos leitores do
jornal Cultura a poética subjacente à sua criação ficcional, comenta situações
da realidade social e histórica do país e fala de aspectos até aqui pouco
conhecidos da sua biografia. A dado
momento o escritor afirma: "falo alto e grosso: tenho uma maneira minha de
fazer ficção".
Jornal Cultura – O que o exercício da escrita representa para si? Gozo? Angústia? Refúgio?
Manuel
Rui - Representa apenas tudo. O favo, o voo da abelha e o mel. Escreve-se
porque primeiro se gosta de escrever, em segundo porque se sabe, em terceiro
porque se pretende um relacionamento com quem nos lê. É uma espécie de relação
quase erótica: escrevo, tenho o prazer de escrever e
depois quero que me devolvam esse prazer através da leitura. O mesmo que palmas
e tambores para um contador oral, um griô. Obviamente, pode-se escrever por
encomenda, por necessidade, por mil e uma razões, o importante é que se tenha
talento. Os grandes monumentos, as grandes obras de arte, foram encomendadas e
nem por isso deixam de ser obras de arte. O que está em causa sempre para se
escrever é o talento, a opção de como se escreve, porque se sabe que essa opção
é nossa e porque se sabe escrever. Eu diria, como alguém disse, há muita gente
que escreve e alguns escritores. Tem uma coisa lá no fundo do pôr-do-sol: gente
com talento, por aí perdida, não sabendo
ler nem escrever… e às vezes vendendo jornais…
JC –
O talento, sobretudo no caso dos que escrevem ficção, tem de ser acompanhado
com auto-disciplina, auto-organização?
MR –
Isso é outro ângulo. Se me fizerem a encomenda de um texto, um ensaio, para uma
revista, de borla por paixão ou a pagar, eu escrevo na hora. Não tenho a
autodisciplina de escrever todos os dias, infelizmente. Escrevo quando tenho
mesmo vontade e prazer de escrever. Repare nesse pormenor: eu escrevi o romance
“A Trança” e quando acabei, de alegria, escrevi um poema dedicado ao livro; é
uma espécie de êxtase daquilo que havia feito.
JC –
A partir do momento em que começa a escrever, o livro já pré-existe na sua
cabeça?
MR –
Há várias maneiras de eu começar. Numa, o livro já está todo na cabeça mas
depois pode sofrer alterações. Já houve personagens minhas que tinham um
percurso definido, começaram a libertar-se desse percurso, a soltar-se, a
fazerem o que queriam, que eu tive que as matar. As personagens começam a
libertar-se, o livro começa a ser ele próprio, a ter a sua própria existência
como se não fosse feito por mim. Há outros livros que começo a escrever sem
saber aonde vão acabar. O “Quem me dera ser onda” não tinha estória, ela foi
andando por si, foi-se soltando. A mundividência era tal, tinha tanta coisa à
volta que foi uma espécie de chuvada que fez aumentar um caudal de um rio que
eu ainda não sabia qual era a foz. E, verdadeiramente, não teve foz, porque o
livro é aberto.
JC –
“Quem me dera ser onda” captou uma vibrante realidade social, que hoje já se
pode considerar histórica. Olhando à volta dá para pensar que aquela realidade
social continua aí, ou tende a reemergir?
MR –
Penso que não é ou nem é tanto isso. É um canto de esperança, é a visão de um
futuro que se avizinha com classes dominantes, como é o caso do cipaio terrível
que maltrata os filhos, hostiliza a mulher por causa da carne (a metáfora da
riqueza). Por outro lado, é o princípio de qualquer coisa que nos marcou, que
foi a ideologia do marxismo-leninismo, que a maioria não sabia o que era mas se
tinha a ver com liberdade, igualdade, já era qualquer coisa de bom. Parecia que
se pretendia uma sociedade meritocrática. Depois vai chegar o momento, depois
do “Quem me dera ser onda”, em que se deitou pela janela fora a ideologia
marxista mas ficou-se com algumas esquizofrenias que vieram do Leste, de tipo
stalinista: fenómenos como a DISA, a perseguição política, os editoriais
permanentes na Rádio Nacional, etc., a que “Quem me dera ser onda”
sub-repticiamente faz referência quando o porco é obrigado a ouvir tudo o que a
Rádio Nacional dá, porque o patrão lhe colocou os auscultadores nos ouvidos. O livro
inicialmente não conseguia sair e foi posto num concurso (Prémio Sagrada
Esperança) com aquelas regras do envelope fechado com a identidade do autor.
Teve outros tropeções até conseguir ser publicado com a imposição de que tinha
que vir com um prefácio a dizer que o livro era contra a pequena burguesia. Vivia-se
esse absurdo, ninguém se interrogava: se havia uma pequena burguesia aonde
estava a burguesia?
JC –
No seu livro “Crónica de um mujimbo” a questão da DISA parece emergir, mas a
novela acaba em suspense, como se fosse continuar num outro livro.
MR – Continuação?
Estragava a estória. Não pretendo estragar o livro, que não é um seriado nem
uma telenovela. Eu jogo muito com o fim em aberto. A abordagem não é sobre a
DISA mas sobre o secreto e sua epistemologia. A DISA foi uma instituição. O
secreto é uma categoria de preservação e reserva do conhecimento.
JC –
O livro tem personagens que estão dentro de uma estrutura que vela ou cuida do
que é secreto.
MR – O
secreto pode não ser necessariamente tratado por uma polícia. Entre nós tudo o
que é secreto, por causa da tradição oral, passa de boca em boca depois de
passar pelos dedos das que escrevem nas máquinas, dos carimbadores e ouvidos
dos motoristas. E quando atinge um
determinado nível quantitativo de transmissão deixa de ser secreto para ser um mujimbo.
Por isso é que quando as pessoas dizem que corre aí um mujimbo que fulano vai
cair do ministério tal, dá certo: houve um despacho que foi assinado e que foi
transmitido de boca em boca.
JC –
Há em toda a sua obra, a par de uma solidariedade orgânica com os mais pobres e
aqueles cuja voz raramente se faz ouvir, um olhar para as realidades sociais
que faz lembrar um sociólogo. O escritor consagrado que é terá abafado o
sociólogo que poderia ter sido?
MR – Estou
solidário com os pobres, os despossuídos e oprimidos de tanta maneira e feitio.
Mas não sou contra os ricos. E só os ricos, neste sistema, que são poder, podem
decidir de forma a que os mais pobres passem para a figura dos menos ricos,
como acontece mos países nórdicos. Escrevo sobre o ser e o estar. Sobre as
coisas mais antigas, o sol, o mar ou as estrelas. Sobre a vida e suas tranças.
Sobre cada cabelo de trança. Sobre o riso por cima da lágrima. Escrevo como
penso e principalmente pelo gosto da forma como escrevo, dando um determinado
sentido àquilo que escrevo. Veja que mesmo no “Quem me dera ser onda” há ricos
e não apenas pobres. A trilogia de livros sobre o Huambo, “O Manequim e o
piano” “A Casa do Rio”, “Janela de Sónia”, o apogeu desta obra, por exemplo, é
com aqueles novos ricos que vêm do nada, foi pela guerra que eles se tornaram
ricos. O meu olhar é o do escritor. Acima de tudo entendo-me na poética da
minha ficcionalidade. Falo alto e grosso: tenho uma maneira minha de fazer
ficção. Também muito ligada à música. Daí os meus versos serem musicados e
interpretados por artistas de primeira água…incluindo a selecção de
basquetebol…
JC –
Como define essa marca da sua ficção?
MR – É
a forma como eu escrevo, fazendo uma aproximação com a oratura, com a fala.
Escrevo parágrafos com diálogos lá dentro. É um drama com os revisores de
algumas editoras a mandarem o texto para trás dizendo que está gramaticalmente
errado. Faço uma escrita minha, própria, específica. Não estou a narrar
estórias, estou a contar estórias como se cada leitor fosse um ouvido íntimo da
minha voz. Estou a contar estórias usando os símbolos da escrita, que foram
inventados exatamente para isso, símbolos que representam sons. Sons para
falar.
JC -
Alguém afirmou que em termos temáticos Manuel Rui fez a transição completa para
a pós-colonialidade. Concorda com essa afirmação?
MR -
Foi o professor, escritor, meu amigo, Gaivão. Escreveu um livro sobre a minha
obra. Mostrou-me antes de o publicar. Disse-lhe que não sou de
pós-colonialidade nenhuma. Colonialidade tem um sentido diferente de
colonialismo. É quase identitário. Acontece que a minha ficção e poesia antes
da independência não têm marcas de colonialidade para depois se falar em
pós-colonialidade. É discutível até para os académicos…
JC –
Pesa muito no Manuel Rui a consciência de pertença a uma geração?
MR –
Sim. A minha geração lutou contra o fascismo, contra o colonialismo, viu o
fascismo português cair e fez a independência.
JC –
A sua geração, pelo menos nos primeiros anos da independência, cuidou mais de
fazer uma abordagem literária das realidades urbanas, do que do campo…
MR
- É no campo, ou no interior, onde a guerra
civil teve uma intensidade diferente. Foi o caso do Huambo. Fiz uma trilogia de
livros (romances) sobre o Huambo. E há também o “Rioseco”, que toca o universo
todo da Nação, que faz uma profecia de que as águas do rio vieram ter ao mar e
eram águas do mesmo povo e da mesma Nação, contrariando a guerra, que nós
próprios inventamos por nos ter sido encomendada. Mas também eu posso escrever
um grande livro angolano sem falar nem da cidade nem do campo. Tudo depende da
imaginação do autor.
JC –
O propósito de MR não é apenas entreter o leitor? Tem sempre um propósito
ideológico estratégico além do mero contar de estórias?
MR – A
ideia é contar estórias boas. A obra de arte serve para a gente se deleitar. Um
deleite pessoal, direto. Há quem diga que hoje já não é possível ler um livro
de 200 páginas sem fazer muitas paragens. Há uma sobrecarga pior que a do ozono.
É a mídia e as manipulações de que fala o maior e mais velho sábio do mundo,
Chomsky.
JC –
A maioria dos críticos destaca como uma das características da escrita do MR a
ironia. Essa ironia é trabalhada ou é intuitiva?
MR
- Eu gosto do humor e da ironia e penso
que sei mexer com isso. É uma maneira de estar no mundo e de olhar para as
coisas. Manuel Ferreira escreveu na badana da primeira edição de “Regresso
adiado”, tratar-se de uma ironia chaplinesca, como a dos palhaços do circo que
fazem rir e chorar. Você repare no “Quem me dera ser onda”. Toda a gente diz
que riem muito mas afinal as gargalhadas são atravessadas pelo sofrimento de
uma mãe ante a tirania do marido, pela maneira fascista como é tratada a
professora e pela morte de Carnaval da Vitória no apogeu da reflexão. A
camarada que acabara de dactilografar o manuscrito a entregar-me em pedido de
lágrima, “camarada doutor não mate o porco. Porquê que matou o porco?” Estava
emocionado com a morte de Carnaval da Vitória. Olhava pela janela e via o mar,
desta vez, com as águas perplexas, eu sentia-me incinerado, cinzas ao mar na
espectativa de já sem vida experimentar todas as infinitas sensações de ser
espuma…
JC –
Falemos do romance “A Trança”. A trança é descrita, literalmente, como a da
cabeça de Citula (Maria) mas também parece significar algo mais vasto. A
linguista Amélia Mingas referiu-se a ela (trança) como Angola e o emaranhado
dos seus problemas. Afinal, a que remete a trança?
MR
- Interessante e profunda a observação.
Acho que nunca escrevi sem a paixão do silêncio dos ruídos que são ocupados por
cada palavra como lugar de música para dança das personagens que eu não quero
que sejam, quero que sejam pessoas, desta vez, do desconhecido, do
transcendente A Trança remete a todo o entrançado do nosso povo, das
identidades coletivas, dos nossos cheiros do mato, de outros contextos
culturais como a música, a dança, simbologias e o amor que se faz no meio do
capim como eu fazia no fim da minha adolescência.
JC –
Disse publicamente que escreveu “A Trança” num período em que esteve muito
doente. A ideia da morte iminente terá influenciado a opção da busca das raízes
e da espiritualidade por parte da personagem Citula?
MR -
Doente e sem massa para incineração e comba! Mas foi mais o estado de
paralisação. Eu já tinha a estória na cabeça para agarrar a espiritualidade
popular, fenómenos de transcendência que costumam ser reservados aos europeus
que os trouxeram para cá, caso dos milagres cristãos. Eu estive paralisado das
pernas. Entrei na clínica em carro de rodas. Fiquei três horas na clínica, e,
quase sem me fazerem nada, mandaram-me para casa com dois quilos de
Paracetamol. Cheguei a casa, deitei aquela trampa
fora e despiorei sozinho. A Clínica era tão boa que não me conseguiu matar.
JC –
Preocupa-o muito a ideia da morte, a possibilidade, ou melhor, a certeza, de que
vai morrer?
MR – O
que me preocupa não é a morte, é o fim da vida. Nunca ninguém que morreu veio
dizer como é a morte. Quando a gente acaba, acaba a vida. Claro que me
preocupo, obsessivamente, às vezes, porque sendo tudo finito, só o fim da vida
é infinito. Quando a pessoa acaba, acaba para sempre.
JC - Há momentos atrás veio à nossa conversa a
DISA. O que é que a DISA significou para si?
MR –
Correspondeu a um momento histórico e foi fruto da situação de guerra que se vivia.
Depois houve um desaperfeiçoamento da ideia. Isso aconteceu em todas as
sociedades que viveram momentos de guerra, como a nossa. Em guerra, por
exemplo, não se podia democratizar a comunicação social. A DISA correspondeu a
um estágio da situação, de tal modo que o Presidente Agostinho Neto teve a
noção exacta disso, quando interferiu no sentido de modificar os parâmetros e os
métodos usados pela DISA.
JC –
O que lhe ocorre dizer a respeito do 27 de Maio de 1977 e dos acontecimentos
que se lhe seguiram?
MR –
Foi um desastre nacional, uma geração que se perdeu, pessoas que foram mortas
indiscriminadamente. Houve um aproveitamento, a todos os níveis, daquilo que
possa ser usado como vingança ou inveja. Devia-se ter feito uma grande
assembleia nos anos imediatamente a seguir, uma comissão da verdade que tivesse
apurado os actos mais condenáveis, sendo certo que quem começou a queimar
pessoas foram os que abriram o leque para que houvesse uma série de vítimas. É
preciso perguntar: quem começou? O que não desculpabiliza depois quem utilizou
aquele momento para fazer perseguições fora da Lei (a Lei ainda nem sequer
estava em verdadeira execução, tudo era feito ainda importado do maquis, da
guerrilha). Foi um momento triste da nossa história e que nos penalizou bastante
a nível do desenvolvimento intelectual e dos conceitos que deviam valorizar
mais a nossa sociedade, como sejam a liberdade e a liberdade de expressão.
JC –
O que é que o Huambo, onde nasceu, lhe diz hoje?
MR –
Aquilo já não é a minha terra. Nem pelas pessoas que a têm governado.
JC -
Considera-se agora um caluanda?
MR –
Não. Sou mesmo de Angola.
JC –
Continua a escrever poesia? Para quando a retomada dos cadernos “Onze poemas em
Novembro”?
MR – Estou
em condições de pôr três ou quatro cá para fora, mas preciso de quem os arrume.
Para este ano já não vou a tempo, até porque tenho uma série de coisas para
fazer.
JC –
Sente-se suficientemente reconhecido cá dentro tanto como lá fora?
MR – É
diferente. O reconhecimento lá fora é de pessoas que se interessam por
literatura. Aqui é de pessoas cujos filhos ou netos leem “Quem me dera ser
onda”. À esquina da Martal, as quitandeiras todas quando me veem chamam “ó
poeta!”. E quando vou a atravessar a rua há carros que param para me deixar
passar. São esses grandes prémios que me emocionam.
JC –
Não é muito dado a honrarias públicas ou a efusões cerimoniais. Recusou o
prémio Nacional de Cultura e Artes, na categoria de Literatura, em 2003: pode
dizer agora a razão da recusa?
MR – Não
costumam perguntar aos que recebem a razão que os faz receber. Eu sei porque
não recebi. Não recebi por razões de pudor. É um direito. Quando recebi o
prémio Sagrada Esperança, pelo livro “Quem me dera ser onda”, dei o dinheiro ao
soldado das FAPLA que abateu o Mirage do exército do apartheid sul-africano, o
diploma e a medalha dei à Brigada Jovem de Literatura. Talvez na próxima
encarnação eu seja um girassol casado com uma borboleta.
JC –
Digamos que o Manuel Rui não é actualmente milionário porque não quis?
MR –
Não tinha jeito.
JC –
E mesmo hoje recusa-se a beneficiar dos privilégios que podiam advir do seu
percurso de participação na luta pela independência e na governação do país?
MR –
Tenho uma linha vermelha para viver. E nunca passei essa linha. Vi como se
rouba, como se roubou, como todo o mundo se enriqueceu. Pessoas a meu lado. Não
estou a condenar ninguém, nem é essa a minha intenção. Aliás, não tínhamos
burguesia para investir e muita dessa gente está, usando linguagem da
globalização, a “alavancar” o desenvolvimento económico, investindo aqui.
JC –
É a ética do escritor a falar mais alto?
MR – É
a ética que devia ser de qualquer cidadão. Não consigo separar o cidadão seja
do que for: do médico, carpinteiro ou sapateiro. Trabalho com palavras, por
prazer. Era bom que o sapateiro também trabalhasse com sola por prazer.
JC –
Saiu muito cedo da política activa, formal. Porquê que abandonou a política?
MR –
Tinha que sair da política, não tinha jeito. Saio da política directa, governamental,
e passo por departamentos do MPLA: director
do DOR (Departamento de Orientação Revolucionária) e depois do DIP
(Departamento de Informação e Propaganda). Fui para lá porque me disseram que
era necessário e tinha que ser eu. A meio desse tempo fui ter com o Presidente
Neto, disse-lhe que queria sair, ele disse-me que seria uma traição e aguentei
até ao fim. Abandono mais tarde a política por desprazer.
JC –
Está ligado a alguma Universidade, dá aulas?
MR – Ninguém
me convidam para falar. Só no outro dia é que cá eu falei numa Universidade. Lá
fora convidam-me e pagam-me para falar nas Universidades e escrever para os jornais.
Aqui acho que até pagariam para eu não
escrever e para não falar. “Eh pá, já que não estás a escrever toma lá uma
kinda de fuba”. Acredito que há por aí baiúcas
a que chamam universidades, que se eu lá for falar poderá haver professor a ser
rebaixado pelos alunos.
JC –
Quer deixar uma mensagem para os jovens?
MR –
Dizer que ler enriquece as pessoas e nós precisamos de uma juventude
enriquecida de conhecimentos. É lendo que se enriquece.
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Manuel Rui nasceu no Huambo a 4 de Novembro de
1941, de onde partiu, depois de concluir os estudos liceais, para Portugal,
onde licenciou-se em Direito pela Universidade de Coimbra. Teve uma actividade
política activa, chegando a exercer funções governativas e partidárias (MPLA)
nos primeiros anos de Angola independente.
NOTA: Esta entrevista foi publicada originariamente no jornal Cultura de 21 de Julho de 2014.
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