terça-feira, 25 de maio de 2021

FILÓSOFO E ESCRITOR LUÍS KANDJIMBO “As elites políticas africanas têm hipotecado o futuro do continente”




Um dos intelectuais angolanos mais respeitados em África, o Professor Luís Kandjimbo tem dedicado parte significativa do seu tempo à reflexão sobrequestões filosóficas e literárias numa perspectiva endógena. Na entrevista que a seguir se publica, a propósito do 25 de Maio, o Dia de África, Luís Kandjimbo afirma que “as elites políticas são responsáveis pelas catástrofes que devastam o continente”, isto porque “se deixam seduzir por teorias monistas e eurocêntricas, suportadas por uma ignorância epistémica das complexas realidades continentais”



 ISAQUIEL CORI

África continua por realizar o seu desígnio de independência económica e  desenvolvimento. O que é que impede ou dificulta a realização desse desígnio?

As razões são múltiplas, multiformes. Aparentemente, os problemas económicos do nosso continente resumem-se simplesmente ao conceito monista de   “desenvolvimento”. Isto quer dizer que a ausência de “desenvolvimento” é a causa da miséria existencial e material dos africanos. O que é o “desenvolvimento”, afinal, se se perder de vista a dimensão ética da economia? A resposta e a compreensão da problemática referente à independência económica de África, deve ter o seu verdadeiro centro na condição existencial das mulheres e dos homens que povoam o continente. Por essa razão, integro aquela legião de africanos que não reduzem a existência dos humanos  à quantificação dos bens instrumentais que devem estar ao seu serviço. Portanto, se a independência, a autonomia, a autosuficiência das comunidades humanas é mais complexa do que o reducionismo economicista parece fazer crer, então o que pode conduzir à realização desse desígnio não pode ser encontrado nos modelos filosóficos, culturais, políticos e económicos que se tomam de empréstimo ao Ocidente e, mais recentemente, ao Oriente. Como dizem alguns por aí, em África não se inventou nada. A “roda já foi inventada”. Isto é uma manifesta amnésia acerca do símbolo da justiça, a balança, por exemplo, que foi inventada no Egipto Antigo. Por isso, o centro do problema está por desvendar porque ele reside, em primeiro lugar, na compreensão do Homem na sua plenitude e que os modelos económicos devem servir. Quer dizer, há aí um imperativo cultural, em primeiro lugar, já que o Homem é antes de mais um animal cultural. Do ponto de vista conceptual, há que contar irrevogavelmente com o carácter endógeno dos aparatos teóricos, calibrando as ferramentas analíticas suportadas por cabeças assentes em vértebras próprias, nossas, que não sejam próteses. Na história intelectual continental estas ideias têm os seus clássicos. De igual modo em Angola.

Dir-se-ia que África tem sido “traída” pelas suas elites políticas?

Nada seria mais exacto, se não respondesse afirmativamente. As elites africanas, especialmente as elites políticas, têm hipotecado o futuro do continente, quando preferem os discursos dissonantes da dependência, paradoxalmente, como se o desenvolvimento económico de uma comunidade histórica fosse susceptível de reprodução fundada no expediente do “copy paste”. As histórias do pensamento económico ao nível global, particularmente a filosofia da economia, fornecem muitos exemplos que desvendam o perigo das generalizações teóricas e metodológicas. Por aí, fica provada a inexistência de uma validade universal dos actuais fundamentos e receitas do neoliberalismo. Como se sabe, a falência daquela teoria eurocêntrica do alemão Max Weber, segundo a qual o sucesso do capitalismo ocidental tinha a ver com a ética protestante, foi uma consequência dos casos de desenvolvimento económico bem sucedido em países e territórios da Ásia, tais como o Japão, a Índia, a China, a Coreia do Sul, Malásia, Hong Kong e Singapura. Estes são bons exemplos da dúvida que deve ser cultivada sobre a validade universal das filosofias políticas, económicas ou culturais ocidentais. Por isso, as elites políticas são responsáveis pelas catástrofes que devastam o continente, na medida em se deixam seduzir por teorias monistas e eurocêntricas, suportadas por uma ignorância epistémica das complexas realidades continentais.

Nos textos que tem publicado aos domingos aqui no Jornal de Angola tem mostrado que o continente possui uma série de pensadores originais e que se posicionam nos grandes debates filosóficos globais. Nesse aspecto os seus textos têm sido autênticas revelações. Haverá uma falta de circulação do conhecimento africano na própria África?

Essa falta de circulação interna do conhecimento africano é a expressão do modelo de pensamento e de produção de conhecimento que se funda na extroversão cujo retrato está na monoprodução de matérias primas. Repare nisto. Apesar da aparente empatia do  Ocidente ou do Oriente por nós, eles nunca deixarão de defender os seus interesses, reivindicando competências científicas que presumem ter acerca das realidades do  continente para seu benefício. O que está em causa é o modo de produção do conhecimento. A este respeito, as reflexões filosóficas africanas são relativamente abundantes. A consciência da importância que têm as respostas sobre o modo de produção do conhecimento exigem uma séria vigilância crítica permanente para que nós em África tenhamos uma filosofia inflexional, como dizia o democrata-congolês Ngoma-Binda. Devemos fazer um uso adequado das nossas capacidades e produções científicas, deixando assim de ser vítimas dos modelos coloniais que agora sofrem mutações e são vendidos sob a forma de consultorias ou algumas receitas do Banco Mundial e do Fundo Monetário Internacional. Uma das figuras que nas organizações de Bretton Woods chamou atenção para isso, relativamente ao continente africano, foi o australiano James Wolfensohn, um dos mais lúcidos presidentes que o Banco Mundial já teve.

Porque é que às vezes dá a impressão que em África os governos andam de costas voltadas à realidade endógena mais profunda dos seus países?



As elites políticas africanas não têm sabido dar valor à Filosofia e História de África, por outras palavras, ao pensamento africano, às experiências vividas, às narrativas correspondentes e aos sujeitos que as produzem e, consequentemente, ao conhecimento científico que lhe está subjacente. Isto tem uma consequência. Governa-se sem bússola e, ainda por cima, cultiva-se uma repugnância pelo conhecimento e saberes gerados no continente africano, numa clara manifestação de dependência, preferindo o que é proposto a partir de certas instituições da Europa ou da América do Norte. Tudo isso como se fosse possível governar uma comunidade histórica a partir de um centro distante à semelhança do que acontecia com o colonialismo. Isto dá uma ideia do alcance das excelentes ideias que, por exemplo, o queniano Ali Mazrui, o nigeriano Olufemi Taiwo e o beninense Paulin Hountondji debitaram sobre tópico.

Chegou a ser vice-ministro da Cultura. Nessa qualidade que propostas fez e que foram adoptadas pelo Governo com efeitos duradouros na vida cultural do país?

Em 2008, quando fui convidado para ser vice-ministro da Cultura encontrava-me em Lisboa ao serviço da diplomacia cultural angolana, havia cerca de sete anos. Após uma breve experiência de trabalho com o malogrado embaixador Oswaldo Serra Van-Dúnem, integrava a equipa do embaixador Assunção dos Anjos, um dos mais prestigiados diplomatas angolanos e que, curiosamente, conferia à Cultura o devido estatuto. Portanto, essa experiência diplomática a nível bilateral e multilateral, associada ao conhecimento acumulado, enquanto funcionário do Ministério da Cultura, dava-me uma largura de horizontes acerca dos problemas e das políticas públicas sectoriais. Aliás, desde 1982, participava em eventos de que saíam deliberações importantes para a política cultural de Angola. Por exemplo, em 2007, eu era membro da Comissão Científica para a Redacção da História da Literatura Angolana que transitava da gestão conduzida pelo ministro Boaventura Cardoso e seus vice-ministros. Com ele pretendia-se lançar uma pedra no edifício da política da leitura, do ensino das línguas e da literatura angolana. Lamentavelmente, esse projecto para o qual tinha sido chamado igualmente a dar pertinentes contribuições, e outros que compreendiam a formação artística, a legislação cultural, a condição do artista, as indústrias criativas e culturais,  sofreram uma guinada, por força das circunstâncias. Esses eram domínios da minha esfera de competências, enquanto vice-ministro. Mas, a minha passagem pelas referidas funções foi efémera, durou mais ou menos dezasseis meses. Deixei o cargo em 2010, logo após a aprovação da Constituição da República. Passei a dedicar-me exclusivamente à docência que, aliás, não abandonei durante o exercício das funções de vice-ministro da Cultura. Voltei à diplomacia. Fui consultor do Ministro das Relações Exteriores e depois, em virtude de ter vencido o concurso internacional para preenchimento do cargo de Director para Acção Cultural e Língua Portuguesa da CPLP, regressei às lides da diplomacia cultural multilateral, no Secretariado Executivo em Lisboa, onde andei durante quatro anos. Neste capítulo, apesar dos problemas orçamentais com que se debatia e ainda se debate a CPLP, julgo, modestamente, ter deixado as minhas impressões digitais na coopração cultural multilateral e na política cultural externa de Angola.

Há na sua obra um apelo constante à necessidade de um pensamento ou de uma visão endógena. Como é que definiria o pensamento ou a visão endógena tanto no domínio dos estudos literários como filosóficos?

Aprendi com os mais-velhos, sábios do continente que nos devem orgulhar. Um é o falecido historiador burkinabe, o professor Joseph Ki-Zerbo. Outro, também falecido, é o teólogo e sociólogo camaronês, Jean-Marc Ela. Há um livro publicado em 1992, sob a direcção de Joseph Ki-Zerbo, em que ele dá o tom no que se refere à operacionalização do conceito de desenvolvimento endógeno. O endógeno, dizia ele, é  um conceito identitário e estratégico. Quanto a mim, diz respeito ao que não é absoluto. É sintoma de vitalidade de um sujeito individual ou colectivo que procura prover as suas necessidades ontológicas, contando com o conhecimento das complexas realidades, próximas ou distantes, que o cercam. Se o conhecimento endógeno é um bem de primeira necessidade, cultivar o endógeno é não dormir na esteira dos outros, porque quem assim procede dormirá eternamente no chão. É a lição que se pode tirar de um provérbio africano, no dizer do Velho Joseph Ki-Zerbo.

A ideia da afirmação  de uma perspectiva analítica endógena (africana) em contraposição à perspectiva ocidental é realmente produtiva, tendo em conta que a perspectiva ocidental, ao fim e ao cabo, é essa que vem sob a capa da globalização?



Os Estudos Globais enquanto domínio interdisciplinar ou displina académica vêm demonstrando que a epistemologia ocidental, a filosofia do conhecimento ocidental em geral, é eurocêntrica, assenta na exclusão do Outro, africano, asiático e sul-americano, partindo do pessuposto segundo o qual o “universal” confunde-se com o que é ocidental, europeu ou norte-americano. Procede-se à racialização da filosofia e da ciência. Perde-se de vista o lugar a partir do qual se fala e pensa. Como se pode compreender, não se trata de uma contraposição ou oposição gratuita. Trata-se da necessidade de fazer pedagogia, introduzir alguma racionalidade nesse falacioso pensamento secular que, remontando à antiguidade europeia, sustenta a imaginação e as invenções do Ocidente.

Os saberes da tradição africana circulam na oralidade e para o seu conhecimento é preciso o domínio das línguas africanas, que, infelizmente, no caso de Angola e outros países, não têm merecido a devida dignificação institucional. Há o risco desses saberes se perderem?

Voltamos ao problema do modo de produção do conhecimento sobre o qual Olufemi Taiwo produziu uma interessante reflexão. Essa produção comporta aquilo a que Paulin Hountondji, após a revisão das suas posições iniciais, vem reconhecer como “saberes endógenos”. Estes saberes, as formas de expressão oral e as respectivas línguas são indispensáveis. Aliás, a União Africana dispõe de diferentes instrumentos  em que se consagra os saberes e as línguas africanas como fundamentos do Renascimento Cultural. A  UNESCO, de que Angola é também Estado-Membro, aprovou a Convenção Sobre a Protecção e Promoção da Diversidade das Expressões Culturais de 2005. Ao abrigo de instrumentos internacionais como a Carta do Renascimento Africano, por exemplo, Angola, que ractificou em 2016 e depositou três meses depois, tem a obrigação de integrar no seu direito interno as formulações normativas que daí derivam. De igual modo o que vem plasmado nessa Convenção da UNESCO.

Na sua opinião as universidades em África, enquanto centros geradores de conhecimento, são devidamente valorizadas pelos governos africanos?

As universidades em África são dispositivos do modo de produção do conhecimento. Mas nem sempre os governos e os investidores privados reconhecem tal facto. Trata-se de uma negligência que afecta a qualidade de ensino no nível terciário. Por isso, as universidades públicas e privadas, descontando honrosas excepções, não cumprem os seus fins, objectivos e missão como seria desejável. São poucos os bons exemplos, nesta matéria. Em Angola, isso também é evidente. Aliás, as estatísticas podem ser úteis, não mentem. Basta ler os relatórios da SADC e da SARUA, a Associação Regional das Universidades da África Austral. Será necessário investir mais, evitar a armadilha de que a prioridade deve estar centrada em áreas disciplinares e científicas que constituem as chamadas STEM, ciências, tecnologias, engenharias e matemáticas. Não é verdade. O financiamento consagrado ao ensino superior e à investigação científica deve ser total, correspondendo àqueles indicadores respeitantes ao capital humano para os quais aponta a Estratégia Continental para a Educação 16-25 e a Agenda 2063 da União Africana. De contrário, a longo prazo não teremos nem Zona de Livre Comércio, nem industrialização, a nível regional ou sub-regional. O meu amigo Marcolino Moco deu um valioso contributo, ao mais alto nível, para essa reflexão, com o seu livro dedicado ao pensamento jurídico pan-africano e ao Direito de Integração Regional.



De que modo é que todo o potencial de saberes e de talentos das diásporas africanas deveria ser devidamente enquadrado e aproveitado em benefício do continente?

O imperativo reside na urgência de transpor os condicionalismos do poder de definição do Ocidente, na medida em que nada legitima o monopólio unicêntrico do carácter universal da ciência e de outros saberes. A existência de diásporas africanas intelectuais recentes, para as quais Angola contribui com uma minúscula percentagem, revelam a eficácia das estratégias de atracção de cérebros africanos para as universidades e centros de investigação do chamado Norte Global. Os governos africanos devem reverter a situação, transformar essa drenagem de cérebros como estratégia sua à escala continental. Há que contar também com os aportes das diásporas intelectuais africanas antigas, os afrodescendentes, existentes em todo o mundo, que fazem parte da chamada 6ª sub-região no contexto da União Africana.

Na sua qualidade de membro do Comité Científico Internacional da UNESCO para elaboração da História Geral de África, pode dizer-nos, concretamente, qual é o campo da sua contribuição pessoal?

Foi em Novembro de 2013 que recebi uma carta da Directora-Geral da UNESCO, então Irina Bokova, através da qual me formulava o convite para ser membro do Comité Científico Internacional que organizaria a edição do IX volume da História Geral de África. Ela anunciava que o Comité Científico seria constituído por dezassete membros, escolhidos de acordo com a sua competência pessoal e enquanto especialistas nos domínios relacionados com os desafios com que se confronta o continente africano. A essa equipa multinacional de que fiz parte coube  a responsabilidade científica e intelectual de coordenar o trabalho editorial e outras acções conexas, tais como a leitura e revisão de dezenas de textos que constituem os capítulos, propostas e recomendações de autores. A meio do percurso, concluiu-se que o material produzido era abundante e de grande qualidade. O Comité propôs que a Directora-Geral aprovasse a decisão de publicar três novos volume da História Geral de África, designadamente, IX, X e XI. É o que vai acontecer. Quanto à minha contribuição pessoal, sou autor de dois capítulos, um no IX volume, que tematiza a descolonização das literaturas africanas e outro no volume X, que tematiza o papel dos intelectuais, escritores e artistas.

Existe realmente uma Filosofia Africana?

Na segunda metade do século XX, um dos mais importantes debates que mobilizava os meios académicos africanos e da diásporas africanas esteve centrado na luta de posições e polarização de oponentes, tendo em vista a legitimação da Filosofia Africana e suas correntes de pensamento. Esta é uma questão que hoje já não suscita discussão argumentativa. Reina a unanimidade nesta matéria. Não faz sentido nenhum revelar cepticismo a respeito desta capacidade dos Africanos, a de produzir um discurso racional e sistemático sobre o mundo, a natureza,  a sociedade, enfim, os fenómenos da própria existência humana. A História da Filosofia Africana fornece as devidas âncoras. Basta ler o livro sobre a filosofia africana do período faraónico do professor congolês Théophile Obenga. A Filosofia Africana hoje é o centro de gravidade de um  campo disciplinar e académico. À volta dele ministram-se cursos, redigem-se teses de mestrado e dissertações de mestrado, organizam-se congressos, publicam-se livros e editam-se revistas especializadas. O meu caro amigo não imagina o volume da bibliografia. No nosso país é também um tópico dos programas da disciplina no segundo ciclo do ensino secundário e uma disciplina dos cursos de Licenciatura em Filosofia. Discutível pode ser eventualmente a qualidade do seu ensino e as competências pedagógicas de quem a lecciona.

 Pode apontar cinco aspectos altamente positivos do continente africano, nos vários campos, e que devem ou deveriam orgulhar qualquer africano?

Quanto a mim, merecem ser mencionados os seguintes domínios: Papel das mulheres na família (Ética); População jovem (Demografia); Tradição oral (História); Obras literárias e de arte como património (Estética); Metais raros e outros recursos naturais (Geociências).

 Voltamos à questão inicial. Quais são os grandes entraves ao desenvolvimento de África?

A dependência multiforme é a metonímia de um enorme obstáculo, como disse. Remover esses obstáculos significa introduzir rupturas de fundo e assumir o poder de definição das prioridades do desenvolvimento endógeno, de acordo com as nossas necessidades. Este é o desafio das próximas décadas, se quisermos tirar proveito daquilo que se vem designando como “dividendo demográfico”, o excedente demográfico de uma população activa jovem, capaz de garantir ao continente um capital humano à altura do seu tempo.



terça-feira, 27 de abril de 2021

LUÍS KANDJIMBO Pela construção do cânone literário angolano




 “Alumbu – O Cânone Endógeno no Campo Literário Angolano - Para uma Hermenêutica Cultural”, o livro de ensaios de Luís Kandjimbo editado pela Mayamba e apresentado ao público na última quarta-feira, em Luanda, na sede da União dos Escritores Angolanos, é uma colectânea de textos que pretende inscrever-se, segundo o próprio autor, “na melhor tradição ensaística e tematizar problemáticas da cultura angolana no contexto mais geral das culturas africanas”

Isaquiel Cori

É no domínio da literatura, mais concretamente da formulação ou da interpretação das poéticas, e da Cultura em geral, onde se travam, em última instância, os grandes combates pela prevalência da ideia de identidade e de soberania dos povos. Porque na verdade tudo começa pelas ideias que nutrimos a nosso respeito, sobre o que nos rodeia, sobre donde vimos e para onde queremos ir. E é essa capacidade de geração de ideias próprias que a globalização, tendencialmente, destrói ou esmorece nas sociedades periféricas deste “vasto mundo”.

A crónica pobreza material, ao atirar as pessoas para um círculo de sobrevivência, tira-lhes a capacidade de valorizar ou priorizar o abstracto, que é a dimensão onde, afinal de contas, se estrutura o pensamento a respeito de nós mesmos, dos nosso passado e do nosso destino.

Luís Kandjimbo (LK) é um intelectual angolano que, de modo concreto, consistente e coerente, desde a década de 1980, vem publicando textos ensaísticos, em seminários, congressos ou conferências em Angola e no exterior, em publicações periódicas e em livros, onde o seu pensamento, que no princípio se circunscrevia à literatura e depois à filosofia e à Cultura, possui um leitmotiv: a perspectiva angolana e africana da análise. Para ser mais preciso, a perspectiva “endógena” da análise dos fenómenos literário e cultural angolano e africano. E para levar a cabo essa empreitada, LK, indivíduo metódico e auto-disciplinado, impôs-se a si mesmo um autodidactismo quase sem paralelo entre nós, ao mesmo tempo que foi alicerçando a sua formação académica.

A par do “endogenismo” filosófico, literário e cultural, LK, seja em palcos de debate no país ou no exterior, conforme está patente em toda a sua obra ensaística, vem travando um combate contra o “crioulismo” a que uma determinada corrente de intelectuais lusos e angolanos pretend(e)ia reduzir ou enquadrar toda a literatura e cultura angolanas.

 

Clarificar a posição

Neste livro que acaba de publicar, LK reactualiza o vários debates que travou a respeito e clarifica, mais uma vez, a sua posição: “Sendo a presença de alguns segmentos de origem europeia incontornável na sociedade angolana, o espectro da perspectiva naturalista do hibridismo ou da perspectiva multicultural de inspiração anglo-americana que pode daí derivar, influenciadas pelas soluções americanas da discriminação positiva ou affirmative action, não deve anular uma História feita de resistências contra a ocupação colonial portuguesa cujos sujeitos são as populações ou as comunidades étnicas autóctones de Angola. E os contributos de origem europeia, que não podem ser ignorados, hão-de obedecer a uma lógica endógena.”

A perspectiva endógena dos estudos de LK levou-o a propor um cânone literário angolano baseado numa definição de literatura angolana que vai muito para além do “crioulismo” e valoriza igualmente a memória ancestral africana. “(...) à angolanidade literária subjaz uma angolanidade – pressuposto que comporta uma experiência, um sistema de referências, uma memória colectiva, um sentido de passado ou história, sobre o qual assenta a estratégia dos escritores. O texto literário é assim a materialização de uma das várias modalidades possíveis da experiência angolana.”

Essa citação de LK, constante do seu livro “Apologia de Kalitangi”, é a prova da sua visão “ecumênica” do fenómeno literário angolano, ao contrário do rótulo de “fundamentalista negro” a que alguns críticos o pretendiam remeter. Evidencia esse “ecumenismo” a sua proposta de “Tópicos para um Curso Ideal de Literatura Angolana”, contida em “Alumbu”, cuja introdução geral aponta precisamente para os saberes filosóficos angolanos, a geografia de Angola, a história de Angola e às línguas nacionais angolanas, passando pela discussão de “algumas questões teóricas como o conceito de angolanidade e de angolanidade literária versus crioulidade”, a problemática da língua portuguesa em Angola e a sua coexistência com as línguas nacionais, incluindo a construção do cânone literário angolano, a literatura moderna de Angola, a história da literatura angolana e a sua periodização.

Em suma, LK tira as consequências práticas dos seus estudos teóricos sobre a literatura e a cultura angolanas, propondo um programa de ensino da literatura angolana.   

Mas não se fica por aí. Um olhar ao índice do livro revela logo ao que o autor veio: “O Cânone no Campo Literário Angolano”; “O Endógeno e o Universal na Literatura Angolana”; “Outros Cânones e Novas Leituras para a Literatura Angolana”; “A Problemática do Ensino da Literatura Angolana e a Teorização Literária (...)” ; Tópicos para um Curso Ideal de Literatura Angolana”; “A Literatura Angolana Perante a Formação de um Cânone Literário Mínimo de Língua Portuguesa e as Estratégias da sua Difusão e Ensino”, “Duas Gerações Literárias no Dealbar do século XX Angolano – Proposta para a História Literária”; “Angolanidade e Crioulidade: O Substantivo e a Falácia”, “A Incompletude no Processo de Disciplinarização das Literaturas Africanas”; “Kalitangi: Um Herói da Literatura Oral Umbundu”; “Para uma História do Etnónimo Ovimbundu” e “A Nação – Sujeito Colectivo, Representações do Território e Identidade Cultural”.

Quando, em 1984, em Paris, o grande Mário Pinto de Andrade foi ao encontro do jovem LK, ao fim de uma comunicação que este acabara de fazer numa conferência, felicitando-o e dizendo-lhe “Gostei da sua comunicação”, literal e “fisicamente” (se assim é possível dizer) estabeleceu-se uma linha de continuidade na definição do conceito de angolanidade que aquele intelectual ajudou a cunhar e defendeu ao longo de toda a sua vida contra a “crioulidade” redutora, e que LK se propôs a aprofundar num contexto global de erosão das identidades e dos apelos à “multiculturalidade”.

Luís Domingos Francisco, o próprio Luís Kandjimbo, nasceu na cidade de Benguela em 1960. Ensaísta e crítico literário, é membro da UEA - de que é actualmente presidente da mesa da assembleia-geral – da Academia Angolana de Letras, da Associação Internacional de Estudos Literários e Culturais Africanos e da Associação para o Estudo das Literaturas Africanas de Paris. Doutorado em Estudos de Literatura, mestre em Filosofia pela Universidade Nova de Lisboa e licenciado em Direito pela Universidade Agostinho Neto, presentemente é director-geral do Instituto Superior Politécnico Metropolitano de Angola, professor nos cursos de pós-graduação da Faculdade de Ciências Sociais da Universidade Agostinho Neto e da Academia de Ciências Sociais e Tecnologias e investigador do Instituto de Estudos Literários e Tradição da FCSH da Universidade Nova de Lisboa.

Tem várias obras publicadas, desde 1988 quando publicou “Apuros de Vigília” (ensaios), sendo as mais recentes “Ideogramas de Ngandji” (ensaios, Triangularte Editora, 2013) e “Acasos & Melomanias Urbanas” (estórias, Editora Acácias, 2018).

O conjunto da sua obra estende-se pela poesia, o conto e o ensaio. Nos últimos anos surpreendeu a todos quando se apresentou publicamente como músico-guitarrista, actuando ocasionalmente para plateias selectas.

 

“ENTRE A LUA, O CAOS E O SILÊNCIO: A FLOR”: Antologia de poesia angolana com edição alargada

                                                           CAPA DA EDIÇÃO DE 2021
 

A antologia de poesia angolana “Entre a Lua, o Caos e o Silêncio: a Flor”, organizada por Irene Guerra Marques e Carlos Ferreira (Mayamba, 2011)  acaba de ganhar uma segunda edição revista, alargada e actualizada, com chancela simultânea da editora angolana Mayamba e da portuguesa Guerra e Paz. Em Portugal o livro já está em circulação, em Angola o Jornal de Angola só conseguiu apurar que está para breve

 

Isaquiel Cori

 

A antologia inclui “formas de arte verbal ou oratura” com poemas recolhidos das tradições Kikongo, Kimbundu, Kwanyama e Umbundu e os primeiros documentos literários  (poéticos), que remontam ao século XVII. Os precursores José da Silva Maia Ferreira, Cândido Furtado, Cordeiro da Mata, Pedro Félix Machado, e outros, que produziram no século XIX, têm igualmente os seus poemas referenciados. O grosso dos poetas (e seus poemas) está, obviamente, recenseado sob o capítulo “Modernidade e Contemporaneidade – Continuidades e Descontinuidades Séc. XX-XXI). Estes são, enfim, os poetas do nosso tempo. Organizados alfabeticamente, estão aí Abreu Paxe, Adriano Botelho de Vasconcelos, Agostinho Neto, Aires de Almeida Santos, Amélia Dalomba, Ana Paula Tavares, António Pompílio, Conceição Cristóvão, Gonguita Diogo, João Tala, John Bella, José Luís Mendonça, José Eduardo Agualusa, Lopito Feijó, Manuel Rui, Manuel António, Ondjaki, Sapyruka… Para atestar da abrangência dos poetas antologiados, desafiamos o leitor a pensar num poeta angolano qualquer, de qualquer geração, e apostamos que estará certamente neste livro de mais de mais de 600 páginas. Estamos a falar da edição publicada em 2011.  

 

Modificações profundas

Irene Guerra Marques disse ao Jornal de Angola que a nova edição sofreu profundas modificações em relação à de 2011, pois trata-se de uma edição revista, acrescentada e actualizada.  “As alterações introduzidas dizem respeito à inserção de novos dados, novas informações, novas notas explicativas e novos poetas que contribuíram para o alargamento do corpus”.

Ainda segundo a investigadora foram respeitadas as grafias originais (sécs. XVII e XIX), bem como as traduções em língua portuguesa. “Como novidade esclarecemos a questão da autoria de um poema do séc. XVII, considerado no anonimato até agora. A Introdução foi alterada com vista ao fornecimento de mais informações sobre as gerações que integram a antologia e o prefácio é de Francisco Soares, especialista em literatura e estudos literários”.

A inclusão de poetas do século XXI, que o crítico literário João Fernando André considera como pertencendo à Geração da Insana Idade, marca igualmente a diferença em relação à edição anterior.

Carlos Ferreira, co-organizador, igualmente contactado por este jornal, reiterou a existência de diferenças substanciais entre as duas edições. “No domínio dos autores lembro o acrescento de Carlos Pedro, Job Sipitali e Helena Dias, entre outros”, afirmou, acrescentando que a revisão de todo o trabalho foi bastante melhorada, pois “a edição de 2011 tinha bastantes erros, fruto de uma falta de revisão aturada”.

A segunda edição  da antologia Entre a Lua, o Caos e o Silêncio: a Flor” só foi possível, segundo Carlos Ferreira, graças à empresa DST, que a patrocinou.

 

Dupla chancela

“Esta nova edição que é da Guerra & Paz editores, mas também da Mayamba, tem mais cerca de 70 páginas e alargou a poetas contemporâneos o arco temporal coberto pela antologia. A capa, o layout do miolo, são completamente novos. Usámos, a pedido dos organizadores, ilustrações do Mestre José Rodrigues, mas optámos por uma imagem diferente da que se usou na edição de 2011, escolhendo uma imagem mais feliz e optimista - a de 2011 tinha como símbolo mais forte a lágrima - e mais cósmica, com sol e lua, o que joga com o título da antologia”, explicou Manuel Fonseca, responsável editorial da Guerra & Paz. “Por outro lado, pintámos à mão as três faces do miolo, num tom ‘bordô’ que casa com o bordejamento da mesma cor da capa e da contracapa. Julgo que fizemos um trabalho decente, porque a recepção tem sido muito boa”, completou.

O Jornal de Angola tentou contactar a editora Mayamba, na pessoa do seu responsável Arlindo Isabel, para, entre outros aspectos, saber quando a nova edição de Entre a Lua, o Caos e o Silêncio: a Flor” será posta a circular em Angola, lamentavelmente sem sucesso.


                                                          CAPA DA EDIÇÃO DE 2011

 

POETA LOPITO FEIJÓ: “A poesia e de um modo geral a literatura salvaram-me”

 


O poeta e crítico literário Lopito Feijó recebeu na última quarta-feira, em Luanda, o galardão do Prémio Guerra Junqueiro das mãos da curadora Avelina Ferraz. Não cabendo em si de satisfação, Lopito Feijóo concedeu dias depois ao Jornal de Angola a entrevista que a seguir se publica, onde fala do seu percurso poético e de vida. O poeta assume-se como defensor de todas as “justas causas” e confessa que a poesia, e de um modo geral a literatura, são responsáveis por continuar vivo

 

Isaquiel Cori

 

O Prémio Guerra Junqueiro é para si um momento alto de consagração da sua carreira literária? 

Eu nunca me propus fazer carreira alguma, nem sequer pensei em fazer carreira literária, mas, sempre pensei ser um escritor e, mais concretamente, um poeta.  Na verdade, não me simpatizo muito com a palavra carreira. Acho-a pouco “palavra”, ou mesmo direi, pouco poética. Palavra para mim tem que ser ou tem que ter um mínimo de poeticidade. Eu suspeito e duvido muito da densidade e consolidação de algumas ditas carreiras em todas as áreas das sociedades. Até porque a mídia e as redes sociais hoje promovem tudo e mais alguma coisa, muitas vezes sem critérios meritórios.   

Entretanto, reconheço que a atribuição do prémio em referência ao escritor que sou, constitui um dos mais sublimes e singelos momentos da minha vida artística, pois é o reconhecimento de pouco mais de 40 anos de vida artística e literária.     

  

Publicou várias obras em Portugal, onde vai regularmente a festivais literários e em Moçambique é dos escritores angolanos mais conhecidos. No Brasil em determinados meios literários também é conhecido, tal como em Cabo Verde e na Guiné Bissau. Tudo isso graças a um esforço pessoal?  

Sim. A resposta está dada. Tudo isso graças a um esforço pessoal com muitos sacrifícios espirituais e até materiais, pois uma internacionalização de vida literária implica pesados custos ao orçamento doméstico do simples, humilde e pobre cidadão amante das letras, num contexto político e social onde as questões espirituais e os motivos de prestígio ainda são subalternizados e não valorizados pelos departamentos governamentais “a quem de direito”, como se diz popularmente. Não queiras saber nem imaginas quanto tenho gasto ou já gastei para a promoção da literatura e da cultura angolana além-fronteiras.  São milhares de divisas cujo retorno vai surgindo paulatina e progressivamente no âmbito de um acumular de prestígio para nós, para a cultura angolana e para a nação e o povo angolano em geral… mesmo sem os necessários apoios e reconhecimentos oficiais do Estado.     

  

Como é que um menino que cresceu no Cazenga acaba por estar no centro de movimentos literários como a Brigada Jovem de Literatura e o OHANDANJI? 

Esta pergunta merece uma resposta deveras quilométrica. Entretanto, vou em poucas palavras dizer que tudo acontece e vai acontecendo com base em princípios fundamentais que norteiam a minha postura social.  A humildade, a simplicidade, o foco, o desprezo pela vaidade, o desprezo pelos motivos de poder como os cargos e encargos disso e daquilo e outros quejandos. O amor ao próximo e o respeito pelo “outro”, vivendo e convivendo intensamente um dia após o outro, pois, como também tenho dito, o futuro é coisa dos deuses e o meu futuro hoje já é presente.    

  

Nos anos 80 os escritores da sua geração tinham plena consciência de que faziam a ruptura e que eram agentes de uma transformação histórica na literatura angolana?  

Definitivamente ganhei consciência de que estava num processo de ruptura com o passado quando, em companhia de alguns outros confrades brigadistas vimos a necessidade, e tivemos a oportunidade, de romper   publicando em 1984 o manifesto estético-literário OHANDANJI, do qual resulta a poética que ainda hoje cultivamos e que continuamente nos vai consagrando. Quero dizer que tudo o que fizemos e ainda vamos fazendo, foi feito e continuaremos fazendo conscientemente. Com carma, alma e sempre mais carma. 

  

Eram muitos os que escreviam naqueles anos, hoje sobram poucos. Muitos perderam o entusiasmo pela escrita, uns foram levados pela morte ou arrastados por outras correntes da vida. Quer evocar nomes, coetâneos que injustamente estão esquecidos mas que foram importantes no percurso da vossa geração?  

Esquecidos? Não existem ou não conheço. Existem sim os de pouca entrega e como tal menos divulgados pela comunicação social em razão do muito pouco dinamismo das suas acções, pois poucos são os que sabem que o trabalho do qual resulta a afirmação artística implica entrega, coragem, sacrifícios do corpo, e simultaneamente, da alma, e fundamentalmente persistência, insistência e consciência. Olha que nem todos os humanos e jovens estão predispostos a suportar a maledicência, a intriga, a inveja e, não raras vezes, a calúnia que grassa no mundo das artes, das quais a arte literária não escapa. Portanto, os que se afirmaram e se vão consagrando o fizeram e vão fazendo com vontade e entrega pessoal. Os esquecidos, esqueceram-se e basta, pois são fortes os que se demarcam e se distinguem no âmbito da história universal.    

 

Como é que o Lopito foi a deputado? Nos dias de hoje como é que considera aquele período da sua vida: um parênteses na sua carreira literária?   

Num dos momentos mais difíceis e conturbados da vida dos angolanos a mãe pátria fez um chamamento ao qual respondemos afirmativamente, representando no parlamento, em razão da nossa representatividade e popularidade, o partido que achávamos estar em condições de melhor dirigir e conduzir o destino e os desígnios de todos os angolanos sem distinção e que, era naturalmente, o partido que estava no coração da maioria dos angolanos, tal como ficou provado nas urnas daquela altura. Entretanto, passaram-se 30 anos e a realidade sócio-política cambalhotou.  Mudaram-se os tempos, os templos, as vontades e as verdades e também as imprevistas vantagens. A poesia  e a literatura, de uma maneira geral, salvaram-me. Vi os propósitos que tinha cambalhotarem e fui salvo justamente por nunca ter feito o tal interregno ou parêntesis, de que me falas,  na minha vida literária.    

 

A rebeldia é muito associada à sua escrita e foi uma das razões invocadas para lhe darem o Prémio Guerra Junqueiro. Essa qualidade é que o torna tão popular entre as novas gerações de escritores?  

Sim. Quero crer. Sem vergonha de ser o que sou e como sou, faço por ser um patriota, um ser vertical, sempre com um olhar circunferencial olhando para a frente, para trás, para os lados, para cima e para baixo para não pisar ninguém mesmo sem saber. Faço por ser o mais honesto possível, frontal, coerente, correcto, claro e conciso. Apoiando sempre os jovens ávidos do saber e com vontade de aprender. Tendo também os meus defeitos, reconheço em mim algumas das qualidades do escritor Guerra Junqueiro, que foi também um grande tribuno. 

 

Sente que a novíssima geração de escritores é portadora de algo realmente “novo” na literatura angolana?  

Pretendo ser prudente, para depois não voltarmos a falar nos “injustamente esquecidos” pela história. Existem referências e indícios de uma certa pujança autoral no domínio das letras, mas isso só não basta. Vamos dar tempo ao tempo porque nisto de afirmações  e consagrações artístico-literárias, como dizia Rilke, um ano não conta e dez são o mesmo que nada. Os jovens literatos têm na sua frente todo o tempo para nos mostrar que estão em condições de saltar as barreiras do seu próprio tempo.  Nada de pressas, apesar de que também já as tive. 


 

 

Os seus últimos livros pretendem enunciar poeticamente uma “doutrina”, o que aliás vê-se logo pelos títulos. Quais são os preceitos dessa doutrina? Qual é a lição ou a sabedoria que sintetizou da vida e quer passar aos leitores?  

Doutrina é algo que arquitectei e que venho construindo há mais de três décadas, por isso, os preceitos dela não cabem no espaço desta conversa. Brevemente será publicado um livro de estudo com mais de duas centenas de páginas da autoria de um historiador e crítico literário espanhol, onde tudo será explicado para a fruição, compreensão e governo dos nossos leitores.  

  

A sua poesia é altamente política, na medida em que além da crítica social chega a questionar o próprio sistema político. Sente que a sua palavra é lida, é ouvida, no sentido de ser tida em conta?  

Sinto sim! Sou lido. Sei e constato que os meus textos de intervenção estão na boca e na mente do povo que calcorreia as ruas, vias e vielas das nossas cidades. Tenho sido abordado constantemente pelas pessoas que recitam, dizem e me lembram de alguns versos e poemas meus. Assumo-me como um autor engajado na defesa de todas as justas causas e constato que, entre nós, grassa ainda excessiva injustiça em todos os domínios da vida. Desde o social ao económico passando pelo jurídico. Nunca misturo a política, pura e dura, com a poética identitária, embora reconheça que toda a boa e grande poesia é poesia de amor, doutrinária, popular e revolucionária e, assim sendo, acaba por ser política. 

  

Quando olha para trás, para a sua obra, conclui que usou as palavras certas para dizer as coisas certas? Ou sente que seria capaz de reescrever tudo ou quase tudo?  

Tudo o que falei e escrevi está falado e está escrito. Nunca me arrependi de ter dito ou ter escrito o que disse e escrevi. Filosoficamente aprendi que há sempre um lugar para cada coisa, por isso eu não suporto ver coisas, sejam lá quais forem, fora do lugar e, principalmente, irrito-me sempre que descubro qualquer palavra fora do lugar em que devia estar, no âmbito do trabalho oficinal, porque as palavras devem sempre significar e representar as coisas e os sentimentos certos, mesmo quando são usadas em sentido figurado  no âmbito dos exercícios de versificação. Resumindo, direi que do ponto de vista conteudístico ou ético jamais mudaria uma ideia ou um pensamento mas, na minha condição de experimentalista, sempre que tiver que mexer na estética ou forma dos textos, não hesitarei porque, como dizia o poeta Vinícius de Moraes,  certamente,  a beleza é fundamental e devemos sempre abrir os olhos para a beleza, pois ela, de acordo com o oráculo de Ifá, acompanha as coisas boas. Estou certo ou estou errado? 

  

Actualmente tem uma dedicação completa à escrita? Considera-se um escritor profissional? 

Sim, actualmente vivo a literatura 24 sobre 25 horas por dia. Tirando a Aminata [a esposa], a poesia foi, é,  e sempre será, a minha maior paixão. É por ela e com ela que morrerei e disso não tenho dúvidas. Considero-me um simples e humilde aprendiz de poeta. Um eterno trabalhador e batalhador pela palavra poética.  

  

 






 

AMÉLIA DALOMBA: “Ao poeta é imprescindível a liberdade”



Natural de Cabinda, Amélia Dalomba é oriunda de uma família muito ligada às artes. Poetisa e declamadora, ela também é compositora, intérprete e artista plástica. Na entrevista que a seguir se publica, a poetisa fala, essencialmente, de poesia, muito a propósito do Dia Mundial da Poesia que hoje se assinala

 

Isaquiel Cori

 

É poetisa a tempo inteiro? Ou só nas horas livres?

A poesia é composta de tudo. Haverá poetas pela metade?

 

Há quem diga que ser poeta vai muito além de escrever poemas, é uma atitude, uma certa maneira de sentir e olhar a vida e o mundo...

Vai para além da escrita. Os sentimentos não cabem nas palavras. O poeta é. É na forma como desencrosta o sentido do instante que descreve nas parcas palavras que lhe oferece a linguagem.

 

Como é que alguém se torna poeta? Como é que a Amélia Dalomba se tornou poeta?

Diziam os antigos: “É preciso dom. O poeta nasce”. Não sei como se torna poeta, só sei que é imprescindível a liberdade. Apenas adoro caçar momentos e partilhá-lhos através das várias formas de comunicar com os outros, as percepções que não me escapam. Sou uma aprendiza permanente da vida de fazer acontecer o que gosto quando Deus permite. Se isso é ser ou estar poeta, por instante que seja, que fazer senão ajoelhar e rezar?

 

Além de uma sensibilidade apuradíssima o poeta tem de ser, naturalmente, versátil no domínio da língua. Que outras valências deve ter um poeta?

A versatilidade no domínio da língua em que fala, raciocina, ouve, escreve é fundamental. O essencial é a forma como lapida a palavra em uma hermética poética que faça e toque o leitor. É preciso cultivar a leitura de tudo o que o rodeia, com sentido de intervenção, olhares próprios de interrogação, vírgula, ponto final e exclamação, na denúncia, elevação e protesto, ser um factor válido nas mudanças que quer ver no universo; a consciência de quem sabe que nada sabe, parafraseando o filósofo. Estudar para além dos livros. Ser eterno estudante dos fenómenos existenciais.

 

Em muitos contextos sociais há a tendência de se encarar o poeta como um aluado, alguém com pancada. O que se passará? Qual a razão dessa percepção?

A abstração ajuda a construir cenários onde o palco da imaginação desliza. É o bom momento de liberdade criativa. É poder estar entre uma multidão aos gritos e manter o mastro hirto da racionalidade poética e das emoções abrasadoras. O que poderá suceder é a falta de controlo da ansiedade que o tumulto de impressões acarreta em si. Por isso a meditação diária permite e dita as regras aos pensamentos desconexos, sensações, excessos de informações, enfim… Nada como um bom exercício meditativo, terapêutica do sono e relaxamento mental e físico. Jamais declarar guerra às suas percepções psicossomáticas enquanto medita, recita um mantra ora ou simplesmente incida em pontos que voluntária ou involuntariamente a psique o leve. Às vezes é bom deixar-se levar como canta Zeca Pagodinho. Na dita “loucura” não poderá haver um instante de felicidade, uma fuga ao chão de terra, do que se supõe ser regra do politicamente correto, de certas máscaras subjetivas?

 


Como é que o seu olhar de poeta vê esta Angola de hoje?

Apesar de algumas conquistas, Angola não é ainda a que muitos de nós sonhamos e nos batemos por ela, até com a própria vida. Não estou a cobrar à mangueira para que nos dê laranjas, parafraseando o poeta António Jacinto e recordando Agostinho Neto, quando disse “O mais importante é resolver os problemas do povo”.

 

A poesia pode ter um papel no desenvolvimento de Angola? Como?

Há algum povo apartado da cultura? A arte e cultura de um povo é o que permanece ao longo dos séculos gerundiando aportes que o desenvolvimento humano, social e tecnológico deve conservar e aprimorar com bases sustentáveis às necessárias soluções para erradicar a miséria e elevar o bem-estar sócio-económico, político e humano. A cultura é a transformação que o ser humano faz com a natureza, segundo o professor Abreu Paxe, “como a transforma desde os mais pequenos detalhes.” Agora é preciso que haja em África a implementação séria de políticas de conservação e divulgação com programas sustentáveis de aproveitamento, engrandecimento e dignificação da cultura do homem africano inserido no património imaterial da humanidade. E que se cumpram os programas de desenvolvimento humano, muitos deles tão adiados, como a liberdade.

 

A liberdade inscrita na Constituição está adiada? O que falta então para que o seu pleno usufruto seja um facto?

Agradeço pela pergunta. Até os pássaros no seu voo invejável para algum lugar podem ser alvejados por algum caçador!... Nas conquistas a preservar em Angola a Constituição vem logo à baila, principalmente os artigos 40 a 50 sobre a Liberdade. Mas, agir com base nela, são outros quinhentos, pois temos assistido a variadas caneladas, por essas avenidas a fora, aos direitos fundamentais. Mas, estar no caminho não é só colher flores silvestres, há bastante espinho também. Tomara que ela esteja nas nossas consciências permanentemente por forma a evitarmos alguns desaires. A Constituição não é estática. Pode ser alterada ao longo dos percursos e é o que vamos assistir dentro em breve, segundo proposta do nosso chefe de Estado e do Governo João Manuel Gonçalves Lourenço.

 

O livro que vai publicar em breve vai centrar-se em que temáticas?

Prefiro não entrar em pormenores mas não será apenas poesia. São trabalhos de algum tempo a esta parte. Se Deus quiser, no momento certo, com certeza que serás o primeiro a receber um exemplar e a comprar outro… [Risos]

 

Amélia Dalomba é, certamente, uma das maiores declamadoras angolanas. A declamação é uma arte autónoma da poesia? Ou ambas são indissociáveis?

Agradeço o cumprimento e a classificação positiva ao que adoro fazer, que é declamar entre tantas outras vozes. Mas, sou um simples instrumento e quantas vezes falho em um projeto cósmico que me transcende, para partilhar cada palavra que o encanto da poesia gera. É preciso gostar do que se faz. E eu gosto. A declamação é autónoma. Não é preciso ser poeta para declamar. A voz, Deus dá, canta o fado. Os trovadores sabem bem disso. A poesia quer trova e os primeiros instrumentos na arte de declamar são a voz e o ouvido e coração de quem sente e escuta.

 

Como outros poetas, encontrou nas redes sociais uma plataforma de difusão dos seus poemas. Os poemas que aí publica são instantâneos ou têm o mesmo trabalho de depuração dos que publica em livro?

São instantâneos também. Poesia, crónicas minimalistas do quotidiano. A pandemia e o confinamento acabaram por empolgar a necessidade de visitar as janelas das redes sociais com mais frequência. Pertenço a alguns grupos de poetas e escritores, pintores, músicos, familiares, amigos e leitores. Queremos saber uns dos outros. Até por uma questão de saúde mental. Divulgo muitas vezes o que já tenho em livros mas, com frequência instantaneamente, no aconchego da memória, falando com os meus botões... [Risos] Muitas vezes precisamos de um ouvido, do olhar de gente que comunga os mesmos gostos e desgostos. Tenho aprendido muito. Mas tudo é cíclico. Nem sempre consigo partilhar minha chikuanga, meu micate... Então partilho o que escrevo e colho o que outros me vão dando. Sabes bem que a poesia é de comer. Poesia é o conduto no funje de jiboiar e com gindungo pelas entrelinhas xinguilar um bocado. Andamos à chuva de sensibilidades alheias e quantas delas escondidas sob um perfil falso. Enfim: andamos à chuva…

 


Indique-nos, por favor, cinco poetas de sua eleição e por que razão são especiais para si?

Poetas da quintessência universal. Deus é O Poeta. Depois os poetas da quintessência dos universos com vida, Jesus Cristo, Mãe Maria, Buda - Siddhartha Gautami, Hermes Trismegistu, Shirdi Sai Baba, Maomé, Dalai-Lama, Kardec, Luís de Matos e tantos outros... São especiais por haverem criado o sol na noite e a lua ao meio-dia, para que pudéssemos, de formas muito mais elevadas, alimentarmos as nossas energias e valências cognitivas mais proactivas.

 

No geral, indicou poetas da metafísica, relacionados com a transcendência. E quanto a poetas do quotidiano, da realidade empírica, mais existencial?

Indiquei os poetas primeiros, que recheiam em cada dia conteúdos novos aos meus sentidos, incontornáveis na arte de amar, perdoar e despertar a humanidade ao bem comum. Que sentiram o chão agreste, o sabor do sangue nos lábios e no coração as lanças dos “patrulheiros poéticos” da existência, que, há mais de dois mil anos, mudaram tão pouco a essência e a índole. As parábolas pela grandiosidade do Sermão da Montanha, de Salomão a David. A poética do amor que não morre. Da revolta, denúncia, luta, vida, dor e morte. Talvez consideres ascético demais citá-los, mas sou nada sem eles. Adoro os poetas da antiguidade e da contemporaneidade que exaltam a consciência identitária da humanidade, a igualdade e a justiça social no respeito pelas diferenças raciais e de classe. Nada como poemar em prosa e verso, quando o corpo arrasta uma alma que padece pela insensibilidade da espécie humana. Apenas um terço do que das leituras comparadas estou a fazer entre poesias libertárias a nível mundial: “Outrora, vias coqueiros e escrevias: ‘Pinhos’. Hoje, sob os pinhais, um vento corre de África sobre o teu pensamento” – Mário António de Oliveira. Manuel Alegre: “É justo que me fales de Hiroxima. Porém tu nada sabes deste tempo longo… Ai tempo onde a palavra rima com a palavra morte em Nambuangongo”. Manuel Rui Monteiro: “Não fui navegador embora me quisessem em vários continentes em que sempre estive e disse nunca para que naufragasse minha história com o peso das grilhetas amarrado aos oceanos e epitáfios, não conheço.” José Marti: “A liberdade custa muito caro e temos ou de resignarmos a viver sem ela ou de nos decidirmos a pagar o seu preço”. Nekrassov: “…Por minha terra natal eu vaguei antes… Eu construo castelos no ar! O espírito do homem opta por muitas maneiras de frustrar todas as minhas esperanças…” Viriato da Cruz: “Pelo teu regaço minha mãe, outras gentes embaladas à voz da ternura ninadas do teu leite alimentadas de bondade e poesia… Em nós outros, teus filhos, gerando, formando, anunciando o dia da Humanidade”. Amílcar Cabral: “Não me fujas Poesia. Quebra as grades invisíveis da minha prisão, abre de par em par as portas do meu ser…Toma os meus braços para que abrace a vida. A minha poesia sou eu”.

É empolgante rever como somos produto de um testemunho que conflui e engrandece “o nosso tijolo nos alicerces do mundo”, como escreveu Agostinho Neto.

 

Acredita que exista uma poesia especificamente no feminino? Quais seriam os traços dessa poesia?

É claro que a identidade do género fica sempre marcada no que produzimos. As narrativas poéticas não fogem à regra. Questões biológicas humanamente femininas e masculinas ficam explícitas muitas vezes. É claro que não podemos fugir de nós próprios. Podemos ajuizar que uma determinada poesia seja de uma mulher ou de um homem? Cuidado! Olha que o poeta é mesmo um fingidor. “Que finge tão sinceramente as dores que deveras sente”, segundo Fernando Pessoa. Daí podermos ponderar muito a análise de identificação de género à literacia de um autor sem que o conheçamos? Há poeta de mulher e poeta de homem, dizia o meu bom e saudoso amigo, poeta e declamador Grande Menezes! Que importância tem agarrarmo-nos ao azul e cor-de-rosa de um autor se as obras falam mais do que se diz ser e de quem as produziu?

 

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Livros publicados

 

Entre outros títulos Amélia Dalomba publicou os livros: “Ânsia”, poesia, UEA, 1995; “Sacrossanto Refúgio”, poesia, Edipress, 1996; “Espigas do Sahel”, poesia, Kilombelombe, 2004; “Noites Ditas à Chuva”, poesia, UEA, 2005; “Aos Teus Pés, Quanto Baloiça o Vento”, poesia, Zian Editora, Brasil; “Sinal de Mãe nas Estrelas”, poesia, Zian Editora, 2007; “Nsinga, O Mar No Signo do Laço”, infanto-juvenil, Mayamba Editora, 2011; “Senhor, Há Poetas no Telhado”, poesia, UEA, 2015.

Tem poemas publicados em antologias em Angola e no estrangeiro.