O
poeta e crítico literário Lopito Feijó recebeu na última quarta-feira, em
Luanda, o galardão do Prémio Guerra Junqueiro das mãos da curadora Avelina
Ferraz. Não cabendo em si de satisfação, Lopito Feijóo concedeu dias depois ao Jornal de Angola a entrevista que a
seguir se publica, onde fala do seu percurso poético e de vida. O poeta assume-se
como defensor de todas as “justas causas” e confessa que a poesia, e de um modo
geral a literatura, são responsáveis por continuar vivo
Isaquiel
Cori
O
Prémio Guerra Junqueiro é para si um momento alto de consagração da sua
carreira literária?
Eu
nunca me propus fazer carreira alguma, nem sequer pensei em fazer carreira
literária, mas, sempre pensei ser um escritor e, mais concretamente, um
poeta. Na verdade, não me simpatizo muito com a palavra carreira.
Acho-a pouco “palavra”, ou mesmo direi, pouco poética. Palavra para mim tem que
ser ou tem que ter um mínimo de poeticidade. Eu suspeito e duvido muito da densidade
e consolidação de algumas ditas carreiras em todas as áreas das sociedades. Até
porque a mídia e as redes sociais hoje promovem tudo e mais alguma coisa,
muitas vezes sem critérios meritórios.
Entretanto,
reconheço que a atribuição do prémio em referência ao escritor que sou,
constitui um dos mais sublimes e singelos momentos da minha vida artística,
pois é o reconhecimento de pouco mais de 40 anos de vida artística e
literária.
Publicou
várias obras em Portugal, onde vai regularmente a festivais literários e em
Moçambique é dos escritores angolanos mais conhecidos. No Brasil em
determinados meios literários também é conhecido, tal como em Cabo Verde e na
Guiné Bissau. Tudo isso graças a um esforço pessoal?
Sim.
A resposta está dada. Tudo isso graças a um esforço pessoal com muitos
sacrifícios espirituais e até materiais, pois uma internacionalização de vida
literária implica pesados custos ao orçamento doméstico do simples, humilde e
pobre cidadão amante das letras, num contexto político e social onde as
questões espirituais e os motivos de prestígio ainda são subalternizados e não
valorizados pelos departamentos governamentais “a quem de direito”, como se diz
popularmente. Não queiras saber nem imaginas quanto tenho gasto ou já gastei
para a promoção da literatura e da cultura angolana
além-fronteiras. São milhares de divisas cujo retorno vai surgindo
paulatina e progressivamente no âmbito de um acumular de prestígio para nós,
para a cultura angolana e para a nação e o povo angolano em geral… mesmo sem os
necessários apoios e reconhecimentos oficiais do
Estado.
Como
é que um menino que cresceu no Cazenga acaba por estar no centro de movimentos
literários como a Brigada Jovem de Literatura e o OHANDANJI?
Esta
pergunta merece uma resposta deveras quilométrica. Entretanto, vou em poucas
palavras dizer que tudo acontece e vai acontecendo com base em princípios
fundamentais que norteiam a minha postura social. A humildade, a
simplicidade, o foco, o desprezo pela vaidade, o desprezo pelos motivos de
poder como os cargos e encargos disso e daquilo e outros quejandos. O amor ao
próximo e o respeito pelo “outro”, vivendo e convivendo intensamente um dia
após o outro, pois, como também tenho dito, o futuro é coisa dos deuses e o meu
futuro hoje já é presente.
Nos
anos 80 os escritores da sua geração tinham plena consciência de que faziam a
ruptura e que eram agentes de uma transformação histórica na literatura
angolana?
Definitivamente
ganhei consciência de que estava num processo de ruptura com o passado quando,
em companhia de alguns outros confrades brigadistas vimos a necessidade, e
tivemos a oportunidade, de romper publicando em 1984 o
manifesto estético-literário OHANDANJI, do qual resulta a poética que ainda
hoje cultivamos e que continuamente nos vai consagrando. Quero dizer que tudo o
que fizemos e ainda vamos fazendo, foi feito e continuaremos fazendo
conscientemente. Com carma, alma e sempre mais carma.
Eram
muitos os que escreviam naqueles anos, hoje sobram poucos. Muitos perderam o
entusiasmo pela escrita, uns foram levados pela morte ou arrastados por outras correntes
da vida. Quer evocar nomes, coetâneos que injustamente estão esquecidos mas que
foram importantes no percurso da vossa geração?
Esquecidos?
Não existem ou não conheço. Existem sim os de pouca entrega e como tal menos
divulgados pela comunicação social em razão do muito pouco dinamismo das suas acções,
pois poucos são os que sabem que o trabalho do qual resulta a afirmação
artística implica entrega, coragem, sacrifícios do corpo, e simultaneamente, da
alma, e fundamentalmente persistência, insistência e consciência. Olha que nem
todos os humanos e jovens estão predispostos a suportar a maledicência, a
intriga, a inveja e, não raras vezes, a calúnia que grassa no mundo das artes,
das quais a arte literária não escapa. Portanto, os que se afirmaram e se vão
consagrando o fizeram e vão fazendo com vontade e entrega pessoal. Os
esquecidos, esqueceram-se e basta, pois são fortes os que se demarcam e se
distinguem no âmbito da história universal.
Como
é que o Lopito foi a deputado? Nos dias de hoje como é que considera aquele
período da sua vida: um parênteses na sua carreira literária?
Num
dos momentos mais difíceis e conturbados da vida dos angolanos a mãe pátria fez
um chamamento ao qual respondemos afirmativamente, representando no parlamento,
em razão da nossa representatividade e popularidade, o partido que achávamos
estar em condições de melhor dirigir e conduzir o destino e os desígnios de
todos os angolanos sem distinção e que, era naturalmente, o partido que estava
no coração da maioria dos angolanos, tal como ficou provado nas urnas daquela
altura. Entretanto, passaram-se 30 anos e a realidade sócio-política
cambalhotou. Mudaram-se os tempos, os templos, as vontades e as
verdades e também as imprevistas vantagens. A poesia e a literatura,
de uma maneira geral, salvaram-me. Vi os propósitos que tinha cambalhotarem e
fui salvo justamente por nunca ter feito o tal interregno ou parêntesis, de que
me falas, na minha vida literária.
A
rebeldia é muito associada à sua escrita e foi uma das razões invocadas para
lhe darem o Prémio Guerra Junqueiro. Essa qualidade é que o torna tão popular
entre as novas gerações de escritores?
Sim.
Quero crer. Sem vergonha de ser o que sou e como sou, faço por ser um patriota,
um ser vertical, sempre com um olhar circunferencial olhando para a frente,
para trás, para os lados, para cima e para baixo para não pisar ninguém mesmo
sem saber. Faço por ser o mais honesto possível, frontal, coerente, correcto,
claro e conciso. Apoiando sempre os jovens ávidos do saber e com vontade de
aprender. Tendo também os meus defeitos, reconheço em mim algumas das
qualidades do escritor Guerra Junqueiro, que foi também um grande tribuno.
Sente
que a novíssima geração de escritores é portadora de algo realmente “novo” na
literatura angolana?
Pretendo ser prudente, para depois não voltarmos a falar nos “injustamente esquecidos” pela história. Existem referências e indícios de uma certa pujança autoral no domínio das letras, mas isso só não basta. Vamos dar tempo ao tempo porque nisto de afirmações e consagrações artístico-literárias, como dizia Rilke, um ano não conta e dez são o mesmo que nada. Os jovens literatos têm na sua frente todo o tempo para nos mostrar que estão em condições de saltar as barreiras do seu próprio tempo. Nada de pressas, apesar de que também já as tive.
Os
seus últimos livros pretendem enunciar poeticamente uma “doutrina”, o que aliás
vê-se logo pelos títulos. Quais são os preceitos dessa doutrina? Qual é a lição
ou a sabedoria que sintetizou da vida e quer passar aos leitores?
Doutrina
é algo que arquitectei e que venho construindo há mais de três décadas, por
isso, os preceitos dela não cabem no espaço desta conversa. Brevemente será publicado
um livro de estudo com mais de duas centenas de páginas da autoria de um
historiador e crítico literário espanhol, onde tudo será explicado para a
fruição, compreensão e governo dos nossos leitores.
A
sua poesia é altamente política, na medida em que além da crítica social chega
a questionar o próprio sistema político. Sente que a sua palavra é lida, é
ouvida, no sentido de ser tida em conta?
Sinto
sim! Sou lido. Sei e constato que os meus textos de intervenção estão na boca e
na mente do povo que calcorreia as ruas, vias e vielas das nossas cidades.
Tenho sido abordado constantemente pelas pessoas que recitam, dizem e me
lembram de alguns versos e poemas meus. Assumo-me como um autor engajado na
defesa de todas as justas causas e constato que, entre nós, grassa ainda
excessiva injustiça em todos os domínios da vida. Desde o social ao económico
passando pelo jurídico. Nunca misturo a política, pura e dura, com a poética
identitária, embora reconheça que toda a boa e grande poesia é poesia de amor,
doutrinária, popular e revolucionária e, assim sendo, acaba por ser política.
Quando
olha para trás, para a sua obra, conclui que usou as palavras certas para dizer
as coisas certas? Ou sente que seria capaz de reescrever tudo ou quase tudo?
Tudo
o que falei e escrevi está falado e está escrito. Nunca me arrependi de ter
dito ou ter escrito o que disse e escrevi. Filosoficamente aprendi que há
sempre um lugar para cada coisa, por isso eu não suporto ver coisas, sejam lá
quais forem, fora do lugar e, principalmente, irrito-me sempre que descubro
qualquer palavra fora do lugar em que devia estar, no âmbito do trabalho
oficinal, porque as palavras devem sempre significar e representar as coisas e
os sentimentos certos, mesmo quando são usadas em sentido
figurado no âmbito dos exercícios de versificação. Resumindo, direi
que do ponto de vista conteudístico ou ético jamais mudaria uma ideia ou um
pensamento mas, na minha condição de experimentalista, sempre que tiver que
mexer na estética ou forma dos textos, não hesitarei porque, como dizia o poeta
Vinícius de Moraes, certamente, a beleza é fundamental e devemos
sempre abrir os olhos para a beleza, pois ela, de acordo com o oráculo de Ifá,
acompanha as coisas boas. Estou certo ou estou errado?
Actualmente
tem uma dedicação completa à escrita? Considera-se um escritor
profissional?
Sim,
actualmente vivo a literatura 24 sobre 25 horas por dia. Tirando a Aminata [a
esposa], a poesia foi, é, e sempre será, a minha maior paixão. É por
ela e com ela que morrerei e disso não tenho dúvidas. Considero-me um simples e
humilde aprendiz de poeta. Um eterno trabalhador e batalhador pela palavra
poética.
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