Natural de Cabinda, Amélia Dalomba é oriunda de uma família muito ligada às artes. Poetisa e declamadora, ela também é compositora, intérprete e artista plástica. Na entrevista que a seguir se publica, a poetisa fala, essencialmente, de poesia, muito a propósito do Dia Mundial da Poesia que hoje se assinala
Isaquiel
Cori
É poetisa a
tempo inteiro? Ou só nas horas livres?
A
poesia é composta de tudo. Haverá poetas pela metade?
Há quem diga que
ser poeta vai muito além de escrever poemas, é uma atitude, uma certa maneira
de sentir e olhar a vida e o mundo...
Vai
para além da escrita. Os sentimentos não cabem nas palavras. O poeta é. É na
forma como desencrosta o sentido do instante que descreve nas parcas palavras
que lhe oferece a linguagem.
Como é que
alguém se torna poeta? Como é que a Amélia Dalomba se tornou poeta?
Diziam
os antigos: “É preciso dom. O poeta nasce”. Não sei como se torna poeta, só sei
que é imprescindível a liberdade. Apenas adoro caçar momentos e partilhá-lhos
através das várias formas de comunicar com os outros, as percepções que não me
escapam. Sou uma aprendiza permanente da vida de fazer acontecer o que gosto
quando Deus permite. Se isso é ser ou estar poeta, por instante que seja, que
fazer senão ajoelhar e rezar?
Além de uma
sensibilidade apuradíssima o poeta tem de ser, naturalmente, versátil no
domínio da língua. Que outras valências deve ter um poeta?
A
versatilidade no domínio da língua em que fala, raciocina, ouve, escreve é fundamental.
O essencial é a forma como lapida a palavra em uma hermética poética que faça e
toque o leitor. É preciso cultivar a leitura de tudo o que o rodeia, com
sentido de intervenção, olhares próprios de interrogação, vírgula, ponto final
e exclamação, na denúncia, elevação e protesto, ser um factor válido nas
mudanças que quer ver no universo; a consciência de quem sabe que nada sabe, parafraseando
o filósofo. Estudar para além dos livros. Ser eterno estudante dos fenómenos
existenciais.
Em muitos contextos sociais há a tendência de se encarar
o poeta como um aluado, alguém com pancada. O que se passará? Qual a razão
dessa percepção?
A
abstração ajuda a construir cenários onde o palco da imaginação desliza. É o
bom momento de liberdade criativa. É poder estar entre uma multidão aos gritos
e manter o mastro hirto da racionalidade poética e das emoções abrasadoras. O
que poderá suceder é a falta de controlo da ansiedade que o tumulto de
impressões acarreta em si. Por isso a meditação diária permite e dita as regras
aos pensamentos desconexos, sensações, excessos de informações, enfim… Nada
como um bom exercício meditativo, terapêutica do sono e relaxamento mental e
físico. Jamais declarar guerra às suas percepções psicossomáticas enquanto
medita, recita um mantra ora ou simplesmente incida em pontos que voluntária ou
involuntariamente a psique o leve. Às vezes é bom deixar-se levar como canta
Zeca Pagodinho. Na dita “loucura” não poderá haver um instante de felicidade,
uma fuga ao chão de terra, do que se supõe ser regra do politicamente correto,
de certas máscaras subjetivas?
Como é que o seu
olhar de poeta vê esta Angola de hoje?
Apesar
de algumas conquistas, Angola não é ainda a que muitos de nós sonhamos e nos
batemos por ela, até com a própria vida. Não estou a cobrar à mangueira para
que nos dê laranjas, parafraseando o poeta António Jacinto e recordando Agostinho
Neto, quando disse “O mais importante é resolver os problemas do povo”.
A poesia pode
ter um papel no desenvolvimento de Angola? Como?
Há
algum povo apartado da cultura? A arte e cultura de um povo é o que permanece
ao longo dos séculos gerundiando aportes que o desenvolvimento humano, social e
tecnológico deve conservar e aprimorar com bases sustentáveis às necessárias
soluções para erradicar a miséria e elevar o bem-estar sócio-económico,
político e humano. A cultura é a transformação que o ser humano faz com a
natureza, segundo o professor Abreu Paxe, “como a transforma desde os mais
pequenos detalhes.” Agora é preciso que haja em África a implementação séria de
políticas de conservação e divulgação com programas sustentáveis de
aproveitamento, engrandecimento e dignificação da cultura do homem africano
inserido no património imaterial da humanidade. E que se cumpram os programas
de desenvolvimento humano, muitos deles tão adiados, como a liberdade.
A liberdade inscrita na Constituição está adiada? O que
falta então para que o seu pleno usufruto seja um facto?
Agradeço
pela pergunta. Até os pássaros no seu voo invejável para algum lugar podem ser
alvejados por algum caçador!... Nas conquistas a preservar em Angola a Constituição
vem logo à baila, principalmente os artigos 40 a 50 sobre a Liberdade. Mas,
agir com base nela, são outros quinhentos, pois temos assistido a variadas
caneladas, por essas avenidas a fora, aos direitos fundamentais. Mas, estar no
caminho não é só colher flores silvestres, há bastante espinho também. Tomara
que ela esteja nas nossas consciências permanentemente por forma a evitarmos
alguns desaires. A Constituição não é estática. Pode ser alterada ao longo dos
percursos e é o que vamos assistir dentro em breve, segundo proposta do nosso
chefe de Estado e do Governo João Manuel Gonçalves Lourenço.
O livro que vai
publicar em breve vai centrar-se em que temáticas?
Prefiro
não entrar em pormenores mas não será apenas poesia. São trabalhos de algum
tempo a esta parte. Se Deus quiser, no momento certo, com certeza que serás o
primeiro a receber um exemplar e a comprar outro… [Risos]
Amélia Dalomba é, certamente, uma das maiores
declamadoras angolanas. A declamação é uma arte autónoma da poesia? Ou ambas
são indissociáveis?
Agradeço
o cumprimento e a classificação positiva ao que adoro fazer, que é declamar
entre tantas outras vozes. Mas, sou um simples instrumento e quantas vezes
falho em um projeto cósmico que me transcende, para partilhar cada palavra que
o encanto da poesia gera. É preciso gostar do que se faz. E eu gosto. A
declamação é autónoma. Não é preciso ser poeta para declamar. A voz, Deus dá, canta
o fado. Os trovadores sabem bem disso. A poesia quer trova e os primeiros
instrumentos na arte de declamar são a voz e o ouvido e coração de quem sente e
escuta.
Como outros
poetas, encontrou nas redes sociais uma plataforma de difusão dos seus poemas.
Os poemas que aí publica são instantâneos ou têm o mesmo trabalho de depuração
dos que publica em livro?
São
instantâneos também. Poesia, crónicas minimalistas do quotidiano. A pandemia e
o confinamento acabaram por empolgar a necessidade de visitar as janelas das
redes sociais com mais frequência. Pertenço a alguns grupos de poetas e
escritores, pintores, músicos, familiares, amigos e leitores. Queremos saber
uns dos outros. Até por uma questão de saúde mental. Divulgo muitas vezes o que
já tenho em livros mas, com frequência instantaneamente, no aconchego da memória,
falando com os meus botões... [Risos] Muitas vezes precisamos de um ouvido, do olhar
de gente que comunga os mesmos gostos e desgostos. Tenho aprendido muito. Mas
tudo é cíclico. Nem sempre consigo partilhar minha chikuanga, meu micate... Então
partilho o que escrevo e colho o que outros me vão dando. Sabes bem que a
poesia é de comer. Poesia é o conduto no funje de jiboiar e com gindungo pelas
entrelinhas xinguilar um bocado. Andamos à chuva de sensibilidades alheias e
quantas delas escondidas sob um perfil falso. Enfim: andamos à chuva…
Indique-nos, por
favor, cinco poetas de sua eleição e por que razão são especiais para si?
Poetas
da quintessência universal. Deus é O Poeta. Depois os poetas da quintessência
dos universos com vida, Jesus Cristo, Mãe Maria, Buda - Siddhartha Gautami,
Hermes Trismegistu, Shirdi Sai Baba, Maomé, Dalai-Lama, Kardec, Luís de Matos e
tantos outros... São especiais por haverem criado o sol na noite e a lua ao
meio-dia, para que pudéssemos, de formas muito mais elevadas, alimentarmos as
nossas energias e valências cognitivas mais proactivas.
No geral, indicou poetas da metafísica, relacionados com
a transcendência. E quanto a poetas do quotidiano, da realidade empírica, mais
existencial?
Indiquei os poetas primeiros, que recheiam em
cada dia conteúdos novos aos meus sentidos, incontornáveis na arte de amar,
perdoar e despertar a humanidade ao bem comum. Que sentiram o chão agreste, o
sabor do sangue nos lábios e no coração as lanças dos “patrulheiros poéticos”
da existência, que, há mais de dois mil anos, mudaram tão pouco a essência e a
índole. As parábolas pela grandiosidade do Sermão da Montanha, de Salomão a
David. A poética do amor que não morre. Da revolta, denúncia, luta, vida, dor e
morte. Talvez consideres ascético demais citá-los, mas sou nada sem eles. Adoro
os poetas da antiguidade e da contemporaneidade que exaltam a consciência
identitária da humanidade, a igualdade e a justiça social no respeito pelas
diferenças raciais e de classe. Nada como poemar em prosa e verso, quando o
corpo arrasta uma alma que padece pela insensibilidade da espécie humana.
Apenas um terço do que das leituras comparadas estou a fazer entre poesias
libertárias a nível mundial: “Outrora, vias coqueiros e escrevias: ‘Pinhos’.
Hoje, sob os pinhais, um vento corre de África sobre o teu pensamento” – Mário
António de Oliveira. Manuel Alegre: “É justo que me fales de Hiroxima. Porém tu
nada sabes deste tempo longo… Ai tempo onde a palavra rima com a palavra morte
em Nambuangongo”. Manuel Rui Monteiro: “Não fui navegador embora me quisessem
em vários continentes em que sempre estive e disse nunca para que naufragasse
minha história com o peso das grilhetas amarrado aos oceanos e epitáfios, não
conheço.” José Marti: “A liberdade custa muito caro e temos ou de resignarmos a
viver sem ela ou de nos decidirmos a pagar o seu preço”. Nekrassov: “…Por minha
terra natal eu vaguei antes… Eu construo castelos no ar! O espírito do homem
opta por muitas maneiras de frustrar todas as minhas esperanças…” Viriato da
Cruz: “Pelo teu regaço minha mãe, outras gentes embaladas à voz da ternura
ninadas do teu leite alimentadas de bondade e poesia… Em nós outros, teus
filhos, gerando, formando, anunciando o dia da Humanidade”. Amílcar Cabral:
“Não me fujas Poesia. Quebra as grades invisíveis da minha prisão, abre de par
em par as portas do meu ser…Toma os meus braços para que abrace a vida. A minha
poesia sou eu”.
É empolgante rever como somos produto de um
testemunho que conflui e engrandece “o nosso tijolo nos alicerces do mundo”,
como escreveu Agostinho Neto.
Acredita que
exista uma poesia especificamente no feminino? Quais seriam os traços dessa
poesia?
É
claro que a identidade do género fica sempre marcada no que produzimos. As narrativas
poéticas não fogem à regra. Questões biológicas humanamente femininas e
masculinas ficam explícitas muitas vezes. É claro que não podemos fugir de nós
próprios. Podemos ajuizar que uma determinada poesia seja de uma mulher ou de
um homem? Cuidado! Olha que o poeta é mesmo um fingidor. “Que finge tão
sinceramente as dores que deveras sente”, segundo Fernando Pessoa. Daí podermos
ponderar muito a análise de identificação de género à literacia de um autor sem
que o conheçamos? Há poeta de mulher e poeta de homem, dizia o meu bom e
saudoso amigo, poeta e declamador Grande Menezes! Que importância tem agarrarmo-nos
ao azul e cor-de-rosa de um autor se as obras falam mais do que se diz ser e de
quem as produziu?
...........................................................................................................................
Livros publicados
Entre
outros títulos Amélia Dalomba publicou os livros: “Ânsia”, poesia, UEA, 1995; “Sacrossanto Refúgio”, poesia,
Edipress, 1996; “Espigas do Sahel”, poesia, Kilombelombe, 2004; “Noites Ditas à
Chuva”, poesia, UEA, 2005; “Aos Teus Pés, Quanto Baloiça o Vento”, poesia, Zian
Editora, Brasil; “Sinal de Mãe nas Estrelas”, poesia, Zian Editora, 2007;
“Nsinga, O Mar No Signo do Laço”, infanto-juvenil, Mayamba Editora, 2011;
“Senhor, Há Poetas no Telhado”, poesia, UEA, 2015.
Tem poemas publicados em antologias em Angola e
no estrangeiro.
Sem comentários:
Enviar um comentário