domingo, 28 de janeiro de 2024

Para (tentar) perceber o fenómeno Nagrelha: O QUE EXPLICA A EXPLOSÃO DE MULTIDÃO NO FUNERAL DO CANTOR?

Isaquiel Cori



Nagrelha, o cantor de Kuduro, foi a enterrar na última terça-feira (22/11/2022) bem Luanda,  com o cortejo a ser seguido por multidões tão grandes como raramente se viu em Angola. A comoção e os ajuntamentos começaram a notar-se logo após a notícia da morte, dada em comunicado oficial, num outro acto inédito, pela instituição hospitalar onde o cantor estava internado - aliás, o “nunca antes ocorrido” já acontecera quando, no dia 25 de Junho, Nagrelha fora evacuado de urgência para o exterior acompanhado pelo director clínico da mesma instituição hospitalar. As multidões aos choros foram crescendo no Sambizanga, bairro onde o cantor nasceu e cresceu, e noutros bairros anteriormente chamados musseques e hoje commumente designados “periféricos” (serão periféricos não tanto pela localização geográfica, mas pela marginalização social). A noite do velório no estádio da Cidadela, com as bancadas abarrotadas de gente, lembrava o cenário de um jogo da selecção nacional de futebol nos seus tempos áureos. E, finalmente, no dia do funeral foi o que se viu. Vídeos e fotos que circularam amplamente nas redes sociais, e as imagens exibidas na TV, mostraram multidões em transe a acompanhar o cortejo fúnebre e grupos de oportunistas a vandalizarem património alheio.

Membros da elite bem pensante, quando não se mostraram perplexos e paralisados diante do fenómeno que se desenrolava a seus olhos, invectivaram a horda de anónimos que se levantou dos bairros periféricos, mas não só, para chorar e acompanhar à última morada o cidadão-cantor Nagrelha, cultor de um género musical considerado, por essa elite,  “tão menor” como o Kuduro. Agora que as emoções parecem serenar, é tempo de pôr racionalidade na análise do fenómeno Nagrelha. Para tal o Jornal de Angola interpelou, por escrito, os sociólogos Elisabete Ceita Vera Cruz e Cláudio Tomás e o crítico musical Jomo Fortunato. E do Facebook trouxemos o texto da jornalista Maria Luísa Rogério, um dos mais brilhantes produzidos naqueles dias, naquela rede social. A ver se nos ajudam a perceber os acontecimentos desencadeados pela morte e o funeral do maior ícone do estilo musical Kuduro.




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ELISABETE CEITA VERA CRUZ*

“A sua morte representa o fim de uma era”

                                                                 Elisabete Ceita Vera Cruz

 O que explica uma comoção tão generalizada nos bairros da periferia pela morte do cantor Nagrelha?

Bem, as manifestações de comoção também são organizáveis... Poderia dizer-lhe também que se terá tratado de um espaço-tempo para alguns oportunistas, mas sobretudo que permitiu o extravasar de frustações de milhares de jovens desesperados e sem voz. Terá sido um misto de emoção, dor e força. E diz bem, da periferia. Mas, respondendo directamente à pergunta, Nagrelha representa uma juventude, a da periferia, dos chamados bairros, juventude desvalida que entretanto consegue driblar o “destino”. E se por um lado se torna um jovem de sucesso, por outro ele não enjeita o seu bairro, o seu passado... Para quem é que Nagrelha é um ícone? Pensar-se-ia que seriam milhares, mas parece serem milhões os jovens fãs de Nagrelha, sobretudo os que trabalham no sector informal, para aqueles que são considerados marginais por usarem estupefacientes, para aqueles que vivem à margem da lei. Mas também para os do espaço urbano porque, afinal, “não é só no bairro”, como cantam Yannick e Nagrelha. E, de repente, o Nagrelha torna-se um “case study” que faz com que se pergunte como é que um “ninguém” – pergunta feita por aqueles que desconhecem a Angola real – consegue fazer com que dele se faça um “case study”? Quer dizer que o fenómeno Nagrelha estava aí, conhecido por muitos, e penso também que a morte de Nagrelha representa, também, o fim de um ciclo, de uma era em Angola – na verdade é o próprio Nagrelha quem diz que “não existe depois de mim”. Porquê o fim de um ciclo, de uma era? O que é que isso significa? Para além de outras possíveis leituras, destacaria o fim do ciclo da indiferença, da cultura vista somente como entretenimento e pouco ou nada como conhecimento, e a emergência de um novo olhar e abordagem para com as pessoas que se encontram em situação de vulnerabilidade, para com a  pobreza... O facto de Nagrelha ter sido o único que, sem pejo, terá defendido o ex-presidente José Eduardo dos Santos (a entrevista que acabou por não acontecer porque começou e terminou com Nagrelha a perguntar ao entrevistador o que poderia ele dizer sobre JES, é elucidativa e por isso muito interessante), porventura pelo que este último lhe terá agraciado, uma mensagem do género “não cuspas no prato em que comeste”, fará dele um indivíduo honrado, com princípios, com valores, independentemente dos juízos que se possa fazer da governação de José Eduardo dos Santos. Sem esquecer, é claro, a generosidade e a solidariedade que dizem ter sido uma das suas grandes marcas.   

O Kuduro às tantas vai muito além de um estilo musical? O kuduro acaba por expressar as frustrações e os sentimentos mais profundos dos grupos sociais dos bairros periféricos?

Sei que existem artigos, ensaios, trabalhos sobre o kuduro - estou desejosa de ler todos... Importa saber e compreender não somente quando surge, e isto sabemos, mas sobretudo a sua evolução e da sociedade angolana. Mais uma vez a arte a mapear a nossa sociedade, desta vez, a música, mas poderia ser a literatura, as artes cénicas, enfim...

Diria que mais do que um género musical ou uma dança, o kuduro é um estilo e um modo de vida. E uma forma de protesto. Terá começado como dança e música, mas rapidamente foi apropriado e metamorfoseando-se para ser o que é hoje. Porque o kuduro é também, hoje, sinónimo de passe para a ansiada mobilidade social, para a inclusão. O/as kuduristas para além do dinheiro que ganham e, como consequência, verem melhoradas as suas vidas, vêem mudar o seu status social, passam a ter visibilidade, a ser respeitados, alguns passam a ter e a ser uma janela aberta para o mundo...  Hoje temos kuduristas licenciados ou na universidade, o que revela bem a evolução do género musical e as mudanças em Angola, nomeadamente em Luanda.

 

Nagrelha pode ser considerado um herói?

Um herói acidental. Diria antes que Nagrelha personifica o anti-herói. Podemos encontrá-los, os anti-heróis, em todas as geografias, e não são tão poucos assim. E o que é ou quem é o anti-herói? Tendo como referência o Nagrelha, é o indivíduo com uma infância – adolescência e juventude - difícil, complicada, com pouca escolaridade, que passou pela prisão, terá consumido droga, terá sido o que alguns chamarão arruaceiro, mas que deu a volta à sua vida e se tornou um ícone. Não sendo o melhor cantor nem dançarino, com um passado conturbado, como é que se torna um ícone? Pelas razões enunciadas e porque o anti-herói não é aquele que congrega opiniões positivas sobre ele; bem pelo contrário, é precisamente por a opinião que se tem dele não ser unânime, por ser imperfeito, pelos seus excessos, com alguns comportamentos que poderão ser condenáveis, causar alguma repulsa, mas com outros admiráveis como a humildade, o  facto de quebrar estereótipos -  imagens do Nagrelha com o filho nas costas, a limpar o chão com todo o à vontade - fazem com que inconsciente e rapidamente passe de vilão a herói. Aqueles que, como ele, vivem ou viveram situações adversas, se encontram no limbo, acabam por vê-lo e tê-lo como uma referência, como líder. Um jovem vendedor de sonhos, de pequena estatura, de aspecto frágil (fazendo jus ao adágio “os homens não se medem aos palmos”), mas que se apresenta carismático, sem medo de se mostrar, de ser quem é, de cair no ridículo (e não cai!)... E assim nascem os mitos, com a carga de controvérsia e romantismo que lhes estão associados. E as sociedades, os jovens, precisam de se ver representados, precisam de ídolos. E o facto de ter morrido cedo, com 36 anos, é um elemento mais que não pode ser descurado.

 

O que se pode ou deve fazer para que fenómenos como Nagrelha deixem de ser considerados periféricos ou marginais, independentemente de onde tenham surgido, para serem assimilados ou integrados como parte legítima do todo nacional?

A emergência de sub-culturas, nas suas diferentes roupagens, não é sinónimo de exclusão; poderá, sim, ser sinónimo de criatividade. E o importante é saber reconhecer e abrir espaço a essa criatividade, desde logo com a construção de escolas regulares, mas também de artes, para todos.   

A arte, as culturas, têm muito de marginal; de tal forma que se fala da existência de culturas marginais. E têm poder, o poder de o deixarem de ser. O kuduro enquadra-se no fenómeno geral da street dance, break dance e afins e o Tony Amado, considerado pai deste género, dá o mote, segue-se-lhe o Sebem com nova roupagem (entre tantos outros) e o Nagrelha, Naná, Estado-Maior e outros tantos nomes que teve e com que se terá auto-denominado, que faz a ruptura com os citados pioneiros. Ele diz, numa entrevista, que antes dele - Tony Amado e o Sebem - não havia narrativa, não havia letra, o mesmo que dizer que não havia kuduro. Logo, o kuduro, tal como o conhecemos hoje, terá começado com ele... O fenómeno Nagrelha é criado pelo próprio e, claro, pelo seu grupo, Os Lambas - atente-se no simbólico nome “Estado-Maior do Kuduro”, na indumentária do Nagrelha que nos remete para o papel e lugar das forças armadas, dos generais em Angola -, pela comunidade do Sambizanga, por Luanda, e pelos fãs que se foram multiplicando um pouco por todo o país.

Durante muito tempo disse-se que o kuduro cedo desapareceria, mas ele está bem presente... vai-se reinventado, novas batidas, sonoridades, novos intérpretes, e o kuduro continua. Hoje, pode até ser considerada música de intervenção. A sua importância está aí e o sistema que o diga, porque foram destinados lotes de construção para os kuduristas, o funeral do Nagrelha penso ter ficado a expensas do Estado... Claro que se tratará do reconhecimento artístico, cultural, social e sociológico do artista, mas não se pode ignorar os possíveis aproveitamentos políticos, muito frequentes nestes casos.

Até quando o kuduro se manterá, não sei, mas muito provavelmente enquanto se for reinventado (parece que os “bifes” estão a cair em desuso), continuaremos a ter kuduro, que entretanto já atravessa gerações.

 

E como explicar o sucedido no funeral do Nagrelha?

A “Nação Kuduro” esteve em peso. Foi a periferia, a força dos bairros, do gueto, dos desempregados, dos trabalhadores informais, dos gangues, dos jovens, a ocuparem o espaço urbano (sem esquecer os curiosos). E que força! O poder do kuduro, da periferia e da juventude desvalida, como já referi. Sem grandes lucubrações, diria que Nagrelha morreu (o seu funeral) como viveu, ou terá sido parte da sua vida: entre o caos e a ordem.

*PhD em Sociologia. Especialista em estudos sobre a juventude em Angola

 

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CLÁUDIO TOMÁS*

“Uma forma de vida ou um amplo

movimento popular artístico”

 

                                                                         Cláudio Tomás

“Penso que a compreensão sobre o que está a ocorrer com a comoção generalizada pela morte do Nagrelha deve passar pela relação de vários elementos. O primeiro deles é, sem sombra de duvidas, o sentimento de comoção pela morte prematura. Ninguém está preparado para ver partir pessoas tão jovens. Principalmente quando estas possuem recursos suficientes para acederem a cuidados de saúde adequados.

O segundo deles, e aqui começo a introduzir as minhas hipóteses, é o de Nagrelha ser aquilo que a Sociologia designa como um carismático. Encontramos na pessoa a mística própria de alguém que apela ao sentido de identificação de uma imensa multidão de jovens espalhados pelo País. Muito se deve, certamente,  ao  que ele sugere como ideal de realização social: um jovem nascido pobre, com poucas oportunidades, sem possibilidades de frequentar a escola, com uma experiência de vida marcada pela exclusão social, violência e criminalidade, e mesmo assim, e apesar disso, conseguir atingir os palcos da fama mundial através da música.

E há ainda outro aspecto importante a considerar (ainda como hipótese) na personagem carismática do Nagrelha: mesmo depois da consagração, da fama, e de tudo o que isso poderia trazer-lhe como benefícios, nunca o vimos em viagens a Miami, Portugal, ou a Dubai, a exibir sinais de riqueza. Nagrelha continuou igual a si mesmo. Não se deixou corromper pelo dinheiro e se transfigurar pela fama. Continuou próximo do seus, continuou a ser do Sambizanga, o Naná. E essa ideia de pureza e de fidelidade aos seus e às suas origens é uma marca distintiva que apela à simpatia, ao apreço e à identificação de muitos.

E, por fim, um último elemento: o Kuduro. A morte do Nagrelha é aquele evento que nos vem mostrar que o Kuduro não é apenas um estilo musical. De algum tempo a esta parte, o Kuduro vem sendo qualquer coisa que se pode situar entre uma forma de vida, um amplo movimento popular artístico, e um estado de espírito. A morte do Nagrelha, para além de ser o momento de expressão da comoção pelos seus fãs, é também um momento de celebração da afirmação do Kuduro como o produto final de todos aqueles elementos. O Kuduro é hoje representado como um veículo de promoção social por uma imensidão de jovens que vive na marginalidade, exclusão, no desemprego, e sem esperanças de realização pessoal através dos meios socialmente convencionais. Estes jovens têm todo interesse em que o Kuduro, com todos os seus defeitos, se afirme e seja reconhecido como veículo alternativo de realização social. Portanto, o que vimos no funeral do Nagrelha pode também ter sido, por um lado, uma vigorosa declaração de intenções de afirmação do Kuduro como a pátria dos excluídos e, por outro, pode também ter sido aquilo que os americanos designariam por “backlash”, traduzindo, a “desforra”. Ou seja, e no final das contas, o Kuduro como um sentimento de “desforra” conduzido por estes jovens contra uma elite política e económica que os abandonou e os deixou entregues à sua sorte. Daí também, como movimento artístico, o Kuduro trazer sub-repticiamente uma proposta de transgressão dos códigos sociais convencionais. Não apenas em termos da linguagem, mas até na resignificacão dos sentidos que se atribuem aos lugares de exclusão e de marginalização. É aqui que  nos poderá também dizer alguma coisas sobre a sinalização da existência cada vez mais notória do drama actual do País: a separação entre a ‘elite’ e o ‘povo’”. 

*Ph.D em Sociologia. Professor Auxiliar do Departamento de Sociologia da Faculdade de Ciências Sociais da Universidade Agostinho Neto

 

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JOMO FORTUNATO *

Quem sabe surja no futuro o Kuduro sinfónico?

                                                                             Jomo Fortunato

 

O que explica o surgimento e a ascensão do kuduro?

Um aspecto a reter: as manifestações culturais e artísticas, acompanham sempre as transformações sociais e políticas em qualquer sociedade.  Há uma tipologia musical característica do tempo colonial e outra do pós-independência. O kuduro, tal como o conhecemos nas suas variantes, seria impensável nos anos quarenta, data dos primórdios da formação da Música Popular Angolana. Liceu Vieira Dias fala em meados dos anos quarenta, no filme “Ritmo do Ngola Ritmos” do realizador António Ole, como sendo a data da formação do “Ngola Ritmos”.

O kuduro, enquanto género musical, é resultado do aumento exponencial da pobreza e da desestruturação do sistema de ensino, o que resultou em arte, uma performance artística que inclui a dança e suas coreografias acrobáticas.

O cantor e compositor, Nagrelha, se estudasse os clássicos da literatura angolana e portuguesa, estamos certos que produziria outra génese de textos, a menos que a ruptura com o português europeu, fosse intencional como ocorre nos textos literários de Luandino Vieira. 

A sociologia da arte  poderá explicar a ascensão do Nagrelha, contextualizada por factores de índole geracional. Nagrelha comunica, fundamentalmente, com os seus. Estamos em presença de um artista que dialoga com o seu público, através de um sistema semiótico muito próprio, consubstanciado no calão e numa visão do mundo muito própria das periferias.   

A pesquisa sobre a origem, formação e contextualização social do Kuduro, passa pela investigação da sua pré-história, ou seja, o conjunto  de eventos anteriores à sua formação, enquanto género musical estruturado. 

No período que vai de 1982 a 1983,  houve um conjunto de ocorrências no domínio da dança, protagonizado pelos dançarinos de “break dance”, Paulo Kumba, Elvis, João Dikson e Pataca no terraço do prédio Hitachi, Bairro Alvalade, Cine Atlântico, campo de jogos dos Leões de Luanda, e nos ginásios das escolas, Mutu ya Kevela, Ngola Kanini e Ngola Kiluanji.  

Teve igualmente influência na configuração actual do Kuduro, enquanto dança, o movimento da cabetula, com os “Originais da Cabelula”, Beto Kiala e Pedruce, e o movimento da vaiola com Cifoxi e Zé Vaiola.  Estamos numa época em que os concursos de dança nas escolas eram apresentados pelo radialistas Adão Filipe e Octávio Kapapa, da Rádio Nacional de Angola, Balduíno Carlos, Ernesto Bartolomeu e Cláudia Marília da Televisão Pública de Angola, sendo justo incluir na análise da pré-história, os programas,  “Explosão” e “Horizonte”,  da Televisão Pública de Angola.

À época, a dança era mais importante que a música, e as primeiras batidas de Kuduro não tinham letra, fenómeno que surgiu depois com o surgimento do Tony Amado. Nagrelha distanciou-se da pré-história do kuduro, criando  um estilo e uma linguagem muito próprios.  

 

O que estará por detrás do kuduro e que justificará a sua força entre os jovens das periferias?

A força é geracional de uma juventude sem rumo, crescida num contexto de corrupção e de desvalorização dos quadros angolanos, que poderiam dar continuidade ou substituir a fuga de cérebros na época colonial. Estamos perante uma juventude brutalizada, distante da academia, mas que possui uma arte, à medida das circunstâncias sociais das periferias, com todas as assimetrias adjacentes e sobejamente conhecidas.

 

Por que será que o kuduro e os kuduristas atraem tanta hostilidade, ao mesmo tempo que (o kuduro), paradoxalmente, atrai muita gente às rodas de dança nas festas?

A hostilidade advém dos sectores que fazem uma leitura aparente, ou melhor, superficial e  impressionista das origens sociais e estéticas do kuduro.  As propostas do kuduro, só muito dificilmente são absorvidas pela visão do belo da velha geração.

Os gostos são subjectivos mas importa lembrar que a música ocorre quando há harmonia, ritmo e melodia. No entanto, há músicas mais harmoniosas, melodiosas e ritmadas que outras. O kuduro investe, tão-somente,  no ritmo.  Importa reter,  sem desvalorizar, os esquemas rimáticos e a dimensão satírica dos textos do kuduro.

 

É o kuduro o género musical dos sofredores?

Repare que o Nagrelha comunica com o seu público, ele não dialoga com as elites. Pergunta se é uma música dos sofredores? Talvez… o certo é que é uma vertente musical que se popularizou nas camadas sociais mais desfavorecidas, embora a sua origem do ponto de vista da estratificação social, seja híbrida.  Neste capítulo,  importa estudar com a acuidade recomendável a pré-história do kuduro. 

 

Além de estilo musical e cultural o kuduro é também um fenómeno político?

Enquanto fenómeno de massas, o kuduro é matéria-prima apetecível a qualquer político. Neste aspecto, interessa analisar os textos satíricos do kuduro. Um exemplo, dentre outros não menores, é o tema “Arroz com feijão” do “Elenco da Paz”, reparemos na letra: Só mexeram no meu prato / só picaram no meu prato / afinal é só feijão / pensaram que tinha carne / o bocado que era meu / afinal é só feijão / Meu prato do dia a dia (...), um tema interessante para uma reflexão profunda sobre a fome e a miséria.

 

O que é que Nagrelha tinha de especial e que justifica tamanha legião de seguidores e/ou admiradores?

Nagrelha é um fenómeno explosivo da cultura popular não académica. Na verdade, sempre valorizei a cultura de emanação popular, distante dos circuitos formais da academia, aliás como parte substancial das origens da Música Popular Angolana, quer a nível do canto como ao nível instrumental.

O carisma era resultado de uma conjugação de vários factores: a linguagem e a mística da comunicação do Nagrelha com o seu público, a propensão para a liderança, a assimilação de comportamentos pouco recomendáveis e a integração dos seus seguidores nas franjas marginais do Sambizanga e da periferia em geral.

 

Acredita que vai surgir um “novo” nagrelha?

Na história da arte e das sociedades, existem ocorrências previsíveis e outras não. O surgimento de uma personalidade carismática, igual ao Nagrelha, é naturalmente impossível, por uma simples razão, não existem pessoas repetíveis.

Pode ser que surja um ícone com as mesmas características, caso permaneçam as causas que estão na origem da formação do kuduro, ou seja,  as assimetrias sociais e a ausência de um sistema de ensino estruturado.  Contudo, o kuduro, enquanto género, pode evoluir para outras vertentes. Pode ser que surja no futuro, o kuduro sinfónico, quem sabe?

Sempre pensando na evolução e na refundação do género, seria interessante integrar a história do kuduro nos estudos culturais universitários, tal como já existe no Brasil com os estudos da Adriana Fancina e Hermano Vianna, em relação ao funk brasileiro, um género vizinho ao kuduro.

Julgamos ser possível estabelecer nexos periodológicos, sem preconceitos, e elevar à categoria de ensino superior, conteúdos sobre o kuduro, género musical contemporâneo de expressão internacional.

Os estudiosos da contemporaneidade musical angolana estão em condições de reunir material disperso, incluindo depoimentos de artistas e protagonistas de reconhecido mérito, sobre a história e discografia do kuduro, visando a sua sistematização e integração no âmbito dos Estudos Culturais Angolanos, de nível universitário.

A proposta de sistematização da história do Kuduro, que pressupõe um debate alargado entre investigadores e artistas, poderá analisar e dar a conhecer o estado actual deste género musical com o objectivo de encontrar consensos possíveis para a sua estabilidade periodológica, conhecer as diferentes fases do Kuduro no feminino, reflectir sobre a génese das letras das canções, aconselhar a reutilização das conquistas de Angola, ao nível da educação, saúde, construção de infra-estruturas, educação cívica, e preservação dos bens públicos nas composições musicais, numa perspectiva de associar a arte à educação patriótica.

Atenção: pelas características estéticas, rítmico peculiar e propósitos textuais,   a análise comparativa do Kuduro deve ser empreendida no interior deste género musical, pelo que se nos afigura descabido aproximar o kuduro às correntes musicais mais preocupadas com arranjos e construções elaboradas, do ponto de vista  harmónico e melódico. É urgente acabar com os preconceitos da investigação universitária no domínio da “Cultura popular”, na sua relação com as indústrias culturais.

*Investigador especializado em música popular urbana angolana

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MARIA LUÍSA ROGÉRIO*

“A voz que emergiu dos ghetos”

                                                                           Luísa Rogério

Compreendo que Nagrelha signifique pouco ou nada para algumas pessoas. Eu própria, talvez influenciada por um pseudo-elitismo barroco como diria o Raimundo Salvador, também tinha um certo olhar preconceituoso sobre o Kuduro até ao dia em que entrevistei Euclides da Lomba, salvo erro no ano de 2000.

A minha ignorância não me impediu de perceber que tinha duas opções: gostar ou ignorar! Paradoxalmente, gostava de dar uns valentes toques na roda, lá onde a intelectualidade se esvai, as estéticas etc. e tal perdem rede. Kuduro não é o tipo de música que eu coloque para ouvir em casa ou no carro, mas é o tipo de música que não me deixa indiferente.

Quando danço ao som do Kuduro, esqueço as malambas, as dores do corpo e da alma. Kuduro, como ensinou Da Lomba naquela entrevista, é mais do que ritmo dançante para o qual correntes elitistas olham com preconceito, quase com desdém. Kuduro é um fenómeno social. Por detrás da forte batida, das rimas irreverentes e muitas vezes ofensivas, do “baixo calão” e dos movimentos insinuantes, encontramos uma cultura popular. Não a cultura das definições acadêmicas nem a que nos coloca bem na fotografia do politicamente correcto. Falo da cultura que manifesta razões, formas de ser e de estar na vida.

Nagrelha é a voz que emergiu dos ghetos, rompendo a “fronteira do asfalto”, como tão bem descreveu Luandino Vieira. Obviamente, isso incomoda! Um “mussequeiro” sem maneiras a invadir-nos a casa adentro com o seu “pretuguês”? Onde é que já se viu “liambeiros delinquentes” do musseque armados em gente só porque já aparecem na televisão? Pois, é esse mesmo! Nagrelha é a voz do povo.

Se quiserem entender o que isso significa, nem que seja para criticarem com mais fundamentos, visitem o Sambizanga, o Rangel, o Cazenga e todas periferias. Depois, podem estender o caso de estudo ao asfalto. Talvez descubram a dimensão do “Comboio”. Ninguém é obrigado a gostar de Kuduro. Ou do Nagrelha. Mantenham-se à vontade na redoma do etnocentrismo cultural euro-ocidental. Isso não me incomoda, cada um com a sua identidade. Exercitar a liberdade de expressão é um direito. Respeitar a dor alheia é sinal de civilidade. Isso também é democracia!

Descansa em paz Nagrelha”

*Jornalista

 

 

 

quarta-feira, 20 de abril de 2022

MÉDICO E NACIONALISTA MANUEL VIDEIRA: “O mais importante para os da minha geração é escrever sobre o processo da Independência”




O médico urologista e cirugião (na reforma) Manuel Videira recebeu-nos na sua residência, em Luanda, numa manhã sem sol, a prenunciar chuva. “Vai um café? Com ou sem cafeína?”, convidou, mal nos sentámos num confortável sofá. Enquanto o café não vinha fomos directos à conversa que nos interessava. Manuel Videira revelou-se um homem tranquilo, com um discurso lúcido, ponderado mas que não foge às questões aparentemente difíceis. Quisemos saber pormenores do seu percurso como nacionalista activo, a sua convivência no seio do MPLA em Leópoldiville e depois no interior de Angola até ao momento da sua prisão em 1976 e o consequente abandono da vida política activa.  O seu livro de memórias “Angola: Um Intelectual na Rebelião”, prefaciado pelo reputado historiador Jean-Michel Mabeko Tali, esteve no centro da conversa

 Isaquiel Cori (Textos)

Considera-se um dos fundadores do MPLA?

Não. Fui um dos militantes que “fundaram” o MPLA em Léopoldville (actual Kinshasa). Não me considero um fundador do MPLA.

 

Quando vai para estudar em Portugal, em 1954, já se falava em movimentos nacionalistas angolanos organizados?

Eu só oiço falar do MPLA como tal apenas em 1961, depois do 4 de Fevereiro. Pelo menos em Coimbra não sabíamos da existência do MPLA como “partido” organizado. Cerca de cem estudantes do Ultramar fugiram de Portugal sobretudo por causa da mobilização militar. Eu fui chamado para prestar serviço no exercito português e deram-me um prazo de 15 dias para me apresentar no quartel. Nesses quinze dias tive contacto com a organização clandestina que nós tínhamos em Coimbra e fugi (em Junho de 1961) para Paris. Só em Paris é que realmente tivemos contacto directo com Mário Pinto de Andrade, Viriato da Cruz e Lúcio Lara e tomamos conhecimento da existência real do MPLA.

A base desta nossa conversa é o seu livro. Como é que o escreveu? Baseou-se, além das suas memórias, em apontamentos feitos ao longo dos anos em cadernos e também em pesquisa documental?

Baseei-me em tudo o que referiu. Principalmente em memórias mas também nos cadernos de apontamentos que eu tinha e na literatura que já estava publicada. Claro que fiz pesquisa. Sobretudo em livros da Fundação Tchiweka, de Lúcio Lara, que publicou todos os comunicados que eram elaborados pelo Comité Director que davam conhecimento aos militantes dos factos que iam passando. Isto para poder me alinhar sobretudo em relação ao tempo, para não escrever fora do tempo.

Viriato Cruz defendia em 1962, em Léopoldiville, que devia haver um “recuo estratégico” dos mestiços nas estruturas dirigentes do Movimento. O que é que isso queria dizer excatamente? Qual era o contexto da afirmação de Viriato da Cruz?

Essa deriva do pensamento de Viriato Cruz resultou de uma grande pressão que era feita pela UPA de Holden Roberto contra a direcção do MPLA, dizendo aos seus militantes e fazendo espalhar que o MPLA se tratava de um movimento de brancos e de mulatos e portanto não tinha nenhum significado para a luta em Angola. Como chegou a haver actos de agressão a uma delegação de médicos do CVAAR que foram à fronteira, em Matadi, fazer um reconhecimento das populações para prestar assistência... essa atitude dos militantes da UPA provocou realmente um desencorajamento muito grande. Segundo me lembro, o primeiro responsável a falar nessa teoria não foi o Viriato mas o Dr. Eduardo Macedo dos Santos, que na altura era membro do Comité Director. Mas depois o Viriato achou que essa deveria ser uma estratégia a adoptar para proteger a própria organização em si.

Além dessa interferência da UPA, no seio da massa militante do MPLA havia também a percepção de que os brancos e os mulatos não deveriam participar na luta de libertação nacional e em particular na guerrilha?

Não, não havia. Houve mais tarde, por parte de alguns membros. Nos períodos de grande crise, como sabe, o que predominava era a fome, a luta pela sobrevivência. Mas em 1962 não houve pressão da parte dos militantes do MPLA. Houve pressão da parte da UPA, do governo congolês, de certas teorias do Frantz Fanon, que era um dos conselheiros da luta dos argelinos, ele que escreveu o livro “Os condenados da terra” e curiosamente era mestiço.

No livro fala da visita de Savimbi, em 1961, ao grupo de estudantes em França  fugidos de Portugal. E refere que já na altura Savimbi “denotava uma clara preocupação em encarnar a personagem política de Patrice Lumumba”. Aquela influência, que ia até à forma de se vestir, foi momentânea ou perdurou no tempo?

Não sei dizer durante quanto tempo durou, mas para mim foi marcante. Nós estávamos na Cimade, que era um centro das igrejas protestantes especialmente dedicado a prestar assistência aos refugiados políticos, sobretudo aos jovens refugiados políticos. Quando lá estávamos fomos surpreendidos pelo pedido para visitar o grupo feito pelo Jonas Savimbi, que alguns de nós conhecíamos de Lisboa e outros de Angola. Mas ele foi especialmente para visitar o Dr. Lihauca, que acho que tinha estudado na mesma missão em que ele tinha estudado. O Savimbi apresentou-se vestido com o seu “abako”, igual ao de Lumumba, tal como os óculos, o que era extremamente raro em França na altura, mesmo por parte de africanos. Tanto é assim que nós dizíamos “olha está aí o irmão do Lumumba”.

 

No livro dedica largos espaços, capítulos inteiros, a traçar o retrato de figuras com as quais se cruzou e conviveu, algumas das quais constam da história da luta anti-colonial. Sãos os casos de Viriato da Cruz, Mário Pinto de Andrade, Agostinho Neto, Gentil Viana, Deolinda Rodrigues, Eduardo Mondlane, Amílcar Cabral, Sócrates Dáskalos, Comandante Benedito e outros. Foi sua preocupação homenagear dessa forma aquelas personalidades?

Sim. Pretendi sobretudo relembrar personalidades que foram muito importantes na vida do Movimento e da luta de libertação de Angola. São figuras de que nunca se fala nos tempos actuais e que na minha opinião devem merecer evocação de tempos em tempos e até que sejam oficialmente reconhecidas com, por exemplo, a aplicação dos seus nomes em ruas das cidades. Um comandante Benedito, por exemplo, deveria o seu nome em ruas.

Mário Pinto de Andrade é um dos retratados. Refere-se a ele como figura central na organização da rede clandestina no exterior, na frente diplomática e como idealizador do CVAAR. Quais eram os pontos fortes e os fracos da personalidade e da liderança de MPA?

Dos pontos fortes era sobretudo a sua grande cultura. Era um homem que frequentou a  Sorbonne (universidade), trabalhava na Présence Africaine já há alguns anos, ele tinha um avanço de conhecimentos culturais muito acentuado. E sobretudo conhecimento político e diplomático. Era um homem, um cidadão totalmente urbanizado, como ele próprio reconhecia. Mas tudo isso existia ou habitava numa pessoa de estrutura física débil, ele não tinha fisicamente nenhuma condição de se deslocar nas matas onde alguns de nós andamos a trilhar durante anos. Essa era a sua debilidade. Mas do ponto de vista mental era brilhante, não só no MPLA mas em qualquer cenário africano.

Outro dos aspectos fascinantes do seu livro é a forma aberta, desassombrada, sem censura (ou auto-censura) como aborda questões durante muito tempo tabu no seio do MPLA, como por exemplo a questão do racismo, não só na fase inicial em Léopoldville mas também na fase que culminou mais tarde com a Revolta do Leste e depois a Revolta Activa. As contradições raciais no seio do MPLA e na sociedade angolana, na sua opinião, solucionaram-se com a Independência?

Acho que não. Isso é um fenómeno muito generalizado e não podemos esquecer que logo a seguir à guerra pela Independência veio a guerra civil. Uma guerra civil tende a ter um factor racial muito pesado. Foi isso que nos levou e talvez nos leva ainda hoje a ter alguns problemas. A Independência em si claro que não conseguiu resolver essas questões. E sobretudo porque infelizmente a UPA sempre primou a sua filosofia política com base no racismo e no tribalismo. A UPA não foi só racista, foi sobretudo tribalista. Eles não admitiam, por exempo, no seu comando, senão indivíduos de origem kikongo.

Isso tudo, claro, dificultou a criação de uma frente única anti-colonial?

Impediu completamente. A UPA de Holden Roberto, enquanto esteve no Congo e mesmo após o MPLA ter aberto a Frente Leste eles nunca aceitaram fazer uma frente unida, porque achavam que com as alianças que tinham com Mobutu iriam facilmente ganhar a Independência.

Em Junho de 1962 Agostinho Neto, então presidente de honra do MPLA, sai da prisão em Portugal e ainda nesse ano em Léopoldville assume as funções de presidente efectivo do MPLA, substituindo MPA. Essa substituição foi natural, esperada e absolutamente consensual?

Agostinho Neto quando desce de Marrocos, passando pelo Gana e pela Guiné, e chega  a Léopoldville já tinha sido eleito presidente de honra do MPLA. Mário Pinto de Andrade, que como disse anteriormente, era um militante especialmente devotado às actividades diplomáticas, reuniu o Comité Director e disse “olha, vocês sabem que eu como presidente estou de passagem, o verdadeiro presidente é o camarada Agostinho Neto”. No princípio não houve problema nenhum. Não me lembro se na primeira reunião Viriato da Cruz estava ou não. Infelizmente para o MPLA, Agostinho Neto chega justamente naquele período em que o Viriato da Cruz perfilhava a estratégia do recuo dos mestiços e não participava nas reuniões do Comité Director. É a partir daí que justamente se começam a acumular os desentendimentos entre um e outro.

 

Como o senhor mostra no livro, não tardou a haver os embates entre Viriato da Cruz e Agostinho Neto...

O Viriato da Cruz tinha uma mentalidade marxista e como secretário-geral, em princípio, era o homem mais importante do Movimento, ele achava que ele é que devia dominar a máquina, toda a actividade e sobretudo todo o pensamento político da organização. Agostinho Neto tinha outra concepção, achava que o presidente é que tinha de ser a personalidade mais importante.

 Mas estatutariamente como é que era na altura, quem é que devia ter mais poder?

Pelos estatutos realmente o secretário-geral deveria ter mais poder. Viriato da Cruz dizia que Agostinho Neto chegou a Léopoldville, tomou os cargos, começou logo por organizar, em menos de uma semana, uma conferência de imprensa sem o consultar, quando ele é que devia transmitir a Agostinho Neto qual era a situação real do MPLA. Eu penso que Agostinho Neto não reuniu com Viriato porque este praticamente tinha se afastado. Dizia-se, isto não está no livro, que Viriato tinha uma entrevista com Neto e este deixou-o muito tempo a espera... Começaram aí os desentendimentos. Por outro lado Agostinho Neto vinha com muita “fúria” e muita pressa e convencido que iria convencer o Holden Roberto a fazer uma plataforma qualquer de entendimento, tipo uma frente unida...

 Viriato não concordava com isso, apesar de mais tarde aproximar-se de Holden de Roberto...

Uma das primeiras atitudes políticas do presidente Agostinho Neto em Léopoldiville foi escrever uma carta ao Holden a pedir uma reunião para discutirem formas de entendimento. Mas uma semana depois recebeu a resposta de Holden muito pouco simpática a recusar esse encontro.

Por que teria Holden Roberto recusado?

Porque achava que o MPLA não valia nada e nunca conseguiria implantação no interior de Angola. Um outro pormenor: pouco depois de Agostinho Neto chegar a Léopoldville, chegou também um antigo missionário, o bispo Dodge, que tinha sido professor de Agostinho Neto. Dodge chegou, acho que secretamente, a Léopoldville, para cumprimentar e falar com Agostinho Neto e  convidar-lhe para fazer uma tournée nos Estados Unidos. Infelizmente o Viriato da Cruz fez espalhar a notícia desse convite, que devia permanecer secreto, para provocar na embaixada da União Soviética uma reacção evidentemente desfavorável. Ele espalhou que a ida de Agostinho Neto aos Estados Unidos seria uma traição, de tal modo que Neto se viu obrigado a cancelar essa viagem. No meu conhecimento esses são os principais factores que afastam Agostinho Neto de Viriato da Cruz. Mas também houve aí conflito de personalidades, ambos eram homens de poder e não gostavam de partilhar o poder.

A História não é feita de “se”, de situações hipotéticas, mas se, vamos lá fazer esse exercício, Agostinho Neto em 1963 tivesse ido em digressão pelos Estados Unidos, eventualmente o MPLA se teria afastado do universo socialista, teria sido uma força mais vinculada aos interesses ocidentais, nomeadamente norte-americanos?

É como você diz, a História não se faz de “se”. Mas, dada a experiência anterior que nós tivemos, por exemplo a fuga dos estudantes ultramarinos, que afinal, no fundo, foi organizada pelas igrejas protestantes, como está no meu livro isso veio a saber-se cinquenta anos mais tarde, é bem possível que o MPLA, pelo menos, tivesse sido visto pela parte americana de uma outra maneira, porque a UPA conseguiu criar na opinião pública americana a percepção de que o MPLA era um movimento de comunistas. E colou-nos esse rótulo, de que o MPLA dificilmente conseguiu libertar-se. Isso também porque a potência que efectivamente apoiava os movimentos de libertação aqui em África era a União Soviética. E ainda porque os estatutos que foram criados pelo Viriato da Cruz eram certamente inspirados pelos princípios marxistas.

Jovens intelectuais actualmente perguntam: Agostinho Neto, durante o período da luta de libertação, era mesmo comunista?

O presidente Agostinho Neto era pessoa de poucas falas. Eu nunca lhe ouvi a fazer afirmações nesse sentido. Ele era um revolucionário de ideias de inspiração marxista, daí a ser comunista acho que não. Agora, a revolução que houve aqui em Angola, com a luta pela independência e depois com a participação de Cuba e de cooperantes soviéticos, alemães (da ex-RDA), etc., etc., é que veio dar ao MPLA esse cunho de partido comunista. Mas eu acho que o MPLA nunca foi um partido comunista, nem sequer um partido de comunistas.

Retive da leitura do seu livro que em 1968 chegou a contactar Amílcar Cabral para ingressar nas fileiras do PAIGC.  Quais foram os motivos que o levaram àquela tentativa?

O primeiro motivo foi que eu conhecia pessoalmente Amílcar Cabral, éramos não digo amigos mas conhecidos. Segundo é que nessa altura o PAIGC tinha organizado na Guiné Conakry um hospital e tinha ido para lá um médico angolano que se tinha refugiado no Congo e tinha sido meu colega em Coimbra. Tive conhecimento disso em Argel e como na altura não tinha funções nenhumas ao nível do MPLA achava que poderia ir dar a minha ajuda ao serviço de assistência do PAIGC enquanto médico. Não seria como militante do PAIGC mas como angolano a participar e a ajudar os serviços de assistência médica do PAIGC. Encontrei-me com Cabral em Argel, pus-lhe a hipótese, ele admitiu imediatamente que sim mas achava que eu deveria ter, na qualidade de angolano, a autorização do presidente Agostinho Neto. Fiz um pedido escrito de autorização mas Agostinho Neto recusou, disse que tinha funções para me atribuir, como realmente o fez cerca de um ano e meio depois, enviando-me para a Frente Leste.

A perseguição que sofreu por ter participado  na Revolta Activa e que culminou com a sua prisão logo depois da independência, em Março de 1976, deixou-o amargurado? Ainda tem mágoas por tudo o que passou e sofreu?

Já passaram quase cinquenta anos, todos nós, angolanos, estamos em fase activa de reconciliação e, portanto, não guardo mágoa. Já participei em várias actividades do MPLA, de que sou portador de um cartão de militante, fui contemplado com a medalha dos cinquenta anos do MPLA e como nunca tive funções exclusivamente políticas nem ambições políticas, desde Kinshasa, estou absolutamente satisfeito.

Passou à reforma com a patente de coronel, quando todos os nacionalistas do seu tempo são generais. O que é que se passou?

[Risos] Passei à reforma como major e acho que por interferência superior fui designado coronel. O que se passou é que eu pertenci à direcção da Revolta Activa, penso eu.

Quando esteve preso não foi submetido a nenhum processo, não foi condenado...

Sim, é verdade.

 

Porque é que esteve preso, afinal?

Não tive processo nem julgamento, é certo. A acusação era de traição à pátria [Risos]. Fui preso a 12 ou 15 de Março de 1976, estava eu na Lunda como único médico e director dos serviços de saúde da Diamang, quando fui abordado por um camarada (na altura todos éramos camaradas) que levava uma ordem de prisão assinada plo director máximo da Segurança, que na altura era o Ludy Kissassunda, com a acusação de que estava a conspirar contra a segurança do Estado. Fiquei dois anos, sete meses e mais uns dias na cadeia.

 

Como é que passou o 27 de Maio de 1997, na cadeia?

Foi dramático, assustador. Fomos acordados pela primeira bazucada que foi disparada contra a cadeia do S. Paulo. A bazuca foi atirada justamente para o ângulo onde se encontrava a camarata da Revolta Activa. Não sei se foi por acaso ou intencional. Eram 6 horas e 25 minutos da manhã. A cela era colectiva mas não muito grande. Lá estávamos seis ou sete, os considerados dirigentes da Revolta Activa.

Quem eram os outros que estavam consigo na cela?

Estavam o Gentil Viana, o Mário Paiva, os três irmãos Pinto de Andrade (o Justino, o Vicente e o mais novo, já falecido), um jovem, o Lukamba, que agora está na Inglaterra, o Jota Carmelino...

Na altura correram o especial risco de serem fuzilados?

Houve dois incidentes que apontavam para esse desfecho. Um quando alguém andava à nossa procura e depois de nos identificar disse “ai é, logo à noite vocês vão parar o motor no Campo da Revolução”. E foi-se embora. Passada cerca de meia hora o Sabata, penso que você já ouviu falar dele, com uma AK foi a procura dos membros da Revolta Activa e começou a alinhá-los para iniciar o fuzilamento, aí mesmo na cadeia. Felizmente para nós a comissária Virinhas, que fez parte do assalto (alguns dizem que foi ela que comandou o assalto à cadeia do S.Paulo, que durou horas) vinha a atravessar o pátio e veio a correr, chega ao pé do Sabata e dá um grito: “Óh Sabata, quem é que te deu ordem de fazer isso?”. Ela, mesmo grávida, tinha para aí uns cinco meses de gravidez, deu um golpe ao Sabata e tira-lhe a arma. “Comissário aqui é que manda, quem te deu ordem?”, ela foi ralhando com o Sabata, que, envergonhado por ser desarmado por uma mulher, saiu pelo portão grande e nunca mais o vimos. Foi assim que a Virinhas nos salvou.

 A comissária Virinhas viria também a desaparecer para sempre...

O que constou é que deixaram-lhe dar à luz o filho e depois foi executada. Ela está enterrada no cemitério de Benguela.

 Olhando para trás arrepende-se de alguma coisa? Faria as mesmas opções?

Arrependimento da minha actividade como nacionalista não. Fui lutar pela independência de Angola, não pela independência do MPLA. Fui para o MPLA porque tinha de participar numa organização. É dessa maneira que equaciono todo esse percurso que eu tive na luta de libertação.  O meu partido é o MPLA e vou morrer no MPLA.

Sente que a sua biografia foi ou está a ser devidamente valorizada ao longo desses anos todos, não só no seio do MPLA, mas do país?

É dificil de responder a essa pergunta. O MPLA tem uma longevidade tão grande, teve uma participação tão volumosa na libertação deste país que é dificil poder seguir a vida de todos os seus militantes. Eu escrevi o livro sobretudo para lembrar alguns acontecimentos e algumas personalidades que não devem ser esquecidas e também porque muita gente insiste que os mais-velhos têm que escrever. E sou de opinião que sim, que devem escrever aquilo que podem e que sabem para contribuir para o processo histórico deste país. O mais importante para nós, os da minha geração, é escrever sobre a nossa participação no processo da independência e da libertação do país. Depois disto há outras gerações que devem escrever sobre o que fizeram para este país poder ter paz e progresso.

O livro termina com a lembrança da sua prisão, de onde saiu há quase 45 anos. O que viveu de lá para cá não merece um segundo volume?

Esse livro é de memórias mas não é uma auto-biografia. É um livro de memória em que eu reflicto sobre o que aconteceu num tempo que eu achei essencial, fundamental, que nunca mais se vai repetir em Angola, pois nunca mais ninguém vai lutar pela independência de Angola.

 

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Biografia breve

Manuel Videira nasceu em Porto Amboim, em 1935. Licenciou-se em Medicina pela Universidade de Coimbra em 1961, tendo sido dirigente eleito da Associação Académica, sócio da Casa dos Estudantes do Império e um dos organizadores da fuga de estudantes para França em 1961.

Em Paris, filia-se no MPLA, tendo organizado nova fuga clandestina no mesmo ano, desta vez para o Gana, de onde partiu para Léopoldville (actual Kinshasa). Foi um dos fundadores do CVAAR (Corpo Voluntário Angolano de Assistência aos Refugiados), organismo que serviu de ponta-de-lança à penetração política do MPLA no Congo.

Combateu na guerrilha do MPLA e, mais tarde, fez parte da Revolta Activa. Com a Independência, regressou a Angola, tendo sido preso durante 2 anos, 6 meses e 14 dias. De volta à vida civil, foi médico (cirurgião e urologista) e director-geral do Hospital Universitário Américo Boavida.

Está reformado com a patente de Coronel.

*Entrevista publicada na edição do dia 20/04/2022 do Jornal de Angola

“Angola: Um Intelectual na Rebelião”

 Isaquiel Cori




“Angola – Um Intelectual na Rebelião” - (420 páginas) -, livro de memórias do médico angolano Manuel Videira, publicado no ano passado em Portugal pela editora Guerra & Paz (disponível em Angola pela mão do autor), surge numa altura em que muitos já pensavam que tudo estava contado a respeito do processo de luta de libertação nacional. Este livro não trazendo, em termos do quadro geral, nada de que não se soubesse já, revela-se riquíssimo em detalhes na descrição do carácter de personalidades que se cruzaram e conviveram com o autor e que se destacaram naquele processo. Figuras como Agostinho Neto, Mário Pinto de Andrade, Deolinda Rodrigues, Comandante Benedito, Manuel dos Santos Lima, Gentil Viana, Eduardo Macedo dos Santos e várias outras aparecem retratadas no livro na força e nas fragilidades da sua humanidade. Referindo-se, por exemplo, ao primeiro encontro com Viriato da Cruz, em 1961, em Paris, escreve o autor que já então notara nele um “grande carisma que seduzia e subjugava”.

Manuel Videira sem qualquer tipo de auto-censura vai ao âmago das sucessivas crises vividas pelo MPLA e disseca as suas causas. A saber, as contradições raciais e tribais (transportadas da própria sociedade colonial angolana), de visão estratégica e o puro choque de personalidades vocacionadas pelo poder sem contestação.

A chegada de Agostinho Neto a Léopoldville em 1962, depois da fuga da cadeia em Portugal em Junho desse mesmo ano (com o apoio da rede clandestina do PCP)  e as medidas imediatas que tomou para relançar a acção do Movimento, então mergulhado numa relativa apatia e desavenças intestinas que culminariam, em Julho de 1963, com a expulsão de José Bernardo Domingos, Viriato da Cruz, Matias Miguéis e José Miguel, é narrada ao pormenor. A difícil situação do MPLA fica muitíssimo mais complicada quando uma comissão da OUA, naquele mesmo ano, reconhece as forças combatentes da FNLA como sendo “de longe, maiores do que qualquer outra”, sendo as “mais eficazes” e constituírem “de facto a única verdadeira frente de combate em Angola”. Naquela altura o MPLA tinha como um dos seus principais activos o CVAAR (Corpo Voluntário Angolano de Assistência aos Refugiados, idealizado por Mário Pinto de Andrade) cujo contingente de médicos angolanos chegou a ser em maior número que o total de médicos congoleses em todo o território do Congo-Léopoldville.

Através do percurso de vida do autor, das peripécias por que passou, e pelo facto de ter estado no centro de muitos acontecimentos decisivos, o leitor é transportado, na primeira pessoa, como se estivesse a viajar em primeira classe, através de uma escrita límpida, directa, sem grandes circunlóquios, para a História da Luta de Libertação Nacional. Uma história feita de heróis, sem dúvida, mas de carne e osso, por isso falíveis. Tão falíveis que, por exemplo, o próprio Manuel Videira viu-se, quatro meses depois da Independência, atirado para a prisão onde ficou dois anos e sete meses sem processo judicial e muito menos julgamento. O riso com que hoje o médico e nacionalista responde à pergunta sobre as verdadeiras causas da sua prisão diz tudo sobre o absurdo da situação.

Manuel Videira com este livro responde, no que lhe cabe, à demanda social aos integrantes da sua geração para que escrevam e transmitam às gerações posteriores  o legado da sua vida em prol da criação da nacionalidade angolana. Por isso, é um Manuel Videira aliviado, com sentimento do dever cumprido, que disse ao Jornal de Angola: “Eu escrevi o livro (...) porque muita gente insiste que os mais-velhos têm que escrever”.

Efectivamente, é cada vez mais imperioso escrever, meter no papel as memórias, os sonhos, as aspirações. No fim de tudo, no somatório do que vai permanecer ou ser esquecido na posteridade, o que estiver escrito será fadado a ser considerado “verdade”. E através desses escritos se vão perpetuar visões, percepções, narrativas de grupos que histórica e culturalmente serão considerados hegemónicos.