Isaquiel Cori
Nagrelha, o cantor
de Kuduro, foi a enterrar na última terça-feira (22/11/2022) bem Luanda, com o cortejo a ser seguido por multidões tão
grandes como raramente se viu em Angola. A comoção e os ajuntamentos começaram
a notar-se logo após a notícia da morte, dada em comunicado oficial, num outro
acto inédito, pela instituição hospitalar onde o cantor estava internado -
aliás, o “nunca antes ocorrido” já acontecera quando, no dia 25 de Junho,
Nagrelha fora evacuado de urgência para o exterior acompanhado pelo director
clínico da mesma instituição hospitalar. As multidões aos choros foram
crescendo no Sambizanga, bairro onde o cantor nasceu e cresceu, e noutros
bairros anteriormente chamados musseques e hoje commumente designados
“periféricos” (serão periféricos não tanto pela localização geográfica, mas
pela marginalização social). A noite do velório no estádio da Cidadela, com as
bancadas abarrotadas de gente, lembrava o cenário de um jogo da selecção
nacional de futebol nos seus tempos áureos. E, finalmente, no dia do funeral
foi o que se viu. Vídeos e fotos que circularam amplamente nas redes sociais, e
as imagens exibidas na TV, mostraram multidões em transe a acompanhar o cortejo
fúnebre e grupos de oportunistas a vandalizarem património alheio.
Membros da elite
bem pensante, quando não se mostraram perplexos e paralisados diante do
fenómeno que se desenrolava a seus olhos, invectivaram a horda de anónimos que
se levantou dos bairros periféricos, mas não só, para chorar e acompanhar à
última morada o cidadão-cantor Nagrelha, cultor de um género musical
considerado, por essa elite, “tão menor”
como o Kuduro. Agora que as emoções parecem serenar, é tempo de pôr
racionalidade na análise do fenómeno Nagrelha. Para tal o Jornal de Angola
interpelou, por escrito, os sociólogos Elisabete Ceita Vera Cruz e Cláudio
Tomás e o crítico musical Jomo Fortunato. E do Facebook trouxemos o texto da
jornalista Maria Luísa Rogério, um dos mais brilhantes produzidos naqueles
dias, naquela rede social. A ver se nos ajudam a perceber os acontecimentos
desencadeados pela morte e o funeral do maior ícone do estilo musical Kuduro.
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ELISABETE CEITA VERA CRUZ*
“A
sua morte representa o fim de uma era”
Elisabete Ceita Vera Cruz
O que explica uma comoção
tão generalizada nos bairros da periferia pela morte do cantor Nagrelha?
Bem, as manifestações de comoção
também são organizáveis... Poderia dizer-lhe também que se terá tratado de um
espaço-tempo para alguns oportunistas, mas sobretudo que permitiu o extravasar
de frustações de milhares de jovens desesperados e sem voz. Terá sido um misto
de emoção, dor e força. E diz bem, da periferia. Mas, respondendo directamente
à pergunta, Nagrelha representa uma juventude, a da periferia, dos chamados
bairros, juventude desvalida que entretanto consegue driblar o “destino”. E se
por um lado se torna um jovem de sucesso, por outro ele não enjeita o seu
bairro, o seu passado... Para quem é que Nagrelha é um ícone? Pensar-se-ia que
seriam milhares, mas parece serem milhões os jovens fãs de Nagrelha, sobretudo
os que trabalham no sector informal, para aqueles que são considerados marginais
por usarem estupefacientes, para aqueles que vivem à margem da lei. Mas também
para os do espaço urbano porque, afinal, “não é só no bairro”, como cantam
Yannick e Nagrelha. E, de repente, o Nagrelha torna-se um “case study” que faz
com que se pergunte como é que um “ninguém” – pergunta feita por aqueles que
desconhecem a Angola real – consegue fazer com que dele se faça um “case
study”? Quer dizer que o fenómeno Nagrelha estava aí, conhecido por muitos, e
penso também que a morte de Nagrelha representa, também, o fim de um ciclo, de
uma era em Angola – na verdade é o próprio Nagrelha quem diz que “não existe
depois de mim”. Porquê o fim de um ciclo, de uma era? O que é que isso
significa? Para além de outras possíveis leituras, destacaria o fim do ciclo da
indiferença, da cultura vista somente como entretenimento e pouco ou nada como
conhecimento, e a emergência de um novo olhar e abordagem para com as pessoas
que se encontram em situação de vulnerabilidade, para com a pobreza... O facto de Nagrelha ter sido o
único que, sem pejo, terá defendido o ex-presidente José Eduardo dos Santos (a
entrevista que acabou por não acontecer porque começou e terminou com Nagrelha
a perguntar ao entrevistador o que poderia ele dizer sobre JES, é elucidativa e
por isso muito interessante), porventura pelo que este último lhe terá
agraciado, uma mensagem do género “não cuspas no prato em que comeste”, fará
dele um indivíduo honrado, com princípios, com valores, independentemente dos
juízos que se possa fazer da governação de José Eduardo dos Santos. Sem
esquecer, é claro, a generosidade e a solidariedade que dizem ter sido uma das
suas grandes marcas.
O Kuduro às tantas vai
muito além de um estilo musical? O kuduro acaba por expressar as frustrações e
os sentimentos mais profundos dos grupos sociais dos bairros periféricos?
Sei que existem artigos, ensaios,
trabalhos sobre o kuduro - estou desejosa de ler todos... Importa saber e
compreender não somente quando surge, e isto sabemos, mas sobretudo a sua
evolução e da sociedade angolana. Mais uma vez a arte a mapear a nossa
sociedade, desta vez, a música, mas poderia ser a literatura, as artes cénicas,
enfim...
Diria que mais do que um género
musical ou uma dança, o kuduro é um estilo e um modo de vida. E uma forma de protesto.
Terá começado como dança e música, mas rapidamente foi apropriado e
metamorfoseando-se para ser o que é hoje. Porque o kuduro é também, hoje,
sinónimo de passe para a ansiada mobilidade social, para a inclusão. O/as
kuduristas para além do dinheiro que ganham e, como consequência, verem
melhoradas as suas vidas, vêem mudar o seu status social, passam a ter
visibilidade, a ser respeitados, alguns passam a ter e a ser uma janela aberta
para o mundo... Hoje temos kuduristas
licenciados ou na universidade, o que revela bem a evolução do género musical e
as mudanças em Angola, nomeadamente em Luanda.
Nagrelha pode ser
considerado um herói?
Um herói acidental. Diria antes que
Nagrelha personifica o anti-herói. Podemos encontrá-los, os anti-heróis, em
todas as geografias, e não são tão poucos assim. E o que é ou quem é o
anti-herói? Tendo como referência o Nagrelha, é o indivíduo com uma infância –
adolescência e juventude - difícil, complicada, com pouca escolaridade, que
passou pela prisão, terá consumido droga, terá sido o que alguns chamarão
arruaceiro, mas que deu a volta à sua vida e se tornou um ícone. Não sendo o
melhor cantor nem dançarino, com um passado conturbado, como é que se torna um
ícone? Pelas razões enunciadas e porque o anti-herói não é aquele que congrega
opiniões positivas sobre ele; bem pelo contrário, é precisamente por a opinião
que se tem dele não ser unânime, por ser imperfeito, pelos seus excessos, com
alguns comportamentos que poderão ser condenáveis, causar alguma repulsa, mas
com outros admiráveis como a humildade, o
facto de quebrar estereótipos -
imagens do Nagrelha com o filho nas costas, a limpar o chão com todo o à
vontade - fazem com que inconsciente e rapidamente passe de vilão a herói.
Aqueles que, como ele, vivem ou viveram situações adversas, se encontram no
limbo, acabam por vê-lo e tê-lo como uma referência, como líder. Um jovem
vendedor de sonhos, de pequena estatura, de aspecto frágil (fazendo jus ao
adágio “os homens não se medem aos palmos”), mas que se apresenta carismático,
sem medo de se mostrar, de ser quem é, de cair no ridículo (e não cai!)... E
assim nascem os mitos, com a carga de controvérsia e romantismo que lhes estão
associados. E as sociedades, os jovens, precisam de se ver representados,
precisam de ídolos. E o facto de ter morrido cedo, com 36 anos, é um elemento
mais que não pode ser descurado.
O que se pode ou deve
fazer para que fenómenos como Nagrelha deixem de ser considerados periféricos
ou marginais, independentemente de onde tenham surgido, para serem assimilados
ou integrados como parte legítima do todo nacional?
A emergência de sub-culturas, nas
suas diferentes roupagens, não é sinónimo de exclusão; poderá, sim, ser
sinónimo de criatividade. E o importante é saber reconhecer e abrir espaço a
essa criatividade, desde logo com a construção de escolas regulares, mas também
de artes, para todos.
A arte, as culturas, têm muito de
marginal; de tal forma que se fala da existência de culturas marginais. E têm
poder, o poder de o deixarem de ser. O kuduro enquadra-se no fenómeno geral da street dance, break dance e afins e o Tony Amado, considerado pai deste género,
dá o mote, segue-se-lhe o Sebem com nova roupagem (entre tantos outros) e o
Nagrelha, Naná, Estado-Maior e outros tantos nomes que teve e com que se terá
auto-denominado, que faz a ruptura com os citados pioneiros. Ele diz, numa
entrevista, que antes dele - Tony Amado e o Sebem - não havia narrativa, não
havia letra, o mesmo que dizer que não havia kuduro. Logo, o kuduro, tal como o
conhecemos hoje, terá começado com ele... O fenómeno Nagrelha é criado pelo
próprio e, claro, pelo seu grupo, Os Lambas - atente-se no simbólico nome
“Estado-Maior do Kuduro”, na indumentária do Nagrelha que nos remete para o
papel e lugar das forças armadas, dos generais em Angola -, pela comunidade do
Sambizanga, por Luanda, e pelos fãs que se foram multiplicando um pouco por
todo o país.
Durante muito tempo disse-se que o
kuduro cedo desapareceria, mas ele está bem presente... vai-se reinventado,
novas batidas, sonoridades, novos intérpretes, e o kuduro continua. Hoje, pode
até ser considerada música de intervenção. A sua importância está aí e o
sistema que o diga, porque foram destinados lotes de construção para os
kuduristas, o funeral do Nagrelha penso ter ficado a expensas do Estado...
Claro que se tratará do reconhecimento artístico, cultural, social e
sociológico do artista, mas não se pode ignorar os possíveis aproveitamentos
políticos, muito frequentes nestes casos.
Até quando o kuduro se manterá, não
sei, mas muito provavelmente enquanto se for reinventado (parece que os “bifes”
estão a cair em desuso), continuaremos a ter kuduro, que entretanto já atravessa
gerações.
E como explicar o
sucedido no funeral do Nagrelha?
A “Nação Kuduro” esteve em peso. Foi
a periferia, a força dos bairros, do gueto, dos desempregados, dos
trabalhadores informais, dos gangues, dos jovens, a ocuparem o espaço urbano
(sem esquecer os curiosos). E que força! O poder do kuduro, da periferia e da
juventude desvalida, como já referi. Sem grandes lucubrações, diria que
Nagrelha morreu (o seu funeral) como viveu, ou terá sido parte da sua vida:
entre o caos e a ordem.
*PhD em Sociologia.
Especialista em estudos sobre a juventude em Angola
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CLÁUDIO TOMÁS*
“Uma forma de vida ou um
amplo
movimento popular
artístico”
Cláudio Tomás
“Penso que a compreensão
sobre o que está a ocorrer com a comoção generalizada pela morte do Nagrelha
deve passar pela relação de vários elementos. O primeiro deles é, sem sombra de
duvidas, o sentimento de comoção pela morte prematura. Ninguém está preparado
para ver partir pessoas tão jovens. Principalmente quando estas possuem
recursos suficientes para acederem a cuidados de saúde adequados.
O segundo deles, e aqui
começo a introduzir as minhas hipóteses, é o de Nagrelha ser aquilo que a
Sociologia designa como um carismático. Encontramos na pessoa a mística própria
de alguém que apela ao sentido de identificação de uma imensa multidão de
jovens espalhados pelo País. Muito se deve, certamente, ao que ele
sugere como ideal de realização social: um jovem nascido pobre, com poucas
oportunidades, sem possibilidades de frequentar a escola, com uma experiência
de vida marcada pela exclusão social, violência e criminalidade, e mesmo assim,
e apesar disso, conseguir atingir os palcos da fama mundial através da música.
E há ainda outro aspecto
importante a considerar (ainda como hipótese) na personagem carismática do
Nagrelha: mesmo depois da consagração, da fama, e de tudo o que isso poderia
trazer-lhe como benefícios, nunca o vimos em viagens a Miami, Portugal, ou a
Dubai, a exibir sinais de riqueza. Nagrelha continuou igual a si mesmo. Não se
deixou corromper pelo dinheiro e se transfigurar pela fama. Continuou próximo
do seus, continuou a ser do Sambizanga, o Naná. E essa ideia de pureza e de
fidelidade aos seus e às suas origens é uma marca distintiva que apela à
simpatia, ao apreço e à identificação de muitos.
E, por fim, um último
elemento: o Kuduro. A morte do Nagrelha é aquele evento que nos vem mostrar que
o Kuduro não é apenas um estilo musical. De algum tempo a esta parte, o Kuduro
vem sendo qualquer coisa que se pode situar entre uma forma de vida, um amplo
movimento popular artístico, e um estado de espírito. A morte do Nagrelha, para
além de ser o momento de expressão da comoção pelos seus fãs, é também um
momento de celebração da afirmação do Kuduro como o produto final de todos
aqueles elementos. O Kuduro é hoje representado como um veículo de promoção
social por uma imensidão de jovens que vive na marginalidade, exclusão, no
desemprego, e sem esperanças de realização pessoal através dos meios
socialmente convencionais. Estes jovens têm todo interesse em que o Kuduro, com
todos os seus defeitos, se afirme e seja reconhecido como veículo alternativo
de realização social. Portanto, o que vimos no funeral do Nagrelha pode também
ter sido, por um lado, uma vigorosa declaração de intenções de afirmação do
Kuduro como a pátria dos excluídos e, por outro, pode também ter sido aquilo
que os americanos designariam por “backlash”, traduzindo, a “desforra”. Ou seja,
e no final das contas, o Kuduro como um sentimento de “desforra” conduzido por
estes jovens contra uma elite política e económica que os abandonou e os deixou
entregues à sua sorte. Daí também, como movimento artístico, o Kuduro trazer
sub-repticiamente uma proposta de transgressão dos códigos sociais
convencionais. Não apenas em termos da linguagem, mas até na resignificacão dos
sentidos que se atribuem aos lugares de exclusão e de marginalização. É aqui
que nos poderá também dizer alguma coisas sobre a sinalização da
existência cada vez mais notória do drama actual do País: a separação entre a
‘elite’ e o ‘povo’”.
*Ph.D
em Sociologia. Professor Auxiliar do Departamento de Sociologia da Faculdade de Ciências Sociais da
Universidade Agostinho Neto
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JOMO FORTUNATO *
“Quem sabe surja no futuro o
Kuduro sinfónico?”
Jomo Fortunato
O
que explica o surgimento e a ascensão do kuduro?
Um aspecto a
reter: as manifestações culturais e artísticas, acompanham sempre as
transformações sociais e políticas em qualquer sociedade. Há uma tipologia musical característica do
tempo colonial e outra do pós-independência. O kuduro, tal como o conhecemos
nas suas variantes, seria impensável nos anos quarenta, data dos primórdios da
formação da Música Popular Angolana. Liceu Vieira Dias fala em meados dos anos
quarenta, no filme “Ritmo do Ngola Ritmos” do realizador António Ole, como
sendo a data da formação do “Ngola Ritmos”.
O kuduro, enquanto
género musical, é resultado do aumento exponencial da pobreza e da
desestruturação do sistema de ensino, o que resultou em arte, uma performance
artística que inclui a dança e suas coreografias acrobáticas.
O cantor e
compositor, Nagrelha, se estudasse os clássicos da literatura angolana e
portuguesa, estamos certos que produziria outra génese de textos, a menos que a
ruptura com o português europeu, fosse intencional como ocorre nos textos
literários de Luandino Vieira.
A sociologia da arte poderá explicar a ascensão do Nagrelha,
contextualizada por factores de índole geracional. Nagrelha comunica,
fundamentalmente, com os seus. Estamos em presença de um artista que dialoga
com o seu público, através de um sistema semiótico muito próprio,
consubstanciado no calão e numa visão do mundo muito própria das
periferias.
A pesquisa sobre a origem, formação e contextualização
social do Kuduro, passa pela investigação da sua pré-história, ou seja, o
conjunto de eventos anteriores à sua formação, enquanto género musical
estruturado.
No período que vai de 1982 a 1983, houve um conjunto de ocorrências no domínio
da dança, protagonizado pelos dançarinos de “break dance”, Paulo Kumba, Elvis,
João Dikson e Pataca no terraço do prédio Hitachi, Bairro Alvalade, Cine
Atlântico, campo de jogos dos Leões de Luanda, e nos ginásios das escolas, Mutu
ya Kevela, Ngola Kanini e Ngola Kiluanji.
Teve igualmente influência na configuração actual do Kuduro,
enquanto dança, o movimento da cabetula, com os “Originais da Cabelula”, Beto
Kiala e Pedruce, e o movimento da vaiola com Cifoxi e Zé Vaiola. Estamos
numa época em que os concursos de dança nas escolas eram apresentados pelo
radialistas Adão Filipe e Octávio Kapapa, da Rádio Nacional de Angola, Balduíno
Carlos, Ernesto Bartolomeu e Cláudia Marília da Televisão Pública de Angola,
sendo justo incluir na análise da pré-história, os programas, “Explosão”
e “Horizonte”, da Televisão Pública de Angola.
À época, a dança era mais importante que a música, e as primeiras
batidas de Kuduro não tinham letra, fenómeno que surgiu depois com o surgimento
do Tony Amado. Nagrelha distanciou-se da pré-história do kuduro,
criando um estilo e uma linguagem muito
próprios.
O
que estará por detrás do kuduro e que justificará a sua força entre os jovens
das periferias?
A força é
geracional de uma juventude sem rumo, crescida num contexto de corrupção e de
desvalorização dos quadros angolanos, que poderiam dar continuidade ou substituir
a fuga de cérebros na época colonial. Estamos perante uma juventude
brutalizada, distante da academia, mas que possui uma arte, à medida das
circunstâncias sociais das periferias, com todas as assimetrias adjacentes e
sobejamente conhecidas.
Por
que será que o kuduro e os kuduristas atraem tanta hostilidade, ao mesmo tempo
que (o kuduro), paradoxalmente, atrai muita gente às rodas de dança nas festas?
A hostilidade
advém dos sectores que fazem uma leitura aparente, ou melhor, superficial
e impressionista das origens sociais e
estéticas do kuduro. As propostas do
kuduro, só muito dificilmente são absorvidas pela visão do belo da velha
geração.
Os gostos são
subjectivos mas importa lembrar que a música ocorre quando há harmonia, ritmo e
melodia. No entanto, há músicas mais harmoniosas, melodiosas e ritmadas que
outras. O kuduro investe, tão-somente,
no ritmo. Importa reter, sem desvalorizar, os esquemas rimáticos e a
dimensão satírica dos textos do kuduro.
É o
kuduro o género musical dos sofredores?
Repare
que o Nagrelha comunica com o seu público, ele não dialoga com as elites.
Pergunta se é uma música dos sofredores? Talvez… o certo é que é uma vertente
musical que se popularizou nas camadas sociais mais desfavorecidas, embora a
sua origem do ponto de vista da estratificação social, seja híbrida. Neste capítulo, importa estudar com a acuidade recomendável a
pré-história do kuduro.
Além
de estilo musical e cultural o kuduro é também um fenómeno político?
Enquanto fenómeno
de massas, o kuduro é matéria-prima apetecível a qualquer político.
Neste aspecto, interessa analisar os textos satíricos do kuduro. Um exemplo,
dentre outros não menores, é o tema “Arroz com feijão” do “Elenco da Paz”,
reparemos na letra: Só mexeram no meu
prato / só picaram no meu prato / afinal é só feijão / pensaram que tinha carne
/ o bocado que era meu / afinal é só feijão / Meu prato do dia a dia (...), um
tema interessante para uma reflexão profunda sobre a fome e a miséria.
O
que é que Nagrelha tinha de especial e que justifica tamanha legião de
seguidores e/ou admiradores?
Nagrelha é um fenómeno explosivo da cultura popular não
académica. Na verdade, sempre valorizei a cultura de emanação popular, distante
dos circuitos formais da academia, aliás como parte substancial das origens da
Música Popular Angolana, quer a nível do canto como ao nível instrumental.
O carisma era
resultado de uma conjugação de vários factores: a linguagem e a mística da
comunicação do Nagrelha com o seu público, a propensão para a liderança, a
assimilação de comportamentos pouco recomendáveis e a integração dos seus
seguidores nas franjas marginais do Sambizanga e da periferia em geral.
Acredita
que vai surgir um “novo” nagrelha?
Na história da arte e das
sociedades, existem ocorrências previsíveis e outras não. O surgimento de uma
personalidade carismática, igual ao Nagrelha, é naturalmente impossível, por
uma simples razão, não existem pessoas repetíveis.
Pode ser
que surja um ícone com as mesmas características, caso permaneçam as causas que
estão na origem da formação do kuduro, ou seja,
as assimetrias sociais e a ausência de um sistema de ensino
estruturado. Contudo, o kuduro, enquanto
género, pode evoluir para outras vertentes.
Pode ser que surja no futuro, o kuduro sinfónico, quem sabe?
Sempre
pensando na evolução e na refundação do género, seria interessante integrar a
história do kuduro nos estudos culturais universitários, tal como já existe no
Brasil com os estudos da Adriana Fancina e Hermano Vianna, em relação ao funk
brasileiro, um género vizinho ao kuduro.
Julgamos ser possível estabelecer nexos periodológicos, sem
preconceitos, e elevar à categoria de ensino superior, conteúdos sobre o
kuduro, género musical contemporâneo de expressão internacional.
Os estudiosos da contemporaneidade musical angolana estão em
condições de reunir material disperso, incluindo depoimentos de artistas e
protagonistas de reconhecido mérito, sobre a história e discografia do kuduro,
visando a sua sistematização e integração no âmbito dos Estudos Culturais
Angolanos, de nível universitário.
A proposta de sistematização da história do Kuduro, que
pressupõe um debate alargado entre investigadores e artistas, poderá analisar e
dar a conhecer o estado actual deste género musical com o objectivo de
encontrar consensos possíveis para a sua estabilidade periodológica, conhecer
as diferentes fases do Kuduro no feminino, reflectir sobre a génese das letras
das canções, aconselhar a reutilização das conquistas de Angola, ao nível da
educação, saúde, construção de infra-estruturas, educação cívica, e preservação
dos bens públicos nas composições musicais, numa perspectiva de associar a arte
à educação patriótica.
Atenção: pelas características estéticas, rítmico peculiar e
propósitos textuais, a análise comparativa do Kuduro deve ser
empreendida no interior deste género musical, pelo que se nos afigura descabido
aproximar o kuduro às correntes musicais mais preocupadas com arranjos e
construções elaboradas, do ponto de vista harmónico e melódico. É urgente
acabar com os preconceitos da investigação universitária no domínio da “Cultura
popular”, na sua relação com as indústrias culturais.
*Investigador
especializado em música popular urbana angolana
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MARIA LUÍSA
ROGÉRIO*
“A voz que emergiu
dos ghetos”
Luísa Rogério
Compreendo que
Nagrelha signifique pouco ou nada para algumas pessoas. Eu própria, talvez
influenciada por um pseudo-elitismo barroco como diria o Raimundo Salvador,
também tinha um certo olhar preconceituoso sobre o Kuduro até ao dia em que
entrevistei Euclides da Lomba, salvo erro no ano de 2000.
A minha ignorância
não me impediu de perceber que tinha duas opções: gostar ou ignorar!
Paradoxalmente, gostava de dar uns valentes toques na roda, lá onde a
intelectualidade se esvai, as estéticas etc. e tal perdem rede. Kuduro não é o
tipo de música que eu coloque para ouvir em casa ou no carro, mas é o tipo de
música que não me deixa indiferente.
Quando danço ao som
do Kuduro, esqueço as malambas, as dores do corpo e da alma. Kuduro, como
ensinou Da Lomba naquela entrevista, é mais do que ritmo dançante para o qual
correntes elitistas olham com preconceito, quase com desdém. Kuduro é um
fenómeno social. Por detrás da forte batida, das rimas irreverentes e muitas
vezes ofensivas, do “baixo calão” e dos movimentos insinuantes, encontramos uma
cultura popular. Não a cultura das definições acadêmicas nem a que nos coloca
bem na fotografia do politicamente correcto. Falo da cultura que manifesta
razões, formas de ser e de estar na vida.
Nagrelha é a voz
que emergiu dos ghetos, rompendo a “fronteira do asfalto”, como tão bem
descreveu Luandino Vieira. Obviamente, isso incomoda! Um “mussequeiro” sem
maneiras a invadir-nos a casa adentro com o seu “pretuguês”? Onde é que já se
viu “liambeiros delinquentes” do musseque armados em gente só porque já
aparecem na televisão? Pois, é esse mesmo! Nagrelha é a voz do povo.
Se quiserem
entender o que isso significa, nem que seja para criticarem com mais
fundamentos, visitem o Sambizanga, o Rangel, o Cazenga e todas periferias.
Depois, podem estender o caso de estudo ao asfalto. Talvez descubram a dimensão
do “Comboio”. Ninguém é obrigado a gostar de Kuduro. Ou do Nagrelha. Mantenham-se
à vontade na redoma do etnocentrismo cultural euro-ocidental. Isso não me
incomoda, cada um com a sua identidade. Exercitar a liberdade de expressão é um
direito. Respeitar a dor alheia é sinal de civilidade. Isso também é
democracia!
Descansa em paz
Nagrelha”
*Jornalista