terça-feira, 7 de setembro de 2010

Pessoas que vivem com o HIV em Angola (2): "FICAM ADMIRADOS COM A MINHA ALEGRIA DE VIVER"

Ana Maria Gastão, que vive com o HIV, é uma mulher que encara as suas adversidades de frente, está sempre pronta a encontrar formas de as resolver ou contornar. “Desde que comecei a trabalhar na Acção Humana (AH) a minha vida mudou, melhorou muito. Passei a ir às consultas médicas e aos poucos fui recuperando a minha saúde”.

É ela própria quem caracteriza a sua vida antes de trabalhar para a AH: “a minha vida era um inferno. Ficava muito doente e não conseguia tomar conta dos meus filhos. Eles nem sequer conseguiam ir à escola”.
Na altura ela vivia, com os filhos, no bairro Praia do Bispo, em Luanda, na casa de um tio. “Eu não trabalhava, não fazia nada”, revela. “Os meus irmãos vivem na Lunda-Norte, na cidade do Dundo. Vim a Luanda porque a minha filha era muito doentinha. Mas depois eu própria comecei a adoecer. Já não regressei à Lunda-Norte. Estou em Luanda há seis anos”.
Ela encontrou na AH o amparo que necessitava para estabilizar e mesmo dar um novo rumo à sua vida. Para além do salário, recebe apoio em medicamentos para si e os filhos.
Sem subvalorizar o trabalho e o salário que recebe, Ana Gastão acredita que o que mais a compensa na AH é pôr a sua experiência de vida ao serviço das pessoas que vivem com o HIV e enfrentam, sem forças, o estigma, a discriminação e o abandono da sociedade, seja no local de trabalho, na vizinhança e, mais doloroso ainda, na própria família.
“Tento amparar e acompanhar pessoas que vivem com o HIV. Vou com elas aos hospitais, às maternidades”…
Ana Gastão conta com a sua experiência pessoal, alicerçada em métodos que ganhou ao longo desses anos todos, nas várias acções de formação em que teve o privilégio de participar sob os auspícios da AH. O seu método de trabalho baseia-se no pragmatismo. “O meu método de trabalho consiste em ir ao hospital e aproximar-me, conversando com as pessoas que, visivelmente, estão muito afectadas e abaladas pela doença. Quando ficam a saber do seu estado de infecção pelo HIV muitas pessoas põem-se a chorar, a gritar, a fazer escândalo. Têm dificuldade de encarar a sua nova realidade. Pergunto o que têm e acabo por dizer que eu própria vivo com o HIV. Assim cria-se uma maior confiança e abertura. Estabelece-se uma maior comunhão de interesses”.
Ana Gastão tem uma agenda, onde anota os compromissos com os seus assistidos. “Se tiver que levar alguém aos hospital, vou muito cedo à casa dela, apanhamos juntos o táxi. Nos casos em que o paciente não está em condições de andar pelos próprios pés, requisito uma viatura da AH”.
Ana Gastão acompanha todo o processo de consulta, a começar pelo contacto com as catalogadoras, na recepção do hospital. Os doentes mais graves fazem as consultas no Hospital Esperança.

Laços de amizade

Uma das coisas que mais deixam Ana Gastão gratificada e a fazem continuar o seu trabalho de activismo em prol dos portadores de HIV e doentes de Sida são os laços que se estabelecem com os assistidos. Mais do que solidariedade, são laços de amizade e amor. “Já tive vários casos que me marcaram muito. As pessoas quando recebem a nossa ajuda ficam bastante gratas. É uma gratidão pura, que vem do fundo do coração. É que nós surgimos na vida delas no momento em que elas mais precisam de ajuda, no momento em que elas estão mais debilitadas no corpo e na mente. Quando se encontram connosco, na rua, agradecem e apontam-nos a outras pessoas, dizendo que fomos nós que lhes salvámos”.
Actualmente Ana Gastão faz o acompanhamento de seis crianças e cinco adultos. “No caso das crianças, se a mãe estiver em crise, eu própria levo-a à consulta. Ou se a mãe estiver a sentir-se cansada, encorajo-a, dou-lhe forças para não se deixar abater. As crianças chamam-me tia ou mesmo mamã”.
Ana Maria Gastão considera o estigma como um grande problema, ainda por superar. “Há famílias que abandonam os seus doentes de Sida ou então, pura e simplesmente, não aceitam encarar a realidade da doença. É complicado”, desabafa.
Ana Maria Gastão é uma mulher expedita, expansiva, simpática, à vontade. Essa maneira de ser a ajudou a encarar e superar a fase menos boa da sua vida. “O trabalho do activismo deu-me uma nova inspiração para viver. Às vezes, quando dizemos aos nossos assistidos que também vivemos com o HIV eles não acreditam, ficam admirados com a nossa alegria de viver”.
E quando as pessoas lhe perguntam aonde, apesar da sua situação, vai buscar forças para continuar a encarar a vida pelo prisma das cores mais alegres, ela faz uso das seguintes palavras: “Digo a todas as pessoas portadoras do HIV que Deus é muito maravilhoso e ama-nos, e que é só tomar os medicamentos, tenho fé que Deus um dia vai mostrar uma cura para nós”.
Ela é crente, é religiosa praticante, mas do mesmo modo que acredita na força da palavra de Deus também acredita no poder da ciência, dos medicamentos. “Sou crente e rezo para o Bom Deus. Sou portadora e por enquanto não tenho necessidade de usar medicamentos. Usei-os na altura em que fiz o corte da transmissão vertical, quando estava grávida da minha filha. O meu CD4 está óptimo, não tenho nenhuma doença oportunista que me meta cansada. Sinto-me maravilhosa com o apoio e as informações que recebi. Sinto-me bem preparada para o trabalho que faço. Viva a saúde!”.

segunda-feira, 6 de setembro de 2010

Pessoas que vivem com o HIV em Angola (1): "CONTINUO A ALIMENTAR SONHOS"

Educadora de infância, Marcelina Machado, 39 anos, separada, é portadora do HIV, tal como os dois filhos. Já chegou a estar doente, mas recuperou graças ao tratamento médico e ao acesso aos medicamentos, facilitado pela Acção Humana, que também lhe proporcionou ajuda psicológica. Ela usa a sua experiência pessoal ajudando outras pessoas a encarar e a aceitar o seu estado de seropositividade. E a procurar ajuda médica. Eis aqui o seu depoimento, na primeira pessoa.

“Soube do meu estado de seropositividade há quatro anos. Então vivia com o meu marido e um filho, que tinha três anos. A partir de certo momento o meu filho andava sempre doente. Como eu estava grávida, não o podia levar sempre às consultas. Era o meu marido que o fazia. Um dia o médico pediu-lhe para fazer o teste do HIV, juntamente com a criança, e ele chegou em casa todo embirrado. Até que uma vez, por uma simples coisa, chateou-se todo, pegou as suas coisas e foi-se embora de casa. Até hoje não sei se chegou a fazer ou não o teste.
Na altura vivia no Kassequel, na zona do Catinton. Assim que o meu marido me abandonou regressei à casa da minha mãe. Mas os meus filhos continuavam a adoecer muito.
Eu trabalhava. Sempre trabalhei. Sou educadora num lar de infância. No meu serviço tem médicos e enfermeiros. Passei a levar para lá o meu filho, para ser consultado. Como ele nunca melhorava, apesar da medicação, um dia o médico mandou que ele fizesse o teste do HIV. Deu positivo. Uma das enfermeiras contou às minhas colegas do serviço que o menino tinha HIV e que eu, como mãe, por ignorância, lhe estava a fazer sofrer. Alguém lá do serviço foi contar à minha família, alegando que o menino tinha Sida e eu já sabia. Toda a minha família veio contra mim. Deram-me 48 horas para abandonar a casa, porque senão, disseram-me, acabaria por contaminar outras pessoas. Por isso não poderia continuar no meio deles. Quando digo “a minha família” refiro-me à minha mãe e aos meus irmãos.
Tive de arrendar uma casa. A minha própria saúde também se foi debilitando. Eu estava muito em baixo, não sabia que rumo dar à minha vida. Foi nessa altura que, graças à Deus, através de uma pessoa amiga, descobri a Acção Humana. Se até hoje eu e os meus dois filhos estamos de pé é graças à Acção Humana, que nos recebeu e nos tem apoiado bastante. Já recebi ajuda em meios financeiros, bens alimentares e até em termos de renda de casa. Eu e os meus filhos temos acesso às consultas e aos medicamentos contra o HIV. Graças a Deus estamos bem.
A minha colaboração com a Acção Humana consiste em procurar pessoas com HIV e que não querem aceitar a sua condição de seropositividade. Converso com essas pessoas, aconselho-as a irem ao hospital, acompanho-as às consultas. Às grávidas aconselho a fazerem o teste, para que não lhes aconteça o que me aconteceu e possam beneficiar, se forem seropositivas, do corte da transmissão vertical, livrando assim os bebés da contaminação pelo HIV.
A minha vida, desde que colaboro com a Acção Humana, deu uma volta completa. Estou mais serena. Acredito na vida. Cheguei à conclusão que o HIV não é um bicho de sete cabeças, só é preciso saber lidar com ele. É preciso fazer os testes, a medicação, alimentar-se bem, levar uma vida sem vícios, nada de perder noites.
Aos que não são seropositivos aconselho a não ignorarem as pessoas que estão com o HIV. Os que hoje são seropositivos nunca contaram que um dia estariam nessa situação. Usem preservativos nas relações sexuais, seja com quem for. Não confiem na aparência saudável das pessoas.
A minha vida continua. E alimento sonhos. O grande sonho da minha vida é conseguir um lar e ver os meus filhos formados. É o meu grande sonho.”

quarta-feira, 18 de agosto de 2010

Ruy Duarte de Carvalho in requiem



ISAQUIEL CORI

A morte do poeta, ensaísta, cineasta e antropólogo Ruy Duarte de Carvalho é uma perda enorme para a cultura angolana. Pessoalmente não privei com ele, mas sempre procurei ler tudo quanto ele publicava. Era um cultor da excelência na escrita. A sua prosa, bastante elegante, rebuscada, carregada de circunlóquios, até mesmo um tanto barroca, fascinou-me desde o princípio, o que me permitiu conhecer a profundidade do seu pensamento.
Alguns dos seus ensaios encerram verdades, descobertas, que deviam nortear até mesmo o poder político. Lembro-me, por exemplo, de um texto seu em que se refere ao modo como algumas decisões de carácter político interferem e até mesmo desestruturam a organização da vida das comunidades rurais. Ele referia-se, nomeadamente, aos males que a importação maciça de fuba de milho podem causar a uma comunidade rural, onde o acto de pilar o milho é uma das principais componentes do quotidiano feminino. O acto de pilar o milho é um acto de sociabilidade carregado de importância cultural, porque as mulheres aproveitam aquele momento para trocarem experiências de vida e até para cantar. As mais novas são iniciadas nos meandros da vida feminina. Elas, aí, não pilam apenas o milho, também dão sentido à sua própria vida.
Essa é uma visão de raiz antropológica, mas também poética: humanista.
A perspectiva de um poder político centralizado, alheio às verdadeiras necessidades locais, é uma constante na obra ensaística de Ruy Duarte de Carvalho, e que lhe terá, certamente, rendido alguns, e poderosos, desafectos.
Ruy Duarte de Carvalho foi igualmente grande no cinema e na poesia.
Angola, este país que vive há apenas oito anos em paz, está tão carregada de traumas, vibra numa tensão tão periclitante entre passado e futuro, tem tantos assuntos mal resolvidos, ou por resolver, que ainda não tem nem tempo, nem discernimento, para prestar a devida honra e reconhecimento aos filhos que por ela se bateram, de peito aberto, com as armas da ciência, da poesia, da arte, do conhecimento.
A seu tempo, Ruy Duarte de Carvalho, terá a homenagem merecida.

quarta-feira, 7 de julho de 2010

Por que recomendo o “Último recuo”





António Quino *

Por que razão julgo que seria interessante e oportuno ler “O último recuo”, de Isaquiel Cori?
Para início de conversa, permitam-me que me apoie em algumas fundamentações teóricas. Prometo não cansar.
Na sua “Teoria do romance”, Donaldo Schuler afirma que “Podemos teorizar o romance de muitas maneiras. (...) Podemos investigar as relações com o contexto. Podemos inquerir o trabalho autorial. Podemos investigar a experiência da leitura. Podemos nos colocar na posição do leitor”.
Tal como Schuler sugere, coloco-me na posição do leitor. E é como leitor que vos falo, fazendo uma, dentre milhares de leituras possíveis.
Uma sociedade, um problema, um livro, um objecto, uma realidade, um espaço físico ou mesmo uma personagem podem ser vistos de diferentes pontos de vista, resultando em imagens diferentemente deformadas.
Por exemplo, a descrição que encontramos no livro , na sua página 17, pode ser vista como imagem com características globais, próprias de situação que o contexto padroniza:
“De olhares longínquos e sem brilho, vestiam ridículas roupas de fardo e pareciam objectos de exposição de um exótico museu vivo, a denunciarem, de modo patético, a violência e a estupidez de uma guerra que lhes invadira as terras, penetrara-lhes na alma e esvaziara-lhes o olhar e o futuro”.
Ou ainda (p.16):
“... apesar de tudo, antes de dormir, de toda a incerteza que o atormentava, ainda estava vivo”.
São exemplos de imagens globais que podem ser projectadas e deformadas em função dos pontos de vista dos leitores.
No caso concreto das imagens locais, elas apresentam-nos características mais suaves e reais às nossas experiências e vivências, e a quantidade de informações disponíveis oferecem-nos condições para mais facilmente nos identificarmos com elas. Aliás, a existência desses caracteres comuns pode ajudar a definir a estrutura literária de uma determinada obra, não fosse esta produção artística produto da experiência ou imaginário do autor.
Indo ao livro, e apoiando-nos na coincidência entre Calú e Luanda, o leitor pode encontrar imagens locais. Calú, terra natal da personagem principal, é o espaço físico onde se centralizam as acções principais que corporizam a narrativa de “O último recuo”, e parece uma cópia de Luanda, terra natal do autor do livro.
Começando pelos problemas na distribuição de energia eléctrica , à sucessão de becos e contra-becos, chão abaixo do nível do quintal , casas em cima da estrada , absentismo quase generalizado em dias posteriores às grandes ressacas , a descrença nas instituições, que se mistura com a arrogância e o individualismo velados no ego de muitos cidadãos das grandes cidades, como o descrito na página 16 do livro:
“Sou o quê? (...) Cuidado que eu posso te dar um tiro aqui mesmo”.
Outro elemento em comum encontramo-lo nas páginas do livro, onde se percebe a forma como a guerra fez milagres e miseráveis.
Há uma personagem, Matuba Grande, que o narrador garante que se não fosse a guerra, certamente continuaria como um camponês cujos horizontes dificilmente ultrapassariam os marcos da região natal e arredores .
Essas palavras do narrador são confirmadas pela própria personagem na página 44:
“- (...) eu considero a guerra como uma coisa querida. A guerra tirou-me do meu destino de camponês. Deu-me poder”.
Mas há aqueles que enfrentaram a guerra. “Não fugiram, apegavam-se às suas casas, às suas terras como o único bem precioso que possuíam, com o risco da própria vida. Gente honesta, inocente, apanhada no turbilhão de uma guerra cujas causas verdadeiras desconheciam” .
Entre Calú e Luanda há ainda em comum o facto de haver em muitos jovens a descrença no amanhã e o cego mergulho no mundo do álcool. E o diálogo entre jovens presente na página 20 é bem prova disso:
“- A birra está fixe, esta é que é vida! Gostava de morrer com uma bem fresca na mão...”
Vezes há em que, em tom descontraído, a morte se torna o centro das conversas, anulando a vida:
“- Sabem qual é a maneira mais bala de baicar? É a comer a garina do tipo mais achado da banda...”
“- P’ra mim é melhor morrer com um tiro na cabeça. É tudo rápido.”
Vemos também, em Calú (p. 20), jovens abordando a problemática da velhice versus feitiço, uma discussão patente em Luanda e que representa um cancro para a sociedade luandense em particular e dos cidadãos da terceira idade em geral:
“- (...) Vou mas é morrer bem velho, não me importa se vão me chamar de feiticeiro”.
Este diálogo termina num: - “Nós somos imortais!”, reflexo da inconsequência de muitos jovens em Luanda, arriscando a vida por um vintém.
Igualmente, em Calú, o autor projecta uma realidade ficcionada, em que as relações sociais de classe se estabelecem num restrito núcleo, em que há os cidadãos indesejáveis, vistos como uma espécie de bacilos de cock pela elite, elemento extremamente nocivo e contagioso, que devia ser evitado a todo custo.
Na página 98 do livro há o relato de um camponês projectado ao generalato que evita João Segura, seu ex-companheiro de armas
“- Demasiadas pessoas já me viram a conversar contigo. E isto não é bom para mim”.
Mas a razão dessa sociedade ficcionada e fraccionada pode esbarrar numa solução, pois, como descreve nas páginas 106 e 107, a sorte pode vir vestida de quotidiano: mulher velha encolhida sob o peso da banheira de pão na cabeça, moça esticada em cima duns sapatos altos, o homem encerrado num fato pesado, mulher cantarolando cantos religiosos, e um Manecas Ladeira, mutilado, a oferecer emprego ao seu ex-comandante.

Nessa questão das semelhanças, há um diálogo, na página 68, que se afigura como um interessante recado ao leitor, um experimentado homem de cabelos brancos aconselha um jovem cujo destino se afigura incerto:
“- Coragem e paciência. E não tente compreender tudo o que te acontece. Deixe as coisas acontecerem.”
E o que tudo isso tem a ver a minha recomendação em ler a obra? Já aí chegaremos.
“O último recuo” narra a história de João Segura, um despromovido Tenente-coronel do exército, de 42 anos de idade, formado numa Academia Militar da ex-URRS, e caído em desgraça fruto duma cabala montada contra si e ordenada por uma invisível ordem superior.
A nossa personagem principal, militar profissional treinado para combater e, eventualmente, morrer pela pátria, homem ligado à elite militar, acaba transfigurado, num ápice, em roboteiro que se apaixona por uma prostituta, a Ricarda. É, portanto, também uma história de amor, que se reparte em 16 capítulos (duas partes) espalhados em 134 páginas.
Mas retenho-me ao que o ex-comandante se tornou enquanto atravessava o deserto: um roboteiro, termo utilizado para designar aqueles cidadãos que carregam mercadorias nos e para os mercados formais e informais, armazéns, casas dos clientes e afins, nas cabeças ou em carros de mão.
O autor deixa em segundo plano o facto de a personagem ter sido oficial do exército, de ter acabado como professor, e promove não só a sua actividade laboral como fundamental para a compreensão da obra, como é nesse período em que deixa transbordar o intelectual que havia em si. Com toda a carga pejorativa que este adjectivo/substantivo (roboteiro) transporta, não serão, em essência, roboteiros muitos intelectuais? E o inverso?
Mas, há aqui um conjunto de coincidências que não podem passar despercebidas. Comecemos pelas que existem entre o autor e a personagem principal. Da mesma faixa etária, ambos ex-militares, ambos amantes da leitura, ambos naturais de cidades que só diferem no nome.
Donaldo Schuler, em “Teoria do romance”, refere que “a arte romanesca se distancia da realidade para ver melhor, mesmo que o afastamento abra abismos” .
Essa relação binária entre autor e personagem permite-me especular que os monólogos do narrador ao longo da obra são, no fundo, passeios ao íntimo refúgio do autor:
“Como a vida seria boa e fácil se fosse apenas sono e sonho? A realidade seria virtual e aleatória”.
“É uma pena que a grande maioria dos cidadãos não saiba ler ou, mesmo sabendo, não tenha hábitos de leitura. Não haja dúvida que a literatura é uma das melhores formas de tomada de consciência de uma Nação”.
Aliás, Catherine Millot, em entrevista conduzida por Betty Milan e reproduzida no livro “A força da palavra”, refere que “o escritor vive uma determinada experiência que poderia ser qualificada de mística, se ela não acontecesse num contexto exterior ao da religião, a experiência de algo enigmático, que o sujeito procura decifrar escrevendo”.
Lévi Strauss acaba sendo mais profundo na sua análise, ao considerar que o autor escreve para preencher o vazio de um desejo de satisfação espiritual, “tanto que a maioria deles ganha dinheiro com outra profissão. A arte, em geral, tem o sentido simbólico do prazer, e isso é individual, por isso o apelo da arte é para a solidão, para o individualismo” .
Gostaria de lembrar que mesmo entre a incomum imagem local deformada pode sempre haver pontos de convergência. Ou seja, os vários leitores deste livro, trazendo experiências diferenciadas, podem encontrar elos comuns, isso porque o conhecimento adquirido individualmente, mas numa comunidade, se torna património colectivo, memória e consciência colectiva.
No caso concreto da literatura, há um elemento denominado invariante, uma modalidade essencial através da qual a literatura participa da universalidade e o meio pelo qual ela reveste todos seus elementos comuns de uma significação universal.
Quando Claude Lévi-Strauss se refere ao conceito de invariante é para vigiar a base, de carácter binário, de sustentação da estrutura, pois a invariante gera novas imagens deformadas, no fundo variáveis comuns de uma significação universal, mas que permitem uma percepção local.
Imaginemos que o narrador queira nos propor uma história que actue no imaginário da consciência colectiva para propor soluções sobre conflitos reais.
No caso de “O último recuo”, o invariante, para nós leitores angolanos, provavelmente nos conduzirá ao récem-terminado conflito armado. Mas, mesmo perante este invariante, a experiência de cada um de nós nos levará às imagens locais deformadas. Assim, uns poderão pensar em ente-queridos, outros em bens móveis ou imóveis perdidos e outros ainda em sonhos ou projectos de vida desfeitos.
O autor cria a amargura no coração do leitor, mas oferece um projecto que poderá trazer mudanças. E é Manecas Ladeira, um mutilado, um sindicalista, um professor, um ex-militar, quem trás a novidade para a mudança, com um livro, descrevendo 3 revoluções que terão abalado o seu país.
O livro de Manecas Ladeira é, na realidade, o retrato do “O último recuo”, recuando no tempo e na história, narrando o estado caótico em que o país da ficção se encontrava.
E a pergunta do João Segura na página 129, que é a do autor provavelmente e que é a dos leitores, acaba por ser contagiante:
“- E o livro fica por aí, acaba assim?... (descrevendo as revoluções) Não aponta saídas?”
Contudo, e voltando ao conceito de consciência colectiva, um outro invariante que poderá emergir do texto é o da crença colectiva por uma bonança no pós tempestade.
A ideia de consciência colectiva, de Émile Durkheim, pressupõe a soma de crenças e sentimentos comuns à média dos membros da comunidade, formando um sistema autónomo, isto é, uma realidade distinta que persiste no tempo e une as gerações .
Portanto, os factos sociais narrados em “O último recuo” demonstram que a consciência colectiva anula a consciência individual e se contrapõe à consciência de classe, esta que privilegia as diferenças existentes entre a própria situação de classe e a de outro indivíduo ou indivíduos.
Com a consciência colectiva, nada depende de um indivíduo. Tudo depende de um todo.
“O último recuo” é, a meu ver, um olhar ao passado para melhor avançarmos para o futuro e alimenta os átomos individuais duma consciência colectiva que este país precisa de inventar, de regar e de colher.
Como disse, essa é a minha leitura.
Boa leitura.


Bibliografia

CORI, Isaquiel. O último recuo. Colecção Nzadi / Mayamba, Luanda, 2010.
Durkheim, Émile. Da divisão do trabalho social. Editora Martins Fontes, São Paulo, 2008.
MILAN, Betty. A força da palavra. Editora Record. Rio de Janeiro, 1996.
SCHULER, Donaldo. Teoria do romance. Editora ática, São Paulo, 2000.
.........................
NOTA: Texto de apresentação do romance "O Último Recuo", de Isaquiel Cori, lido no dia 19 de Maio de 2010, na sede da União dos Escritores Angolanos, em Luanda.






*António Quino é docente de Língua Portuguesa no ISCED. Para quem o quiser contactar, eis os seus contactos:
Departamento de Língua Portuguesa
Instituto Superior de Ciencias da Educaçao de Luanda
Caixa Postal N. 10609 ou 16117
Telef: 222 401 311 / 923311453 / 912050293

Luanda/Angola

As fotos aqui publicadas foram tomadas de www.nguimbangola.blogspot.com

terça-feira, 6 de julho de 2010

ESTÁDIO 11 DE NOVEMBRO ÀS ESCURAS ADIA ENTRADA DO BAIRRO DA SAPÚ 2 NO SÉCULO XXI

Isaquiel Cori

Morador que sou do bairro situado nas imediações do Estádio Nacional 11 de Novembro, em Luanda, esta catedral do futebol inaugurada aquando do Campeonato Africano de Futebol 2010, vivo momentos de desilusão. O estádio era um oásis de luz no meio da escuridão profunda em que vivemos na Sapú 2. De bem longe, bem de longe, o morador quando se aproximasse do seu bairro, através da auto-estrada, depois de uma jornada de trabalho, guiava-se pela luz emitida pelo estádio e que subia para o céu.
No meio da escuridão em que vivemos na Sapú 2, o grande estádio e a sua luz eram vistos, com esperança, como símbolos do que não tínhamos e que ansiávamos ardentemente: a electricidade da rede pública e tudo o que ela propicia em matéria de comodidade, progresso e modernidade.
O estádio 11 de Novembro era o farol, o grande sinal de que, até pela proximidade, o século XXI estava às nossas portas, pois é inconcebível estar plenamente no século XXI sem desfrutar da luz eléctrica. E sem ter água ao domicílio.
É assim que vivemos na Sapú 2, um bairro construído de raiz pelo Estado, há cerca de cinco anos: sem luz e sem água ao domicílio. O estádio 11 de Novembro e a sua proximidade eram a nossa grande esperança, talvez “quem de direito” se lembrasse de que a moderna infra-estrutura não poderia coexistir com um bairro sem luz e água ao domicílio, pois, não já pela dignidade dos moradores, seria uma vergonha diante dos estrangeiros que fossem ver os jogos e passassem pelo bairro.
Agora, depois do CAN, a nossa esperança apagou-se! A luz que se propagava para o céu a partir do grande estádio, do estádio do século XXI, desapareceu. O estádio, ninguém sabe se contaminado pelo nosso bairro escuro, caiu na mais completa escuridão. E os acessos ao estádio que antes também eram caminhos de luz e iluminavam as nossas ânsias de entrar no século XXI, ficaram igualmente escuros. E nós, os da Sapú 2, perdemos o nosso farol! Perdemos o nosso oásis de luz e modernidade! Apagou-se a nossa esperança de finalmente desfrutarmos das “benesses” da cidadania do século XXI.

terça-feira, 29 de junho de 2010

Comunidade de leitores ou a cultura que se cultiva

Isaquiel Cori

Numa ida recente a pelo menos três livrarias da cidade de Luanda, em conversa com livreiros, constatei que são muitas as pessoas que aparecem para comprar livros. “Elas são sobretudo jovens. Entram, circulam entre as estantes, seguram os livros, vacilam, analisam os preços, e, sempre hesitantes, acabam finalmente por dirigir-se ao caixa com um ou dois livros ou então abandonam a livraria de mãos a abanar, entre o frustrado e o envergonhado”, disse um dos meus interlocutores.

O Jardim do Livro Infantil, que terminou no último Domingo em Luanda, deu mais uma prova de que há sim muita gente interessada no livro e na leitura. Em três dias, segundo a agência de notícias ANGOP, compareceram ao evento mais de 12 mil pessoas. É muito? É pouco? É encorajador.
Existe sim uma comunidade de leitores em Luanda. São pessoas que amam a leitura, a incluem entre os seus principais hobbies e procuram inculcá-la aos seus filhos.
Mas essa comunidade de leitores anda à deriva. São pessoas que sacrificam os seus orçamentos para ter um livro e vasculham as livrarias em busca de um título mais acessível. As feiras do livro e da leitura que ocasionalmente vão ocorrendo, até pelo facto de, na generalidade, nelas os livros serem vendidos com descontos, constituem verdadeiros nichos num mercado a todos os títulos inflaccionado.
É minha opinião que nessa cadeia que vai do livro ao leitor e à leitura, começando naturalmente pelo autor, há um factor que entre nós se apresenta bastante deficitário: os veículos da difusão do livro e do fenómeno literário em geral. Refiro-me, concretamente, à comunicação social.
A comunicação social angolana, como é sabido, dedica pouco espaço a matérias culturais. E esse espaço já de si escasso é geralmente ocupado pela simples narração de eventos: aconteceu ou vai acontecer assado e cozido. Raramente se vai à profundidade e à explicação dos factos.
Em se tratando do livro, os leitores precisam de ser orientados. À falta de uma crítica académica ou profissional, bem que a comunicação social poderia cumprir essa “missão”, fazendo e publicando pequenas recensões críticas e pré-publicando excertos de livros. Entrevistas sérias aos autores, baseadas numa leitura prévia do livro a publicar, ou recentemente publicado, também se tornam indispensáveis.
Chegados aqui, põe-se a questão dos editores de livros. As casas editoras deviam ser mais activas na sua relação com a comunicação social, estabelecendo relações directas e dinâmicas com as editorias culturais, que passariam pela entrega prévia de exemplares do título a lançar.

Insuficiências da media

Enquanto autor e profissional da comunicação social, reconheço que a classe também enferma de um grande défice de hábitos de leitura. E entre ler um livro e ter a capacidade de o resumir e o analisar em texto, por mais ligeiro que seja, vai uma grande distância.
Enfim, é um problema próprio de um país jovem, que apesar de ter trinta e cinco anos de independência, verdadeiramente só a está a desfrutar na plenitude há oito anos. Enquanto as universidades não colocarem no mercado profissionais da comunicação social que encarnem o seu papel de intelectuais e de agentes activos da cadeia de elaboração e difusão do saber, as coisas hão-de continuar como estão.
Até lá, há que estimular os poucos profissionais capazes no interior dos órgãos a ler e a escrever sobre o que lêem. A terem uma atitude intelectualmente activa, crítica, de desassossego. O jornalismo de opinião deve transcender a política e abarcar e penetrar o fenómeno cultural e literário.
Então, haja vontade e cultura. E lembremo-nos: a cultura cultiva-se.

domingo, 20 de junho de 2010

Entre nós existe sim uma comunidade de leitores

Há dias recebi um email de alguém que me dizia que adquirira o meu livro "O Último Recuo" e tecia toda uma série de considerações a respeito e a propósito do mesmo. A profundidade de tais considerações não deixavam dúvida: a pessoa em causa lera e talvez relera o livro.
Manifestações como esta fazem valer a pena a persistência no exercício da escrita e aumentam em nós a fé de que em Angola existe sim uma comunidade de leitores e que tudo deve ser feito para que o livro chegue às mãos desses leitores a preços acessíveis.
Na senda do que escrevi neste blogue, no texto "A crise da literatura angolana", vou postar nos próximos dias um texto sobre aquilo que se pode fazer para encurtar a distância entre autores e leitores e aumentar a comunidade de leitores da literatura angolana, e não só.
Isaquiel Cori

segunda-feira, 7 de junho de 2010

DE VOLTA

Caros amigos, estou de volta. Ninguém perde por esperar.
Isaquiel Cori

terça-feira, 23 de março de 2010

LevArte

Para mais detalhes sobre as actividades do movimento LevArte seguir www.fazemosacontecer.blogspot.com

Há que tornar a escola numa fábrica de leitores




Atendendo a um simpático convite estive num encontro no Kings Club, à Vila Alice, em Luanda, com jovens que amam a literatura e estão ávidos de mais saberem sobre o assunto. A iniciativa foi do movimento LevArte, uma das forças mais visíveis, actualmente, do activismo literário em Luanda. Foi bom conviver com a rapaziada, sobretudo porque senti que estão profundamente comprometidos com a literatura e a cultura angolanas. Bem haja LevArte! Parabéns Kardo Bestilo, Nguimba Ngola, Lueji Dharma e outros responsáveis do LevArte. O vosso esforço em prol da promoção da literatura angolana certamente ficará marcado de modo indelével na História da Literatura Angolana. I. Cori