segunda-feira, 11 de setembro de 2017

PRÉ-PUBLICAÇÃO: ROMANCE "DIAS DA NOSSA VIDA", de ISAQUIEL CORI

Pois é, caros internautas, aqui vai, em jeito de pré-publicação, o capítulo inicial do meu romance inédito "Dias da Nossa Vida". Se tudo correr bem, o livro sai a público no primeiro trimestre de 2018. Creiam, amigos: nunca foi tão difícil publicar um livro em Angola! As editoras, descapitalizadas, propõem aos autores que batam as portas das empresas em busca de patrocínio; e as empresas, a funcionar num ambiente de imensas dificuldades, não têm como atender positivamente aos pedidos de patrocínio. Aos autores, aqueles em que o acto de escrever significa um sopro de vida, um gesto de liberdade e de afirmação do ser criativo, só resta a opção de escrever para a gaveta. Amanhã talvez as coisas melhorem. Amanhã as coisas sempre melhoram.


                                                           
CAPÍTULO 1




         Reinaldo Bartolomeu vestiu o fato olímpico de sua eleição, o azul de listas vermelhas, calçou as sapatilhas e pôs-se a aquecer aos saltos no quintal. Parecia um coelho dos bonecos animados.
        - Filha, vou dar a minha corridinha matinal.
        - Está bem, querido - gritou a esposa, Rebeca, da cozinha.
        Com o corpo quente e já a transpirar, Reinaldo abriu o portão metálico do quintal e a rua atirou-lhe, imediatamente, à cara a luz clara da manhã. Viu-se obrigado a fechar os olhos. Era uma manhã potente, que prometia um sol abrasador, ao contrário dos últimos dias, em que as manhãs cinzentas e a atmosfera pesada envolviam tudo e todos num abraço deprimente. Deu uns passos às cegas e quando voltou a abrir os olhos foi brindado com uma visão digna de um quadro surrealista: dois cães estavam colados pelo sexo e cada um puxava para o seu lado, na tentativa de se desprender. Eram cães rafeiros, bonitos e limpos. “Mas que porra!”, gritou para si mesmo. “Logo dois cães a se foderem mal um gajo sai para a rua?”
        Uma sensação de mau presságio, misturada com um medo repentino e visceral, obscureceu a mente de Reinaldo e arrepiou-o todo. “Será que vou ter um dia de cão, meu Deus?”
        Ameaçou pontapear o casal de canídeos e estes, assustados, acabaram por se descolar e se afastar, visivelmente exaustos e envergonhados. “Será que estes animais gozam o sexo como nós, humanos? Mas que raio, assim, sem privacidade nenhuma, na rua, à luz do dia, não acredito que tenham prazer no sexo. São cães! Por isso e por outras é que são cães!”
        Lá Reinaldo Bartolomeu deu as duas voltas habituais pela rua, numa corrida rápida, cheio de genica. Quando finalmente entrou em casa e se colocou nu debaixo do chuveiro, o corpo todo molhado de suor, ainda voltou a ter uma visão mental dos cães em pleno sexo. Mas acabou por entregar-se  à água fria. O choque térmico despertou-lhe todo, pôs-lhe a mente e os sentidos em disparada, com os pensamentos a direccionarem-se logo para o trabalho. Lembrou-se das palavras marteladas e cem vezes repetidas do chefe Admirável Redondo: “Muito há a fazer!”.
        Ao contrário de outros sectores do funcionalismo público, em que os detentores de cargos de chefia preferem não fazer ondas, deixando-se estar absolutamente quietos para não desagradarem o superior hierárquico e porem assim, eventualmente, em causa o próprio cargo, nos Serviço de Informação exigia-se que se fizesse sempre alguma coisa. Era impossível ter o conhecimento e o controlo da situação, de qualquer situação, ficando apenas parado. Apenas parado porque, efectivamente, por vezes, e não poucas vezes, apreendia-se melhor as várias nuances da situação ficando mesmo parado, imóvel, na mais completa passividade. Mas agora Admirável Redondo sinalizava que não bastava ter conhecimento do que se passava à superfície dos dias. “É preciso provocar os factos e colocar os adversários na defensiva ou a denunciarem-se a todo o momento. É assim: como num jogo de xadrez, é quase impossível o jogador aplicar na plenitude a estratégia previamente adoptada; os seus movimentos ofensivos confrontam-se com os defensivos e contra-ofensivos do adversário, obrigando-o a adaptar-se permanentemente, a ser criativo”, dizia ele. Reinaldo enxugou-se, vestiu um velho fato escuro e juntou-se à mulher na cozinha. O cheiro a café atraiu-o imediatamente para a cafeteira no fogão.
        - Come primeiro, toma o café depois, querido.
        - Está bem.
        Sentou-se à mesa e fez um esforço para comer. Era um hábito, ou melhor, uma falta de hábito antiga. No tempo da guerra chegara a dispensar completamente o matabicho, limitando-se a tomar um café amargo logo de manhã, para voltar a meter algo no estômago só ao almoço. Pagou caro por isso. Nos últimos anos foi sendo apoquentado por dores de estômago que chegavam a deixá-lo quase inanimado. Teve de viajar a Cuba, onde um médico impôs-lhe uma dieta centrada no pequeno almoço. Desde então as dores diminuíram. A mulher tomou a si a responsabilidade de garantir que tomasse sempre o matabicho. Era como ela dizia: “para o bem de toda a família”.
        - Está aqui o jornal de hoje. O motorista passou enquanto te banhavas.
        Há dois anos o principal jornal do país chegava à província todas as manhãs, no primeiro voo da companhia de bandeira. E Reinaldo era das primeiras pessoas a ter acesso ao mesmo. Agarrou o jornal e foi passando os olhos página a página. Ler os jornais, sobretudo o jornal oficial, era uma obrigação profissional. Os jornais privados, quase todos semanários, foram impedidos de circular na província, na sequência de uma novela caluniosa a respeito da vida particular de Sua Excelência o Senhor Governador. Verificara-se depois que a campanha fora montada e financiada a partir de Luanda por um velho inimigo de estimação do Governador, colocado em posições cimeiras das estruturas partidárias e governamentais. A questão de se saber da verdade, do mérito ou não das acusações, fora habilmente desviada para a deslealdade do dirigente em causa. Antes que ambos se autodestruíssem, arrastando consigo, aos pedaços, a boa imagem do sistema político, representantes do núcleo duro do poder no país chamaram-nos e obrigaram-nos a fazer as pazes: em nome dos “superiores interesses do Partido, da Nação e da Paz”. Um círculo muito restrito da província, em que se situava Reinaldo, por dever de ofício, continuava a receber os principais semanários da capital do país.
        Mais do que as notícias em si Reinaldo procurava extrair do diário oficial os sinais, as tendências. Era-lhe importante sondar a linguagem, descodificar o grafismo, ler as fotos e as legendas. As páginas de publicidade, muitas vezes, acabavam por ser mais significativas que as notícias, diziam mais das dinâmicas políticas, sociais e económicas e tornavam mesmo o jornal indispensável para todo e qualquer funcionário público. 
        Não menos importantes para Reinaldo eram as páginas de necrologia. Ele que conhecia muito bem a elite social, económica e cultural da capital do país, onde se movera ao longo de quase toda a vida, deparava-se frequentemente, naquelas páginas, com o rosto de alguém que partira para o outro mundo. Não tendo medo da morte, respeitava-a, porque punha todos de sentido e tudo em perspectiva: estamos todos de passagem, não importa a riqueza ou o poder que se tenha. Por isso valorizava imenso a vida, essa carruagem colorida e cheia de sonoridades que ninguém sabe quando e onde vai parar. 
        Enquanto lia, Reinaldo Bartolomeu esticava mecanicamente o braço para alcançar um pedaço de pão, uma fruta ou outro alimento qualquer. Mastigava devagar, completamente entregue às escolhas nutricionais da mulher.
        - Algo de novo? Como está o país?
        - Tudo velho, filha. Pelo menos, de momento.
        - Como assim, de momento?
        - O importante é absorver as notícias. No momento certo a mente devolve-nos o que absorvemos na forma de sínteses informativas, saberes intuitivos.
        - É o teu trabalho, sei, mas…
        - Papá, papá, quando eu crescer também quero ser bufo!
        Vindo do quarto a correr, portador de uma energia inusitada para quem acabava de saltar da cama depois do sono nocturno, Andrezinho, o filho caçula, irrompeu na cozinha com a soberania imperial das crianças mimadas.
        - Eh, pá! – Reinaldo esticou-se todo, como uma cobra ao ataque, deixou o jornal escorregar para o chão, as folhas soltas espalhadas. – Anda cá, Andrezinho, o que foi que você disse?
        - Quando eu crescer quero ser bufo, papá! – reafirmou.
        - Você sabe o que é isso?
        - Sim, quero ser assim como o papá e o avô. E também como o vizinho Manecas e a mulher dele. E como o tio Caldeira e a mana Domingas. Ah, e a prima Deizi e o marido dela…
        Reinaldo respirou fundo. Outra maka mais! Andrezinho tinha sete anos. Era muito espevitado mas acabava de ultrapassar todas as marcas. 
        - Quem anda a te dizer essas coisas? Vá, diga!
        - Ninguém, papá, eu sei mesmo sozinho. Ninguém me disse.
        Nunca se sabia. Tinha de ficar mais atento, abrir uma nova frente de vigilância, agora tendo como alvo o próprio filho. Era uma tarefa a não delegar a ninguém. Ele próprio a levaria a cabo. O inimigo estava em todo o lado, infiltrava-se em todos os lugares.
        - Trata mas é de estudar. Estudar é o teu trabalho. E vais ter de me dizer com quem andas a conversar.
        - O que é isso, Reinaldo, deixa o miúdo em paz. Ele é inocente.
        - Até pode ser inocente, mulher. Os inocentes são, precisamente, o maior risco. Podem ser utilizados sem sequer perceberem.
        - Ora, o Andrezinho acompanha as conversas aqui em casa e nos lugares onde vamos. Ele é apenas uma criança. Não o ponhas nesse mundo sombrio em que te moves.
        - Ai é? Vamos ver. Se cheguei até onde estou é porque nunca deixei uma ponta solta.
        - Vai para o quarto de banho, já.
        Andrezinho foi para o quarto de banho, todo contrariado. Reinaldo pensou seriamente na família, nas amizades e na vizinhança. Na sua ascendência e nas suas relações passadas e actuais, era bem verdade, tudo tresandava a bufaria. Na família havia uma verdadeira dinastia de bufos. Até onde ia o seu conhecimento um antepassado seu fizera parte do círculo de confiança da rainha Njinga Mbande, encarregando-se da sua segurança pessoal. A informação fora-lhe dada, inadvertidamente, por um velho tio na noite triste e festiva de um óbito em Malange. Quisera aprofundar os detalhes, saber mais de tão ilustre antepassado, mas tanto o excesso de trabalho como a morte do velho cortaram tal possibilidade. Foi aos arquivos, aos livros de História disponíveis, mas não encontrara rastos do parente. O que era compreensível, pois a narrativa da história de Angola pré-colonial é, fundamentalmente, a gesta de reis, rainhas e grandes chefes tribais.  
        As informações a respeito do tempo colonial eram mais profusas e claras. Durante a luta anti-colonial teve parentes seus a operarem, ao mesmo tempo, como agentes da PIDE e das forças clandestinas do MPLA. Essa condição dúbia, de prestadores de serviços valiosos tanto a um como ao outro lado da barricada, colocou alguns desses parentes em posição privilegiada por altura da eclosão da independência nacional. Não por acaso, um dos mais altos dirigentes da antiga DISA era um tio seu, primo da mãe. Igualmente não por acaso, um outro tio, irmão da mãe, também da DISA, estava entre os mortos do 27 de Maio de 1977. Era mesmo como o Andrezinho dissera: os seus parentes mais notáveis faziam parte das várias estruturas dos serviços secretos. Alguns sobrinhos já estavam a trilhar o mesmo caminho: além de um bom emprego, era uma questão cultural incrustada no sangue.
        - Precisamos ficar atentos ao Andrezinho.
        - Vai, deixa o miúdo ser criança. Não o metas nas tuas obsessões.
        - Vamos ver no que é que isso vai dar, filha. Estou muito preocupado.







quinta-feira, 10 de novembro de 2016

Escritor Henrique Guerra: "A inveja é um sinal de fraqueza"



Isaquiel Cori

Henrique Guerra é um dos últimos sobreviventes da chamada geração da "Cultura". A sua obra literária, que se estende pelo conto, a poesia e o ensaio, apesar de, como ele próprio diz, ser "curta em volume", é uma das mais representativas da literatura angolana. Alvo de homenagem em Janeiro de 2014 pelo Ministério da Cultura, voltou a sê-lo a 26 de Fevereiro do mesmo ano pela União dos Escritores Angolanos. Henrique Guerra, que também é artista plástico, voltou aos escaparates das livrarias em 2014 com o livro de contos "O Tocador de Quissanje".  

Escritor Henrique Guerra, entrevistado na biblioteca da associação Chá de Caxinde, em Luanda (foto de Paulino Damião)

Pergunta - Tem uma longa carreira literária, iniciada na adolescência. O que o levou a escrever?
Henrique Guerra - A minha carreira literária é longa no tempo, mas em volume é curta. As obras que publiquei já são de há bastante tempo, desde a minha juventude. Sou um pouco aquilo que Manuel Bandeira chamava de escritores bissextos. Não escrevo com muita regularidade. A minha actividade literária começou praticamente nos finais do meu ensino secundário, no Liceu Salvador Correia. Havia as minhas leituras, que eram praticamente a literatura portuguesa. O que me motivou a escrever foi uma vez ter lido no jornal "A Província de Angola", lá para o ano de 1952 ou 1953, um poema do Aires de Almeida Santos, "A Mulemba secou". Fiquei tão fortemente impressionado que tentei fazer uma música à volta desse poema. Verifiquei que para além daquilo que dávamos através dos compêndios escolares, na disciplina de Literatura Portuguesa, havia uma realidade angolana, um quotidiano que estava arredado da literatura oficial. Isso despertou-me a debruçar-me sobre a realidade que não era objecto da cultura oficial e comecei a escrever algumas coisas.
P - Começou pelo conto?
HG - Comecei pelo conto e também pela poesia. Nessa altura havia o movimento "Vamos Descobrir Angola", fundado pelo Viriato Cruz, que tinha vários centros onde se reunia a juventude e eram promovidos concursos de poesia. Resolvi concorrer e ganhei o primeiro prémio.
P - Qual era o título desse poema?
HG - Não tinha título, foi publicado no "Brado Africano". Dizia: "Eu quero fugir de mim / porque quero estar dentro de mim"... Dizia das inquietações da adolescência, da identificação contra si próprio, etc. O facto de ter ganhado o primeiro prémio daquele concurso entusiasmou-me para a escrita.
P - Que circunstâncias terão levado dois irmãos, Mário e Henrique Guerra, separados por dois anos de idade, a enveredarem pela escrita?
HG - Terão sido circunstâncias do meio estudantil. Frequentamos juntos a chamada "Turma do Barulho", que era um dos sectores do "Vamos Descobrir Angola", que de certo nos animou e despertou para a actividade literária.
P - Por que razão é um escritor bissexto? Por que fica tanto tempo, não diria sem escrever, mas sem publicar?
HG - Talvez porque dediquei-me mais à actividade profissional. As necessidades da vida levaram-me a ter uma profissão. Fui para a topografia e depois para a engenharia e isso absorveu-me mais, talvez também pelo lado técnico típico dessas profissões.
P - Os seus contos denotam que viajava bastante pelo interior de Angola. Continua a viajar pelo país?
HG - Agora, por razões de saúde, não viajo. Viajava muito enquanto topógrafo.
P - Há nos seus contos um narrador que observa e "pinta" os cenários com cores fortes, quentes. Nota que há uma interferência do pintor, que existe em si, na sua sua escrita?
HG - Sim. Quem observou primeiro esse aspecto foi o Abreu Paxe. Quando era topógrafo também pintei muito, sobretudo as paisagens dos sítios por onde passava. A pintura e a literatura eram actividades que corriam paralelas e certamente acabaram por influenciar uma à outra.
P - Continua a pintar? Quando teremos uma exposição sua de artes plásticas?
HG - É possível que tenhamos, mas não tenho um projecto.
P - O que faz, concretamente: desenha, pinta a óleo, faz guaches?...
HG - Mais desenho a preto e branco, tipo namquim, e guaches. Um dos meus defeitos é não guardar aquilo que produzo. Descuido-me, ofereço ou levam-me as obras para fazerem publicidade nos jornais.
P - Foi um dos colaboradores do jornal "Cultura", da Sociedade Cultural de Angola. Na sua opinião, qual é o legado dessa publicação para o jornalismo cultural hoje?
HG - Isso é polémico. Há uma tendência, uma corrente juvenil actual, que diz que o "Cultura" pertence ao passado, preocupava-se muito com a luta de libertação, já se fez a independência, agora os temas são outros. Mas acho que há um legado a ter em conta, que tem a ver com uma postura de hombridade e verticalidade moral, de defesa da justiça, da dignidade e igualdade entre os homens.
P - Além de poeta e ficcionista também é um grande ensaísta. Nessa última qualidade o que tem a dizer sobre a literatura angolana que se produz hoje?
HG - Existe uma busca saudável por novos caminhos e novas formas de expressão. Na minha juventude havia uma propensão dominante, que era a oposição à dominação colonial e às suas injustiças. Isso já direccionava e balizava a literatura. Hoje os problemas são muito mais abertos. Têm aparecido escritores novos que procuram debruçar-se sobre novas vertentes, buscando novos caminhos. Há, por outro lado, uma tendência, não muito salutar, de procurar uma maneira um tanto ou quanto individual e arbitrária de tratar os assuntos.
P - Como "uma maneira individual e arbitrária"?
HC - Acho que a literatura não deve ser explicada, a arte não deve ser explicada, ela deve explicar-se por si. Algumas obras são tão obtusas e tortuosas que depois o autor tem de explicar o que quis exprimir, quando a própria obra é que devia explicar-se.
P - Uma característica sua é a discrição e a aversão aos holofotes. Que lição tem a dizer a esse respeito?
HG - É um pouco imodesto a pessoa falar de si própria, apresentar justificações desta ou daquela maneira de ser. Os outros estão em melhores condições de observar e tirar conclusões. Mas talvez seja uma questão de idiossincrasia.
P - Foi preso pela PIDE entre 1964 e 1973, acusado de pertencer ao MPLA. Quais foram as circunstâncias exactas dessa prisão?
HG - Foi no auge da repressão colonial. Na altura o presidente Agostinho Neto lançou a palavra de ordem "Iniciativas e mais iniciativas", para estendermos a luta o mais longe possível, em todos os campos, com propaganda nas cidades. O meu grupo tentou fazer isso e não foi bem sucedido. Como consequência apanhei oito anos e meio de prisão, uma pena excessiva em relação aos actos em si, dependente também da forma como a defesa foi conduzida.
P - No princípio deste ano foi homenageado pelo Ministério da Cultura. Sente-se plenamente reconhecido?
HG - A homenagem sempre deixa o homenageado   recompensado e sentir que os seus actos não foram totalmente em vão.
P - No conto "Mulengue", que faz parte do livro "O Tocador de Quissange", há o desaparecimento dos fatos que os rapazes deviam vestir na festa do Liceu. Mas o clímax do conto acaba por ser a destruição das panelas de barro que a mãe Chica enterrara para se contrapor ao mau olhado. É como se o autor tivesse desistido de encaminhar a estória para descoberta dos culpados do roubo. Isso foi propositado?
HG - A preocupação principal não é repressiva ou policial, mas o fenómeno em si do mau olhado e da inveja. O que está em causa são esses sentimentos e não quem realiza o roubo. Quem realiza o roubo está dentro de um clima que o transcende, e esse clima é o que está em causa.
P - "A inveja, essa maldição que se infiltra no seio da sociedade africana". É um extracto do conto "Mulengue". Extrapolando, pode-se considerar a inveja como um mal latente na sociedade angolana actual?
HG - A inveja é um sinal de fraqueza, é o reconhecimento de uma inferioridade que alguém tem em relação a outro, por causa de uma situação que quer superar, mas não consegue e cai na frustração. Hoje em dia as transformações sociais são tão rápidas e profundas que existem extractos que se sentem fragilizados e frustrados em relação a outros que estão a avançar. E surge a inveja, que aliás, não é um apanágio restrito à sociedade angolana.
P - Alguns dos seus contos possuem tanta informação que dá a impressão que a trama bem poderia desenrolar-se mais lentamente, de modo a transformar-se numa novela ou romance. Porquê que até agora não se aventurou pelo romance?
HG - Na prisão tentei fazer um romance, quase o completei, baseado num conto cokwe. Uma vez o Luandino Vieira tentou animar-me a publicá-lo, mas achei que não estava muito bem conseguido e não o terminei.
P - Tem outros textos para publicar?
HG - Tenho coisas antigas. Eu pensava que depois da aposentação teria a minha vida mais livre e arrumada, mas até agora ainda não consegui isso.

(Nota: Entrevista publicada em Março de 2014 no jornal Cultura, Luanda.)



quinta-feira, 27 de outubro de 2016

Professor Francisco Noa fala da literatura de Moçambique e da língua portuguesa no espaço africano: "Temos estudos que podem legitimar as nossas variantes"

(NOTA: A entrevista que a seguir transcrevo foi produzida e publicada em 2014, quando estava profissionalmente vinculado ao jornal Cultura, na qualidade de editor de Letras. Publico-a neste lugar por causa da sua notória actualidade.)

                                                                       
    
Francisco Noa com o Presidente da República de Moçambique Filipe Nyusi, em 2015 (Foto de Ferhat Momade)

Francisco Noa, doutor em Literaturas Africanas em Língua Portuguesa, docente das Universidades Eduardo Mondlane, de Moçambique, e Agostinho Neto, de Angola, ensaísta e crítico literário, foi um dos ilustres convidados ao III Congresso Internacional da Língua Portuguesa da Universidade Jean Piaget de Luanda, realizado nos dias 16, 17 e 18 de Setembro de 2014. Apresentou a comunicação “A Contribuição da Literatura no Desenvolvimento da Língua Portuguesa”. Gentilmente concedeu ao jornal Cultura a entrevista que a seguir se transcreve.

Jornal Cultura – Um aspecto que ficou marcado no congresso da UniPiaget é o facto de nos países africanos a escola tender a impor uma norma da língua portuguesa afastada do uso corrente da língua. Porque não elevar à norma aquela variante que afinal é a língua dos cidadãos?
Francisco Noa – É muito fácil imputarmos as culpas aos políticos mas é uma situação extremamente delicada que vai levar, infelizmente, muito tempo a ser resolvida. Podemos olhar para o exemplo do Brasil, que tem hoje uma norma surgida da variante brasileira. Isso foi o reflexo de muita discussão. O Brasil ficou independente em 1822 e houve a preocupação de criar uma literatura e toda uma mundividência que reflectisse aquilo que o Brasil era culturalmente. Houve, durante décadas, um grande debate entre aqueles que defendiam a variante que tinha a ver com a especificidade, estou a pensar num José de Alencar, e aqueles que defendiam o registo clássico, digamos, culto, da língua, caso de Machado Assis. Só durante o século XX é que a variante se transformou em norma. Os nossos países estão com quarenta anos de independência e se formos às Universidades Agostinho Neto e Eduardo Mondlane, entre outras, vamos encontrar já muitos estudos de especialistas em linguística, com muita qualidade, que serviriam para validar, legitimar, a adopção das nossas variantes do português como normas. Penso que o impasse que existe neste momento é o que Jean-François Lyotard dizia no seu livro famoso, “A Condição Pós-Moderna”, entre aqueles que têm que decidir o que saber, que são os da academia, e os que têm que saber o que decidir, que são os políticos. O que eu quero dizer é que esse impasse de alguma forma tem de ser quebrado, sendo necessária também coragem política.

JC – A discussão tem de sair da academia para a sociedade.
FN –E sobretudo para a política. Isso tem de ser um processo. Há muitos erros ortográficos e de natureza morfo-sintáctica e não podemos ser paternalistas e nos escudarmos permanentemente nas questões das línguas africanas. É preciso que exista um equilíbrio entre aquilo que é a tendência global dos nossos países, do ponto de vista das falas que se vão cristalizando, e aquilo que deve ser a norma e que deve legitimar uma certa qualidade comunicativa. A minha grande preocupação é a nível da escrita. Por isso eu coloco a questão: quais são os limites que a própria escrita se deve impor no sentido de ela manter a sua integridade? A escrita foi e será sempre sagrada, será sempre um registo mais estável e nobre do uso da língua. Significa que na adopção da norma é preciso que haja muitas precauções no sentido de evitarmos resvalar numa espécie de caos linguístico que obviamente vai gerar um caos comunicativo. Entendo que, sobretudo entre os jovens, há uma tendência cada vez maior de escreverem poesia e narrativas tal e qual como eles falam e o que eles falam tem a ver com a variante. É necessário haver todo um trabalho de concertação entre os poderes políticos e a academia. Isso parece-me irreversível.

JC –  A sua comunicação no congresso foi sobre a relação entre a literatura e a língua portuguesa. Pode fazer um resumo breve para os nossos leitores?
FN – Defendi, basicamente, que a literatura tem dado um grande contributo à estabilização e ao desenvolvimento da língua portuguesa. Dei o exemplo do Brasil, mas nós, quer em Moçambique como Angola, Cabo Verde e São Tomé e Príncipe, vamos vendo que cada vez mais a literatura, além da relação com o quotidiano, tem uma relação muito profunda com a língua. Ela vai espelhando as tendências da língua dos pontos de vista lexical, semântico, morfo-sintáctico… Vai registando essas marcas e, de certo modo, legitimando o uso dessas marcas. No entanto, há uma situação no mínimo paradoxal. Apesar de a literatura ser um registo culto, ela vai inspirar-se nas falas populares, as falas das massas anónimas da população que reinventa a língua portuguesa todos os dias, atribuindo novos significados às palavras, acrescentando novas palavras ao universo da língua portuguesa, aportuguesando palavras das línguas bantu ou registando algumas das principais tendências das variantes, onde nós vemos claramente as interferências das línguas bantu. Sendo um espaço de possibilidades, a literatura mostra as enormes possibilidades plásticas que a língua portuguesa possui e explora isso ao limite. Temos os casos, entre outros, do brasileiro Guimarães Rosa, dos angolanos Luandino Vieira, Uanhenga Xitu, Ondjaki, de José Craveirinha, do Mia Couto, em que é manifesta a relação não só com um universo existencial mas sobretudo com a língua. Há claramente nesta relação com a língua portuguesa uma nativização e africanização da língua portuguesa.

JC – Pode traçar-nos um panorama sucinto do estado actual da literatura moçambicana?
FN – O que eu sinto em relação à literatura moçambicana é que há uma certa vitalidade, a nível da produção, e da reflexão sobre ela, que, entretanto, bem poderia ser maior. Sobretudo entre os jovens há uma grande vontade de produzir literatura, o que se vai reflectindo em algumas obras que manifestamente apresentam alguma qualidade, que nalguns casos é já assinalável. Como sabe, a literatura moçambicana passou por um momento menos bom, em que havia certamente alguma produção, mas sinto que hoje essa produção é acompanhada por alguma preocupação pela qualidade, quer a nível da poesia quer da prosa. Há um movimento dos jovens no sentido de discutirem a própria produção literária, sobretudo nos meios próximos às Universidades. Há sinais muito fortes e promissores no sentido de que a vocação e a marca de qualidade que vem dos anos 40 e que depois foi revitalizada nos anos 80 esteja de regresso. E com uma forte pujança. Alguns dos jovens autores têm um forte compromisso com uma certa tradição literária que existe em Moçambique.

JC – Em Angola temos algum conhecimento da literatura moçambicana que vai até à geração da Charrua, com nomes como Marcelo Panguana, Eduardo White, Ungulani Ba Ka Kossa. E há os casos particulares de Mia Couto e Paulina Chiziane. A antologia do conto moçambicano “As mãos dos pretos”, organizada por Nelson Saúte e editada em Portugal, foi vendida em algumas livrarias de Luanda. Mas desconhecemos o quadro das novas gerações. Pode elucidar-nos?
FN – Esse desconhecimento está a tornar-se estrutural e circular. Não sabemos muito do que os outros países produzem. Se em relação à poesia houve uma espécie de continuidade, contudo com aspectos inovadores importantes sobretudo do ponto de vista de uma certa trans-nacionalidade, que eu percebo, sobretudo em relação à actual produção moçambicana há uma grande preocupação com a representação do quotidiano, o que é uma marca das literaturas africanas no geral, esse compromisso com o meio em que elas surgem. As realidades africanas têm uma dimensão épica, porque temos grandes transformações a acontecer e isto funciona como inspiração, não só para os jovens mas também para os mais velhos, já que há uma espécie de compulsão criativa no sentido de registar toda essa pulsação que acontece do ponto vista social, cultural, político e a outros níveis. E a nível da prosa, sobretudo do conto, que é uma das grandes marcas da literatura moçambicana – contrariamente ao que muitos pensam, o conto é um género muito difícil – vão aparecendo alguns jovens que mostram qualidade, mas faltará no nosso universo uma crítica jornalística que poderia dar maior visibilidade às obras produzidas. Há uma crítica universitária mas que fica confinada às paredes das Universidades. Não gostaria de ser injusto mas há uns jovens que se destacam: o Clemente Bata, que lançou, há uns anos, o livro de contos “Retratos do Instante” e é universitário. Não quero dizer que para ser bom escritor tem que se ser estudante universitário, mas que o contacto com textos teóricos e com alguma reflexão mais elaborada na Universidade vai permitindo que esses jovens tenham uma maior capacidade e amplitude na forma como produzem e sobretudo um maior domínio das técnicas narrativas. Um dos grandes exemplos é o Lucílio Manjate, que é professor assistente, produz regularmente e tirou recentemente uma novela, “A Legítima Dor de Dona Sebastião”, que é, de certo modo, uma novidade na literatura moçambicana, porque além da preocupação com o quotidiano é uma narrativa marcada por um ritmo policial, com um texto muito bem conseguido em termos do enredo e da técnica narrativa. O Alex Dau, em “Reclusos do Tempo” oscila entre a preocupação com as pequenas ocorrências do quotidiano e as emoções do universo tradicional. Muitos jovens têm uma ligação com o universo tradicional muito residual, mas eles devem desenvolver alguma pesquisa para recuperar esse universo. O Andes Chivengue, no seu livro de contos, “Febre dos Deuses” apresenta umas marcas obsessivas do ponto de vista temático mas sinto que é um escritor com enorme potencial e que se mantiver uma certa constância e alguma profundidade pode ser um autor de referência na nossa literatura. Temos o Hélder Faive, com “Contos de Fuga”, conjunto de contos premiados onde é notória a preocupação com os dramas individuais, familiares e sociais, com forte ironia e uma assinalável qualidade criativa. Esses jovens sentem que nós vivemos numa sociedade em transição e a literatura funciona como um mecanismo de registar os movimentos dessa mesma transição. As obras que eles apresentam mostram que já dominam um conjunto de leituras que lhes permite um certo desembaraço do ponto de vista da técnica, da criatividade e da representação de uma determinada realidade.

JC – Tem chegado até nós, até recentemente com alguma regularidade, a revista electrónica Literatas, do movimento Kuphaluxa. Fale-nos desse movimento e da sua inserção na vida cultural de Moçambique.
FN – Esse movimento, para mim, além de funcionar como um sintoma, no sentido de que há uma ânsia desses jovens em estarem sintonizados com aquilo que é a produção cultural e literária, também é uma iniciativa extremamente meritória e válida. Penso no Nelson Lineu, no Arijuane Japone, no Eduardo Quive, entre outros… São jovens que estão a deixar uma marca, sobretudo porque não estão só a produzir literatura, sendo a poesia o seu registo mais importante, organizam palestras e encontros com convidados que já têm algum percurso criativo ou académico. Eles estão a ser, de facto, uma referência importante na nossa literatura. Claro que há alguns excessos, em alguns deles, o que é apanágio e natural nos jovens, com algum exibicionismo à mistura. O mérito está naquilo que está por detrás desse tipo de iniciativas, que acaba por ter um grande impacto junto dos outros jovens. Como sabe, nós vivemos tempos muito difíceis, em que os jovens vivem uma grande desorientação e uma grande lacuna do ponto de vista daquilo que seriam as referências nobres e estáveis para sua vida. Com a preocupação de se aglutinarem a volta de uma revista e de fazerem tertúlias, tal como aconteceu com a geração da Noémia de Sousa, do José Craveirinha e do Rui Knopfli à volta do “Itinerário”, e com a geração do Ungulani Ba Ka Kossa, o Eduardo White, o Suleimane Cassamo, o Armando Artur, e outros, à volta da Charrua, esses jovens vão certamente deixar uma marca na literatura moçambicana.

…………………….


FRANCISCO NOA é Doutor em Literaturas Africanas em Língua Portuguesa pela Universidade Nova de Lisboa, em Portugal. Ensaísta e professor de Literatura Moçambicana na Universidade Eduardo Mondlane, em Maputo, Moçambique, é também investigador associado na Universidade de Coimbra, em Portugal. Foi professor na Universidade Agostinho Neto, em Angola.
A sua área de pesquisa actual abarca os temas da colonialidade, nacionalidade e transnacionalidade literária, a literatura como conhecimento e o diálogo intercultural no Oceano Índico, a partir da literatura. 
Actualmente é Reitor da Universidade Lúrio (UniLúrio), em Moçambique.

PUBLICAÇÕES:
- Literatura Moçambicana: Memória e Conflito, Imprensa Universitária, 1997.
- A Escrita infinita, Imprensa Universitária, 1998/2003.
- Império, mito e miopia. Moçambique como Invenção Literária, Caminho, 1998/2002.
- A letra, a sombra e água. Ensaios & Dispersões, Texto, 2008.
- Perto do Fragmento, a Totalidade. Olhares sobre a literatura e o mundo, Ndjira, 2014.


sexta-feira, 14 de outubro de 2016

Com o romance "A Trança" autor assume nova fase criativa: O regresso de Manuel Rui aos leitores comuns

                                                                         

Isaquiel Cori

O escritor Manuel Rui (MR), um dos mais prolíferos do país, entregou ao público leitor, no dia 15 de Janeiro de 2014, na UEA, o romance "A Trança", editado pela Mayamba com uma tiragem de 2 mil exemplares.  
Como o autor sinalizou no acto de lançamento, o novo livro representa uma mudança de estilo e de abordagem da sua própria escrita. "Talvez 'A Trança' possa ser encarada como uma mudança de estilo, uma mudança de ideias. Mudar não é triste, nem é triste mudar de ideias. Triste é não ter ideias para mudar".
Escrito numa altura em que se debatia com problemas de saúde, MR decidiu que o seu novo romance "não deveria ser longo nem triste, e trataria da espiritualidade africana, também como metáfora da força do pensamento".
"A Trança", efectivamente, garante uma leitura leve, com uma trama inicialmente simples, aparentemente linear, mas que depois se complexifica quando, no contexto rural do Huambo, a personagem principal se vai adentrando nas questões da espiritualidade das suas origens locais. Com o novo livro MR completa um movimento que começou em "Quitandeira e aviões", seu livro de contos publicado em 2013. Esse movimento consiste numa espécie de regresso ao chão dos seus leitores comuns, depois de, com os romances "Rioseco" e "Travessia por imagem", ter embarcado numa escrita densa, com forte pendor experimentalista e enredos e personagens complexos. Essa sua ambição demiúrgica de realizar uma espécie de romance total, que abarcasse a vida na maior amplitude possível, com recurso a uma linguagem laboratorialmente refinada, foi   aplaudida pela crítica académica no Brasil, Portugal e outros  países. Vários ensaios e dissertações de licenciatura, mestrado e doutoramento foram dedicados a ambos os livros.
Primeiro com "Quitandeiras e aviões" e mais ainda agora com "A Trança", reiteramos, MR regressa às origens, no que à comunicabilidade com o grande público leitor diz respeito. É sintomático que na mesma ocasião tenha sido lançada mais uma edição de "Quem me dera ser onda", (agora com uma tiragem de 10 mil exemplares) porventura o maior best-seller da história da literatura angolana, fazendo parte indelével do imaginário de várias gerações que o leram na infância ou na adolescência. Abrimos aqui um parênteses para apelar à reedição da novela "Crónica de um mujimbo", do mesmo MR, que já não se encontra a venda em lado nenhum mas encerra aspectos de extrema actualidade.
"A Trança" mostra-nos um MR absolutamente senhor dos seus recursos estilísticos, que não se fecha no gozo da sua própria escrita mas entrega-se ao leitor com a maior vontade de o servir. Toda a maturidade artística e pessoal de MR está ao serviço do seu novo romance: no livro só está o que lá devia estar, está-se diante de uma narrativa enxuta, desengordurada, sem digressões desnecessárias, sóbria. Por um momento MR parece ter abandonado a ironia e o humor corrosivo característico da sua obra. O autor alcançou o objectivo de não escrever um livro triste, mas, é preciso que o digamos, "A Trança" é uma narrativa muito séria. Talvez a circunstância de o ter escrito doente explique essa faceta. Em termos da serena maturidade patente na obra, este romance faz-nos lembrar "As palavras", de Jean-Paul Sarte e "O velho e o mar", de Ernest Hemingway.
Mestre em registar e recriar os modos de falar angolanos, MR dá a expressões que habitual e distraidamente usamos ou ouvimos na rua novos ecos, ressonâncias artísticas e estéticas até então insuspeitas. Atentemos ao diálogo de Maria com  o ardina Kasese, logo à saida do aeroporto: "Como te chamas?" / "Kasese" / Não tens um jornal antigo?" / "Antigo mais como então?"
O narrador gruda-se em Maria, conta a história por ela e através dela. Maria, "a dos olhos verdes e tranças de fogo", é uma mulher cosmopolita, viajada, portadora de "várias origens e que regressa à sua origem angolana". Passou a infância e a adolescência na Alemanha, indo viver mais tarde na Holanda. Em Angola pela primeira vez, passa rapidamente por Luanda e vai de autocarro ao Bimbe, no Huambo. Lá, a avó atribui-lhe um novo nome: Citula.
A partir daí MR transporta o leitor para a nova Angola, do pós guerra; não a nova Angola urbana, de asfalto e enormes vultos de cimento armado e vidros reluzentes. É uma Angola bucólica, pacata, que vive em comunhão com o espírito da terra e dos ancestrais. Maria, agora Citula, é iniciada na tradição e na espiritualidade ovimbundu, redescobrindo ela própria, também, as memórias dessa origem, que lhe foram inculcadas na infância. Através do olhar de Citula o narrador oferece ao leitor uma soberba descrição do mundo rural angolano, que alimentarmente se basta a si mesmo, até com fartura, e onde se vive em comunhão com os espíritos.
O final do romance é um hino ao fantástico, à magia e à tradição ancestral. É um mergulhar profundo de MR, e com ele do leitor, naquilo que um dia Henrique Abranches chamou de "realismo animista", referindo-se a uma manifestação literária especificamente angolana, em que se celebra o encontro da modernidade com a ancestralidade e em que os espíritos da terra e dos mortos vêm ao convívio dos vivos, em contraposição ao chamado "realismo fantástico", típico da literatura latino-americana e que tem no colombiano Gabriel Garcia Marquez, com o celebrado romance "Cem anos de solidão", o seu maior epítome.
"A Trança" é, no fundo, o país que Manuel Rui tanto ama e que é um melting pot de saberes, de sabores, de ideias, pensamentos e criação póprias", sintetizou Amélia Mingas, ao fazer a apresentação do livro. "Até que ponto esta obra não tem alguma ligação mais directa ao próprio autor? Ou se o avô que Citula queria ver renascer não seria o país que ela amava e aprendeu a amar através do pai?".
Leia aqui www.isaquielcori.blogspot.com/2016/03/escritor-manuel-rui-escrevo-sobre-o.html entrevista ao escritor, a propósito.

quinta-feira, 13 de outubro de 2016

Entrevista a Gociante Patissa e M’Bangula Katúmua: O país sob o crivo de dois jovens escritores



Isaquiel Cori


Na sequência da leitura dos respectivos livros, “Fátussengóla, o homem do rádio que lançava dúvidas” e “Humanus”, fomos à conversa com Gociante Patissa e M’Bangula Katúmua. Ambos falam das suas origens enquanto autores e da assumpção ou não da identidade benguelense. Entre eles é consensual a ideia do peso marcante que a guerra teve nas suas vidas e, de certo modo, partilham um olhar optimista a respeito do futuro do país.

Pergunta - Que circunstâncias, ou pessoas, os despertaram para a escrita?
Gociante Patissa - A literatura é apenas a extensão de uma herança transmitida no convívio familiar, quase sempre alargada, como permite a proximidade africana. Apesar de ter deixado o meio rural aos sete anos, trouxe dali uma riqueza enorme, quer aquela mais proseada, ouvida de contos, fábulas e canções vividas no campo de que fomos arrancados, quer aquela mais fragmentada, vestida de parábolas e provérbios, o que de resto conseguimos resgatar e irrigar na cidade.
M´Bangula Katúmua - O meu envolvimento com a escrita confunde-se muito com a minha socialização política. Comecei, na verdade, de forma não intencional. Apenas declamava os poemas de Agostinho Neto nas actividades do INAC e OPA. Na altura tinha cerca de 14 anos. Depois continuei na JMPLA e quando fui para a Brigada Jovem de Literatura é que, aos poucos, comecei a ter a real noção do mundo literário. Porém a não intencionalidade do meu envolvimento com a literatura viria a manter-se nos anos seguintes. Ao longo deste meu breve percurso tive a sorte de cruzar com Nuno de Menezes, Raul David. Eles ensinaram-me coisas, cada um a seu jeito. Tenho dificuldade de identificar, com precisão, as circunstâncias que me despertaram para a escrita, porém a minha passagem por estas organizações sociais, particularmente a JMPLA e a Brigada Jovem de Literatura foram fundamentais para a minha forja. Lemos muito dos autores da BJLA, nos livros que Armindo Sardinha, Fernando Andrade, Nando Jordão, Paula Russa, Victor João, Nelo Santos nos davam. Lemos John Bella, Kudijimbi, Limpinho, Frederico Ningi, Costa Andrade, Aires de Almeida Santos, Alda Lara, Agostinho Neto. Seminalmente falando, é daí que viemos …. 
P - Identitariamente vocês assumem-se como escritores de Benguela, com tudo o que de simbólico ou positivo isso implica, ou consideram-se mais escritores voltados para o universal, sem um grande apegamento local?
GP - Benguela como tal para mim nada significa. E sinto que não tem o meu papel significado algum para Benguela, no seu conceito mais territorial e administrativo. Na verdade, a literatura, pelo seu lado formal, pouco me diz, se não for um veículo de contributo para o diálogo intercultural. Eu sou um ocimbundu que tem a missão de contribuir para que (parafraseando o escritor espanhol António Colina) não desapareçamos enquanto entes culturais. A universalidade só me interessa se ela me puder ouvir, se ela se reivindicar como encontro de identidades.
MK - Entendo que a literatura deve ser sempre universal mas, como todo o produto social, deve estar histórica e territorialmente localizada. Esforço-me para estar em linha com este entendimento. Não sou um poeta benguelense. Sou um poeta de Benguela. Não nego as minhas origens e influências, apenas acho que a humanidade é rica demais para nós vivermos em redoma. A arte precisa elevar-se, precisa ser e estar além do espaço ou do lugar em que é criada. Não estou a fazer a apologia à desterritorialização do acto criativo, nem a falar de uma arte pela arte. Há sempre engajamento na minha escrita. Mas o meu grito é um grito daqui para o mundo. São sentimentos e pensamentos daqui que partilho com o mundo. Um excessivo apegamento ao local pode levar-nos para aquilo a que chamo de “autoctonismo artístico”. Que é algo muito perigoso, pois retira a vitalidade da arte à medida que lhe retira toda a capacidade de dialogar com outros povos e culturas. 
P -  O que é que de mais significativo vocês retêm da herança literário-cultural de Benguela?
GP - Acho o espaço do livro bastante redutor e reduzido, e seria bastante injusto achar que um escritor em particular representasse Benguela. Há muito mais para lá do asfalto e do mar, ao passo que a literatura, colhida pela bitola de Gutenberg, pouco desce do prédio. Eu sou o povo, é nele que me acho, na sua riqueza linguística, na sua tradição oral que tanta lassidão parece gerar para os holofotes. É esta a minha missão. O livro é um complemento.
MK - Esta é a pergunta a que nós, os escritores de Benguela, teremos de responder sempre? Parece que sim! E ainda bem. Porque demonstra que temos responsabilidades. Lembra-nos o legado recebido de Alda Lara, Aires de Almeida Santos, Pepetela, Raúl David e outros. Deste ponto de vista, penso que é a preocupação com as nossas gentes e os nossos lugares. Não só poetas mas, sobretudo estes, sempre tiveram esta preocupação de eternizar os lugares e pessoas. Isto está patente no famoso poema “Meu amor da rua onze”, de Aires de Almeida Santos.
P – Como foi que o Patissa compôs o “Fátussengóla…”: juntou todos os contos que tinha ou seleccionou-os previamente?
GP - É óbvio que um escritor está sempre a escrever. No meu caso, alguns contos evoluem das crónicas que componho para o blog Angodebates, outros nascem como tal. E quando noto que há uma quantidade razoável, intensifico o trabalho de laboratório, visando excluir os menos conseguidos e aprimorar os que ficam. Dois dos contos não puderam entrar no livro “A Última Ouvinte” (UEA, 2010), com o qual me estreei na prosa.
P – “Fátusséngola…” ganharia muito se não incluísse algumas peças, reduzindo-o à menor dimensão e à melhor excelência possível. Quer comentar?
GP - É difícil ter-se uma percepção a este nível quando nos colocamos no papel de criadores apenas, ainda mais por se tratar de colectânea de contos escritos entre 2001-2014. Na verdade, nunca sei como o trabalho será recebido, daí ser importante (mau grado ser escassa) a oportunidade de ser estudado e aprender com as sugestões que advierem.
P – As figuras que você retrata nas estórias são ou foram reais? Por exemplo, o Fátussengóla existiu mesmo?
GP - Fátussengóla existiu, mas o que descrevo é ficção. A verdadeira história é muito amarga, não sei contá-la. Foi um mágico de levantar pessoas com os dentes pelo guarda-cinto, a título de exemplo, juntando prestígio ao ganha-pão. Mas com o apertar da penúria alimentar, no início da década 1990, ele enveredaria para o assalto a residências, perdendo a vida apedrejado. Apesar de não ter participado na barbaridade, tendo em conta até que eu era muito pequeno, carreguei sempre uma espécie de culpa indirecta, sendo este conto e título do livro uma espécie de redimir o bairro Santa Cruz, no Lobito.
P – Vocês nasceram em plena guerra. A guerra terá moldado, de alguma forma, a vossa visão da vida?
MK - Sem dúvidas. A minha geração tem de carregar esse trauma e essa responsabilidade. Os horrores da guerra nos privaram de muitas coisas mas nos fizeram mais fortes e mais preparados para a vida prática. Temos responsabilidades acrescidas; precisamos denunciar a loucura que é a guerra. Hoje precisamos dialogar mais, religar laços, estabelecer pontes, humanizar…é para esse sentido que, em parte, aponta o título do meu livro, Humanus.
GP - Acho que ganhei desde muito cedo a certeza de que a guerra, qualquer que seja ela, é uma estupidez. Uma criança tem sete anos e já sabe que não se pode comportar mal com a tia porque é nas costas desta que se há-de acoitar quando surgirem os ataques da guerrilha, já que a mãe tem uma bebé para cuidar. Tinha pouco menos de cinco anos quando a minha mãe levou com uma bala da guerrilha na bochecha, comigo às costas, numa madrugada de frio orvalho de cacimbo, que bem se podia ter alojado na minha cabeça e vos poupar destes escritos, não fosse a péssima pontaria do atirador. Quem disparou? É da mesma etnia, da mesma região, quiçá do mesmo sangue. O fim da guerra dá-se comigo envolvido no sector da sociedade civil, que muito contribuiu para a consistência da consciência cidadã. A minha escrita tem inevitavelmente uma abordagem, não apenas de reivindicação identitária, mas também de algum activismo pela vertente do exercício da cidadania.
P – O M’Bangula já tinha os poemas todos prontos, juntando-os apenas, ou escreveu-os como projecto de livro? 
MK - Como disse antes, para mim o acto de escrever é sempre um acto involuntário. Os cinquenta poemas constantes do livro Humanus foram escritos, na sua maioria, entre 2012 e 2013. Estava a juntá-los para um projecto, a minha de trilogia poética Sexorcismo (2008); Sexonância (2011). Contava publicá-lo com o título de Sexonetos mas, quando o meu amigo Gociante Patissa falou-me do Projecto Ler Angola, nada mais fiz senão dar-lhe um título que não assustasse o júri.  
P - Porque razão optou pela forma tradicional do soneto, ademais com os versos rimados, quando praticamente nenhum dos seus coetâneos o faz?
MK -  Isto sim! Foi intencional. Foi um desafio que me impus para dar corpo à minha proposta filosófica. A trilogia poética, como referi, devia culminar com a publicação de sonetos. Pois cada um dos três livros tem uma mensagem própria. E essa particularidade estende-se à forma. A quantidade, cinquenta poemas, partiu de um amigo que me falou na ideia de “meia centena”, gostei e avancei.
P – Em algum momento lhe ocorreu que estava a sacrificar o conteúdo à forma?
MK - Sim, várias vezes. Mas fui encontrando sempre formas alternativas.
P – Como é que vocês encaram o país e o seu futuro?
GP - O recurso ao passado é feito de maneira selectiva, dada a responsabilidade que recai sobre os ombros de qualquer angolano. Por muito que ficcionemos, ficcionamos sobre uma realidade objectiva. Não perco de vista o equilíbrio necessário à manipulação das dimensões cultural, social e estética. No entanto, acredito que lidar com o passado, sem deixar de ser uma missão premente, é ao mesmo tempo passível de coarctar, ainda que inconscientemente, o devaneio criativo de qualquer iniciativa que tenha por base de trabalho o realismo a partir da década de 1960. Pessoalmente, no meio rural, onde vivi até aos sete anos, testemunhei actos da mais feroz barbárie. Já no centro urbano, viria a testemunhar outros. São memórias frescas, voláteis mesmo. O tempo saberá o que fazer. Quanto ao futuro do país, já tive mais certezas.

MK - Seguramente. Vejo o país com os olhos de quem já chorou, passou fome e viu pessoas a morrer. Amo mais o meu país, amo mais a paz. Sei quanto valem os nossos bens públicos. Sinto-me mais militante dessa nova Angola. Temos tudo para dar certo. Aprendemos com a guerra, estamos a corrigir os nossos erros do passado. Acredito que é necessário apenas continuar com o trabalho em curso de inclusão social, diminuição das desigualdades sociais. Promover a nossa auto sustentação alimentar, a industrialização do país. O resto vamos todos fazendo, com educação, disciplina e trabalho.

Gociante Patissa e M’Bangula Katúmua: Dois projectos literários oriundos de Benguela




Isaquiel Cori


Os escritores Gociante Patissa e M’Bangula Katúmua partilham, ao menos, três coisas: são naturais de Benguela, nasceram no período pós-colonial e a existência de ambos decorreu em grande parte nos dias e anos tumultuosos da guerra de má memória. Os livros “Fátussengóla, o homem do rádio que espalhava dúvidas”, do primeiro, e “Humanus”, do segundo, aparecem juntos na colecção Novos Autores, editada pelo Grecima, a par de nove de outros tantos autores.
“Fátussengóla, o homem do rádio que espalhava dúvidas” é uma colectânea de 14 contos ambientados em localidades diversas da província de Benguela, do interior ao litoral, que resgatam da memória da infância e adolescência do autor toda uma galeria de personagens e situações marcantes, seja pelo lado do insólito ou dos afectos.
Gociante Patissa na verdade não é um autor de primeira viagem. Publicou em 2008 “Consulado do vazio”, poesia, em 2010 “A última ouvinte”, contos, em 2013 “Não tem pernas o tempo”, novela, e em 2014 “Guardanapo de papel”, poesia.
                                                             

Trata-se de um autor empenhado em apurar a sua própria voz, notando-se na sua escrita a fuga à facilidade e o evitar dos trilhos há muito batidos. Atente-se ao modo de construção deste parágrafo do conto “Minha mãe é hortelã”, em que além das imagens profundamente originais o leitor pode à vontade inverter a ordem com que as frases se apresentam sem afectar, contudo, a coerência do discurso narrativo:
“Ele, que não era de andar por aí a distribuir socos e pontapés, abraçou tal via. Era homem já quase feito, de caroço no mamilo e uma barba que não se lhe podia confundir com simples pêlos de calor do funji. Mesmo a catinga do sovaco dele anunciava os ingredientes prontos para dar bebés. Quem lhe provasse o sabor da surra já não voltava a gozar.”
Retenha-se esta outra preciosidade, a abertura do conto “No reino dos rascunhos”: “O velho estava velho, muito velho, logo doente. Para ser confirmado inerte, só lhe faltava parar o fôlego. Vendo bem, aquilo até podia ter outro nome, respirar é que não era.”
Como não há bela sem senão, a escrita de Patissa às vezes denota um excessivo “cuidado” em conformar-se às normas, às regras estabelecidas do “bem falar português”, sacrificando a emergência daquilo que podia ser considerada a sua própria linguagem, escorada nos interstícios mais íntimos do seu substracto cultural benguelense. “Havia um cão no quintal em que em tempos fui morar…” in “A estrela que não voltei a ter”. “… só não tendo o dono do alheio sucedido graças ao gradeamento interior aplicado poucas semanas antes da investida”, in “Gestão de vazios”.
Patissa, note-se, neste mesmo livro demonstra um grande domínio da sócio-culturalidade umbundo, fazendo recurso a palavras e provérbios da região.
Autor de imenso potencial criativo, Patissa tem o dom do olhar, da captação das singularidades aparentemente invisíveis e insuspeitas das situações e das personalidades.
O seu conto mais significativo é o que dá título ao livro: “Fátussengóla, o homem do rádio que espalhava dúvidas”. É uma narrativa digna de figurar na mais selecta das antologias de literatura angolana. É a biografia de uma personagem tão singular na ficção como na vida. (Aliás, “… a profissão de biografista independente faliu, como hoje vemos”). Fátussengóla, de nome verdadeiro Virgulino Kaendangongo, “que na língua umbundo significa eterno sofredor”, é um personagem da estirpe de um Mestre Tamoda de Uanhenga Xitu, com o qual partilha o estatuto de orador, as poses e o gosto pela mais gratuita verborreia. Fátussengóla ganha imediatamente a simpatia e a compaixão do leitor pela forma soberba como o autor o apresenta, seja descritivamente, seja pelo desdobrar dos diálogos. E o final da estória encerra tanta preciosidade como o tesouro que nele é revelado.

Em causa o ser humano

Humanus, de Mbangula Katúmua, é um conjunto de cinquenta poemas sóbrios, reflexivos, escritos na forma de sonetos, essa maneira tão antiga e clássica de poemar (duas quadras seguidas de dois tercetos). E Katúmua vai tão longe no seu exercício de preciosismo formal que todos os seus poemas, rigorosamente, são rimados.
“Das velhas profecias que nos liam outrora / Agora veio um velho cancioneiro hegeliano / Uma espécie de novo cardápio do contra / Que encerra teorias de combate miliciano // O inimigo agora é outro / São os potes de luz / O nosso mastro / É a nossa própria voz // Eis que vos apelo / Gritemos bem alto / Até que nos solte o pêlo // Sobre estas laudas ninguém dança / Nem mesmo no dia em que comemorarmos / A nossa morte sobre a ponta de uma lança”, in “15”.
Os poemas de “Humanus” não devem ser lidos uma única vez. Nem, necessariamente, na ordem proposta pelo autor. A uma primeira leitura o formalismo preciosista e até mesmo academicista dos poemas ressoa a algo decadente, perfeitamente démodé. Mas tão logo nos concentramos mais na leitura damo-nos conta que, afinal, a fórmula rígida adoptada pelo autor contém autênticos vulcões de emoções e sentimentos a respeito do mundo e da vida.
                                                                 

“A noite não chega a tempo / De contar os sonhos das gentes / Enquanto isso, ouvem-se vozes do topo / Para anestesiar os fétidos corpos delirantes // Vozes cansadas, sinfonias de morte / Ruas estreitas, passos apressados / Na paisagem agreste / Sonhos condenados // Na desnuda avenida daqui / Que ferozmente colapsa / Como os discursos do Maquis // Mas, quem ouviu não esqueceu / Os caminhos, a dor que perpassa / As entranhas da pátria, e o dia que nasceu”, in “28”.
O sujeito poético em vários poemas de “Humanus” parece desapegado da vida, situando-se numa colina qualquer a partir da qual observa a cena humana. E se fala de coisas que já viveu, recorda outras que poderia ter vivido. No limbo entre o sonho e a realidade, entre o celeste e o terrestre, ele confessa-se: “Suspendo-me nos píncaros dos sonhos / Donde me chega homofóbica melodia / E vejo no meu irmão um marciano”.
Ao contrário do seu coetâneo Gociante Patissa, em que as marcas da sua “benguelensidade” estão em todos os quadrantes dos seus textos (na geografia, na linguagem e na filosofia proverbial e até na temporalidade), o poeta de “Humanus” é um ser dilacerado na sua subjectividade que se dirige ao homem comum, desarvorado do seu lugar e até do seu tempo.
“Ainda que farto de ti, ó ser distante / És o caminho que busco e que sigo / Longe da consumição do inimigo / Contemplo de perto luz reluzente // Nos pés fartos de caminhar / Tenho feridas e bolhas de água / Para de todos saciar essa inócua / Sede de infinito clarear // Caminhantes de uma terra longínqua / Somos todos o húmus desta terra / De ventre esviscerado // Ninguém sabe se quando enterra / Uma sôfrega lágrima inócua / Constrói um destino obliterado”.

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M’Bangula Katúmua (pseudónimo literário de Martinho Bangula Katúmua) nasceu em Benguela em 1985. É licenciado e mestre em sociologia. Actualmente é secretário provincial da Brigada Jovem de Literatura de Benguela e docente universitário.
Daniel Gociante Patissa nasceu na comuna de Monte Belo, município do Bocoio, provincia de Benguela, em Dezembro de 1978. É licenciado em linguística, especialidade de inglês, pela Universidade Katiavala Bwila.