segunda-feira, 11 de setembro de 2017

PRÉ-PUBLICAÇÃO: ROMANCE "DIAS DA NOSSA VIDA", de ISAQUIEL CORI

Pois é, caros internautas, aqui vai, em jeito de pré-publicação, o capítulo inicial do meu romance inédito "Dias da Nossa Vida". Se tudo correr bem, o livro sai a público no primeiro trimestre de 2018. Creiam, amigos: nunca foi tão difícil publicar um livro em Angola! As editoras, descapitalizadas, propõem aos autores que batam as portas das empresas em busca de patrocínio; e as empresas, a funcionar num ambiente de imensas dificuldades, não têm como atender positivamente aos pedidos de patrocínio. Aos autores, aqueles em que o acto de escrever significa um sopro de vida, um gesto de liberdade e de afirmação do ser criativo, só resta a opção de escrever para a gaveta. Amanhã talvez as coisas melhorem. Amanhã as coisas sempre melhoram.


                                                           
CAPÍTULO 1




         Reinaldo Bartolomeu vestiu o fato olímpico de sua eleição, o azul de listas vermelhas, calçou as sapatilhas e pôs-se a aquecer aos saltos no quintal. Parecia um coelho dos bonecos animados.
        - Filha, vou dar a minha corridinha matinal.
        - Está bem, querido - gritou a esposa, Rebeca, da cozinha.
        Com o corpo quente e já a transpirar, Reinaldo abriu o portão metálico do quintal e a rua atirou-lhe, imediatamente, à cara a luz clara da manhã. Viu-se obrigado a fechar os olhos. Era uma manhã potente, que prometia um sol abrasador, ao contrário dos últimos dias, em que as manhãs cinzentas e a atmosfera pesada envolviam tudo e todos num abraço deprimente. Deu uns passos às cegas e quando voltou a abrir os olhos foi brindado com uma visão digna de um quadro surrealista: dois cães estavam colados pelo sexo e cada um puxava para o seu lado, na tentativa de se desprender. Eram cães rafeiros, bonitos e limpos. “Mas que porra!”, gritou para si mesmo. “Logo dois cães a se foderem mal um gajo sai para a rua?”
        Uma sensação de mau presságio, misturada com um medo repentino e visceral, obscureceu a mente de Reinaldo e arrepiou-o todo. “Será que vou ter um dia de cão, meu Deus?”
        Ameaçou pontapear o casal de canídeos e estes, assustados, acabaram por se descolar e se afastar, visivelmente exaustos e envergonhados. “Será que estes animais gozam o sexo como nós, humanos? Mas que raio, assim, sem privacidade nenhuma, na rua, à luz do dia, não acredito que tenham prazer no sexo. São cães! Por isso e por outras é que são cães!”
        Lá Reinaldo Bartolomeu deu as duas voltas habituais pela rua, numa corrida rápida, cheio de genica. Quando finalmente entrou em casa e se colocou nu debaixo do chuveiro, o corpo todo molhado de suor, ainda voltou a ter uma visão mental dos cães em pleno sexo. Mas acabou por entregar-se  à água fria. O choque térmico despertou-lhe todo, pôs-lhe a mente e os sentidos em disparada, com os pensamentos a direccionarem-se logo para o trabalho. Lembrou-se das palavras marteladas e cem vezes repetidas do chefe Admirável Redondo: “Muito há a fazer!”.
        Ao contrário de outros sectores do funcionalismo público, em que os detentores de cargos de chefia preferem não fazer ondas, deixando-se estar absolutamente quietos para não desagradarem o superior hierárquico e porem assim, eventualmente, em causa o próprio cargo, nos Serviço de Informação exigia-se que se fizesse sempre alguma coisa. Era impossível ter o conhecimento e o controlo da situação, de qualquer situação, ficando apenas parado. Apenas parado porque, efectivamente, por vezes, e não poucas vezes, apreendia-se melhor as várias nuances da situação ficando mesmo parado, imóvel, na mais completa passividade. Mas agora Admirável Redondo sinalizava que não bastava ter conhecimento do que se passava à superfície dos dias. “É preciso provocar os factos e colocar os adversários na defensiva ou a denunciarem-se a todo o momento. É assim: como num jogo de xadrez, é quase impossível o jogador aplicar na plenitude a estratégia previamente adoptada; os seus movimentos ofensivos confrontam-se com os defensivos e contra-ofensivos do adversário, obrigando-o a adaptar-se permanentemente, a ser criativo”, dizia ele. Reinaldo enxugou-se, vestiu um velho fato escuro e juntou-se à mulher na cozinha. O cheiro a café atraiu-o imediatamente para a cafeteira no fogão.
        - Come primeiro, toma o café depois, querido.
        - Está bem.
        Sentou-se à mesa e fez um esforço para comer. Era um hábito, ou melhor, uma falta de hábito antiga. No tempo da guerra chegara a dispensar completamente o matabicho, limitando-se a tomar um café amargo logo de manhã, para voltar a meter algo no estômago só ao almoço. Pagou caro por isso. Nos últimos anos foi sendo apoquentado por dores de estômago que chegavam a deixá-lo quase inanimado. Teve de viajar a Cuba, onde um médico impôs-lhe uma dieta centrada no pequeno almoço. Desde então as dores diminuíram. A mulher tomou a si a responsabilidade de garantir que tomasse sempre o matabicho. Era como ela dizia: “para o bem de toda a família”.
        - Está aqui o jornal de hoje. O motorista passou enquanto te banhavas.
        Há dois anos o principal jornal do país chegava à província todas as manhãs, no primeiro voo da companhia de bandeira. E Reinaldo era das primeiras pessoas a ter acesso ao mesmo. Agarrou o jornal e foi passando os olhos página a página. Ler os jornais, sobretudo o jornal oficial, era uma obrigação profissional. Os jornais privados, quase todos semanários, foram impedidos de circular na província, na sequência de uma novela caluniosa a respeito da vida particular de Sua Excelência o Senhor Governador. Verificara-se depois que a campanha fora montada e financiada a partir de Luanda por um velho inimigo de estimação do Governador, colocado em posições cimeiras das estruturas partidárias e governamentais. A questão de se saber da verdade, do mérito ou não das acusações, fora habilmente desviada para a deslealdade do dirigente em causa. Antes que ambos se autodestruíssem, arrastando consigo, aos pedaços, a boa imagem do sistema político, representantes do núcleo duro do poder no país chamaram-nos e obrigaram-nos a fazer as pazes: em nome dos “superiores interesses do Partido, da Nação e da Paz”. Um círculo muito restrito da província, em que se situava Reinaldo, por dever de ofício, continuava a receber os principais semanários da capital do país.
        Mais do que as notícias em si Reinaldo procurava extrair do diário oficial os sinais, as tendências. Era-lhe importante sondar a linguagem, descodificar o grafismo, ler as fotos e as legendas. As páginas de publicidade, muitas vezes, acabavam por ser mais significativas que as notícias, diziam mais das dinâmicas políticas, sociais e económicas e tornavam mesmo o jornal indispensável para todo e qualquer funcionário público. 
        Não menos importantes para Reinaldo eram as páginas de necrologia. Ele que conhecia muito bem a elite social, económica e cultural da capital do país, onde se movera ao longo de quase toda a vida, deparava-se frequentemente, naquelas páginas, com o rosto de alguém que partira para o outro mundo. Não tendo medo da morte, respeitava-a, porque punha todos de sentido e tudo em perspectiva: estamos todos de passagem, não importa a riqueza ou o poder que se tenha. Por isso valorizava imenso a vida, essa carruagem colorida e cheia de sonoridades que ninguém sabe quando e onde vai parar. 
        Enquanto lia, Reinaldo Bartolomeu esticava mecanicamente o braço para alcançar um pedaço de pão, uma fruta ou outro alimento qualquer. Mastigava devagar, completamente entregue às escolhas nutricionais da mulher.
        - Algo de novo? Como está o país?
        - Tudo velho, filha. Pelo menos, de momento.
        - Como assim, de momento?
        - O importante é absorver as notícias. No momento certo a mente devolve-nos o que absorvemos na forma de sínteses informativas, saberes intuitivos.
        - É o teu trabalho, sei, mas…
        - Papá, papá, quando eu crescer também quero ser bufo!
        Vindo do quarto a correr, portador de uma energia inusitada para quem acabava de saltar da cama depois do sono nocturno, Andrezinho, o filho caçula, irrompeu na cozinha com a soberania imperial das crianças mimadas.
        - Eh, pá! – Reinaldo esticou-se todo, como uma cobra ao ataque, deixou o jornal escorregar para o chão, as folhas soltas espalhadas. – Anda cá, Andrezinho, o que foi que você disse?
        - Quando eu crescer quero ser bufo, papá! – reafirmou.
        - Você sabe o que é isso?
        - Sim, quero ser assim como o papá e o avô. E também como o vizinho Manecas e a mulher dele. E como o tio Caldeira e a mana Domingas. Ah, e a prima Deizi e o marido dela…
        Reinaldo respirou fundo. Outra maka mais! Andrezinho tinha sete anos. Era muito espevitado mas acabava de ultrapassar todas as marcas. 
        - Quem anda a te dizer essas coisas? Vá, diga!
        - Ninguém, papá, eu sei mesmo sozinho. Ninguém me disse.
        Nunca se sabia. Tinha de ficar mais atento, abrir uma nova frente de vigilância, agora tendo como alvo o próprio filho. Era uma tarefa a não delegar a ninguém. Ele próprio a levaria a cabo. O inimigo estava em todo o lado, infiltrava-se em todos os lugares.
        - Trata mas é de estudar. Estudar é o teu trabalho. E vais ter de me dizer com quem andas a conversar.
        - O que é isso, Reinaldo, deixa o miúdo em paz. Ele é inocente.
        - Até pode ser inocente, mulher. Os inocentes são, precisamente, o maior risco. Podem ser utilizados sem sequer perceberem.
        - Ora, o Andrezinho acompanha as conversas aqui em casa e nos lugares onde vamos. Ele é apenas uma criança. Não o ponhas nesse mundo sombrio em que te moves.
        - Ai é? Vamos ver. Se cheguei até onde estou é porque nunca deixei uma ponta solta.
        - Vai para o quarto de banho, já.
        Andrezinho foi para o quarto de banho, todo contrariado. Reinaldo pensou seriamente na família, nas amizades e na vizinhança. Na sua ascendência e nas suas relações passadas e actuais, era bem verdade, tudo tresandava a bufaria. Na família havia uma verdadeira dinastia de bufos. Até onde ia o seu conhecimento um antepassado seu fizera parte do círculo de confiança da rainha Njinga Mbande, encarregando-se da sua segurança pessoal. A informação fora-lhe dada, inadvertidamente, por um velho tio na noite triste e festiva de um óbito em Malange. Quisera aprofundar os detalhes, saber mais de tão ilustre antepassado, mas tanto o excesso de trabalho como a morte do velho cortaram tal possibilidade. Foi aos arquivos, aos livros de História disponíveis, mas não encontrara rastos do parente. O que era compreensível, pois a narrativa da história de Angola pré-colonial é, fundamentalmente, a gesta de reis, rainhas e grandes chefes tribais.  
        As informações a respeito do tempo colonial eram mais profusas e claras. Durante a luta anti-colonial teve parentes seus a operarem, ao mesmo tempo, como agentes da PIDE e das forças clandestinas do MPLA. Essa condição dúbia, de prestadores de serviços valiosos tanto a um como ao outro lado da barricada, colocou alguns desses parentes em posição privilegiada por altura da eclosão da independência nacional. Não por acaso, um dos mais altos dirigentes da antiga DISA era um tio seu, primo da mãe. Igualmente não por acaso, um outro tio, irmão da mãe, também da DISA, estava entre os mortos do 27 de Maio de 1977. Era mesmo como o Andrezinho dissera: os seus parentes mais notáveis faziam parte das várias estruturas dos serviços secretos. Alguns sobrinhos já estavam a trilhar o mesmo caminho: além de um bom emprego, era uma questão cultural incrustada no sangue.
        - Precisamos ficar atentos ao Andrezinho.
        - Vai, deixa o miúdo ser criança. Não o metas nas tuas obsessões.
        - Vamos ver no que é que isso vai dar, filha. Estou muito preocupado.







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