CAPÍTULO 1
Reinaldo Bartolomeu vestiu o fato olímpico de
sua eleição, o azul de listas vermelhas, calçou as sapatilhas e pôs-se a
aquecer aos saltos no quintal. Parecia um coelho dos bonecos animados.
- Filha, vou dar a minha
corridinha matinal.
- Está bem, querido - gritou
a esposa, Rebeca, da cozinha.
Com o corpo quente e já a
transpirar, Reinaldo abriu o portão metálico do quintal e a rua atirou-lhe,
imediatamente, à cara a luz clara da manhã. Viu-se obrigado a fechar os olhos.
Era uma manhã potente, que prometia um sol abrasador, ao contrário dos últimos
dias, em que as manhãs cinzentas e a atmosfera pesada envolviam tudo e todos
num abraço deprimente. Deu uns passos às cegas e quando voltou a abrir os olhos
foi brindado com uma visão digna de um quadro surrealista: dois cães estavam
colados pelo sexo e cada um puxava para o seu lado, na tentativa de se
desprender. Eram cães rafeiros, bonitos e limpos. “Mas que porra!”, gritou para
si mesmo. “Logo dois cães a se foderem mal um gajo sai para a rua?”
Uma sensação de mau
presságio, misturada com um medo repentino e visceral, obscureceu a mente de
Reinaldo e arrepiou-o todo. “Será que vou ter um dia de cão, meu Deus?”
Ameaçou pontapear o casal de
canídeos e estes, assustados, acabaram por se descolar e se afastar,
visivelmente exaustos e envergonhados. “Será que estes animais gozam o sexo
como nós, humanos? Mas que raio, assim, sem privacidade nenhuma, na rua, à luz
do dia, não acredito que tenham prazer no sexo. São cães! Por isso e por outras
é que são cães!”
Lá Reinaldo Bartolomeu deu as
duas voltas habituais pela rua, numa corrida rápida, cheio de genica. Quando
finalmente entrou em casa e se colocou nu debaixo do chuveiro, o corpo todo
molhado de suor, ainda voltou a ter uma visão mental dos cães em pleno sexo.
Mas acabou por entregar-se à água fria.
O choque térmico despertou-lhe todo, pôs-lhe a mente e os sentidos em
disparada, com os pensamentos a direccionarem-se logo para o trabalho.
Lembrou-se das palavras marteladas e cem vezes repetidas do chefe Admirável
Redondo: “Muito há a fazer!”.
Ao contrário de outros sectores do
funcionalismo público, em que os detentores de cargos de chefia preferem não
fazer ondas, deixando-se estar absolutamente quietos para não desagradarem o
superior hierárquico e porem assim, eventualmente, em causa o próprio cargo, nos
Serviço de Informação exigia-se que se fizesse sempre alguma coisa. Era
impossível ter o conhecimento e o controlo da situação, de qualquer situação,
ficando apenas parado. Apenas parado porque,
efectivamente, por vezes, e não poucas vezes, apreendia-se melhor as várias
nuances da situação ficando mesmo parado, imóvel, na mais completa passividade.
Mas agora Admirável Redondo sinalizava que não bastava ter conhecimento do que
se passava à superfície dos dias. “É preciso provocar os factos e colocar os
adversários na defensiva ou a denunciarem-se a todo o momento. É assim: como
num jogo de xadrez, é quase impossível o jogador aplicar na plenitude a
estratégia previamente adoptada; os seus movimentos ofensivos confrontam-se com
os defensivos e contra-ofensivos do adversário, obrigando-o a adaptar-se
permanentemente, a ser criativo”, dizia ele. Reinaldo enxugou-se, vestiu um
velho fato escuro e juntou-se à mulher na cozinha. O cheiro a café atraiu-o
imediatamente para a cafeteira no fogão.
- Come primeiro, toma o café
depois, querido.
- Está bem.
Sentou-se à mesa e fez um
esforço para comer. Era um hábito, ou melhor, uma falta de hábito antiga. No
tempo da guerra chegara a dispensar completamente o matabicho, limitando-se a
tomar um café amargo logo de manhã, para voltar a meter algo no estômago só ao
almoço. Pagou caro por isso. Nos últimos anos foi sendo apoquentado por dores
de estômago que chegavam a deixá-lo quase inanimado. Teve de viajar a Cuba,
onde um médico impôs-lhe uma dieta centrada no pequeno almoço. Desde então as
dores diminuíram. A mulher tomou a si a responsabilidade de garantir que
tomasse sempre o matabicho. Era como ela dizia: “para o bem de toda a família”.
- Está aqui o jornal de hoje.
O motorista passou enquanto te banhavas.
Há dois anos o principal jornal
do país chegava à província todas as manhãs, no primeiro voo da companhia de
bandeira. E Reinaldo era das primeiras pessoas a ter acesso ao mesmo. Agarrou o
jornal e foi passando os olhos página a página. Ler os jornais, sobretudo o
jornal oficial, era uma obrigação profissional. Os jornais privados, quase
todos semanários, foram impedidos de circular na província, na sequência de uma
novela caluniosa a respeito da vida particular de Sua Excelência o Senhor
Governador. Verificara-se depois que a campanha fora montada e financiada a
partir de Luanda por um velho inimigo de estimação do Governador, colocado em
posições cimeiras das estruturas partidárias e governamentais. A questão de se
saber da verdade, do mérito ou não das acusações, fora habilmente desviada para
a deslealdade do dirigente em causa. Antes que ambos se autodestruíssem,
arrastando consigo, aos pedaços, a boa imagem do sistema político,
representantes do núcleo duro do poder no país chamaram-nos e obrigaram-nos a
fazer as pazes: em nome dos “superiores interesses do Partido, da Nação e da
Paz”. Um círculo muito restrito da província, em que se situava Reinaldo, por
dever de ofício, continuava a receber os principais semanários da capital do
país.
Mais do que as notícias em si
Reinaldo procurava extrair do diário oficial os sinais, as tendências. Era-lhe
importante sondar a linguagem, descodificar o grafismo, ler as fotos e as
legendas. As páginas de publicidade, muitas vezes, acabavam por ser mais
significativas que as notícias, diziam mais das dinâmicas políticas, sociais e
económicas e tornavam mesmo o jornal indispensável para todo e qualquer
funcionário público.
Não menos importantes para
Reinaldo eram as páginas de necrologia. Ele que conhecia muito bem a elite
social, económica e cultural da capital do país, onde se movera ao longo de
quase toda a vida, deparava-se frequentemente, naquelas páginas, com o rosto de
alguém que partira para o outro mundo. Não tendo medo da morte, respeitava-a,
porque punha todos de sentido e tudo em perspectiva: estamos todos de passagem,
não importa a riqueza ou o poder que se tenha. Por isso valorizava imenso a
vida, essa carruagem colorida e cheia de sonoridades que ninguém sabe quando e
onde vai parar.
Enquanto lia, Reinaldo Bartolomeu
esticava mecanicamente o braço para alcançar um pedaço de pão, uma fruta ou outro
alimento qualquer. Mastigava devagar, completamente entregue às escolhas
nutricionais da mulher.
- Algo de novo? Como está o
país?
- Tudo velho, filha. Pelo
menos, de momento.
- Como assim, de momento?
- O importante é absorver as
notícias. No momento certo a mente devolve-nos o que absorvemos na forma de
sínteses informativas, saberes intuitivos.
- É o teu trabalho, sei, mas…
- Papá, papá, quando eu crescer também
quero ser bufo!
Vindo do quarto a correr,
portador de uma energia inusitada para quem acabava de saltar da cama depois do
sono nocturno, Andrezinho, o filho caçula, irrompeu na cozinha com a soberania
imperial das crianças mimadas.
- Eh, pá! – Reinaldo
esticou-se todo, como uma cobra ao ataque, deixou o jornal escorregar para o
chão, as folhas soltas espalhadas. – Anda cá, Andrezinho, o que foi que você
disse?
- Quando eu crescer quero ser
bufo, papá! – reafirmou.
- Você sabe o que é isso?
- Sim, quero ser assim como o
papá e o avô. E também como o vizinho Manecas e a mulher dele. E como o tio
Caldeira e a mana Domingas. Ah, e a prima Deizi e o marido dela…
Reinaldo respirou fundo.
Outra maka mais! Andrezinho tinha sete anos. Era muito espevitado mas acabava
de ultrapassar todas as marcas.
- Quem anda a te dizer essas
coisas? Vá, diga!
- Ninguém, papá, eu sei mesmo
sozinho. Ninguém me disse.
Nunca se sabia. Tinha de
ficar mais atento, abrir uma nova frente de vigilância, agora tendo como alvo o
próprio filho. Era uma tarefa a não delegar a ninguém. Ele próprio a levaria a
cabo. O inimigo estava em todo o lado, infiltrava-se em todos os lugares.
- Trata mas é de estudar.
Estudar é o teu trabalho. E vais ter de me dizer com quem andas a conversar.
- O que é isso, Reinaldo,
deixa o miúdo em paz. Ele é inocente.
- Até pode ser inocente,
mulher. Os inocentes são, precisamente, o maior risco. Podem ser utilizados sem
sequer perceberem.
- Ora, o Andrezinho acompanha
as conversas aqui em casa e nos lugares onde vamos. Ele é apenas uma criança.
Não o ponhas nesse mundo sombrio em que te moves.
- Ai é? Vamos ver. Se cheguei
até onde estou é porque nunca deixei uma ponta solta.
- Vai para o quarto de banho,
já.
Andrezinho foi para o quarto
de banho, todo contrariado. Reinaldo pensou seriamente na família, nas amizades
e na vizinhança. Na sua ascendência e nas suas relações passadas e actuais, era
bem verdade, tudo tresandava a bufaria. Na família havia uma verdadeira
dinastia de bufos. Até onde ia o seu conhecimento um antepassado seu fizera
parte do círculo de confiança da rainha Njinga Mbande, encarregando-se da sua
segurança pessoal. A informação fora-lhe dada, inadvertidamente, por um velho
tio na noite triste e festiva de um óbito em Malange. Quisera aprofundar os
detalhes, saber mais de tão ilustre antepassado, mas tanto o excesso de
trabalho como a morte do velho cortaram tal possibilidade. Foi aos arquivos,
aos livros de História disponíveis, mas não encontrara rastos do parente. O que
era compreensível, pois a narrativa da história de Angola pré-colonial é,
fundamentalmente, a gesta de reis, rainhas e grandes chefes tribais.
As informações a respeito do
tempo colonial eram mais profusas e claras. Durante a luta anti-colonial teve
parentes seus a operarem, ao mesmo tempo, como agentes da PIDE e das forças
clandestinas do MPLA. Essa condição dúbia, de prestadores de serviços valiosos
tanto a um como ao outro lado da barricada, colocou alguns desses parentes em
posição privilegiada por altura da eclosão da independência nacional. Não por
acaso, um dos mais altos dirigentes da antiga DISA era um tio seu, primo da
mãe. Igualmente não por acaso, um outro tio, irmão da mãe, também da DISA,
estava entre os mortos do 27 de Maio de 1977. Era mesmo como o Andrezinho
dissera: os seus parentes mais notáveis faziam parte das várias estruturas dos
serviços secretos. Alguns sobrinhos já estavam a trilhar o mesmo caminho: além
de um bom emprego, era uma questão cultural incrustada no sangue.
- Precisamos ficar atentos ao
Andrezinho.
- Vai, deixa o miúdo ser
criança. Não o metas nas tuas obsessões.
- Vamos ver no que é que isso
vai dar, filha. Estou muito preocupado.
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