terça-feira, 27 de abril de 2021

Romance “O Incesto Real”, de Júlio de Almeida "Jujú": FICÇÃO NOS SILÊNCIOS DA HISTÓRIA

“O incesto real” é um romance cuja acção em grande parte se desenrola nas zonas de silêncio e de penumbra da História e que são um manancial para a imaginação criadora dos escritores

 

Isaquiel Cori






 Para a escrita de “O incesto real” Júlio de Almeida pesquisou documentação histórica sobre o Reino do Kongo, os primórdios da presença portuguesa no território que seria Angola e a correspondência entre os soberanos do Kongo e de Portugal, bem como sobre a presença secular e “silenciosa” de negros naquele país europeu.

O pano de fundo sobre o qual grande parte da trama do romance é construída é aquele período histórico que se inicia no século XV, com as viagens marítimas protagonizadas essencialmente por Portugal e Espanha e que alguns historiadores chamam Descobrimentos, outros Encontro de Civilizações e outros ainda Primeira Globalização. Mas é já no século XVI que os personagens iniciais do romance entram em cena, já Diogo Cão fizera duas viagens de exploração à costa ocidental de África em que entrara em contacto com o soberano do Reino do Kongo. Precisamente no seu segundo regresso a Portugal o navegante carregara num dos seus barcos uma comitiva enviada por Mvemba a Nzinga, o Mani Kongo, que, baptizado em 1491, adoptara o nome Afonso I. Faziam parte da comitiva membros da corte, incluindo D. Henrique, filho de Afonso I, de 12 anos de idade, e outros familiares do soberano.

Já em Portugal o konguês D. Pedro, primo como irmão de D. Henrique, envolve-se com a portuguesa Maria da Graça, que dá a luz os gémeos Vagá – de “Vasco da Gama” – e Gavá – “Gama de Vasco”. É através das peripécias de ambos, com trajectórias de vida diferentes, e da sua descendência, que a trama do romance se adensa.  Vagá, remetido ao extremo sul de Portugal, torna-se pai de Gamahl, com a bailarina Leila. Gamahl é descrito como “um dos mais originais homens do século XVI, o primeiro luso-conguês-marroquino – espécie única do género humano – que nunca estivera nos planos do Criador”... e que se tornaria membro da guarda pessoal de D. Sebastião “O Desejado”, o rei de Portugal que desapareceria na batalha de Alcácer-Kibir, no Marrocos em 1578.

Por sua vez Gavá, pelas voltas que o destino dá, ou se assim o entendermos, que só a ficção permite e concebe, em 1536 chega ao Reino do Kongo, onde ainda reinava Mvemba a Nzinga, que então sobrevivera a “três reis dos portugueses” e ao próprio D. Pedro, o pai dos gémeos falecido em S. Tomé em “situação de evidente cativeiro”. Tanto o rei Mvemba a Nzinga, seu tio-avô, como o próprio Gavá, desconheciam que eram parentes.

Em resumo, o romance abarca séculos da história de uma família real konguesa cujos descendentes kongueses-portugueses se espalham em dois ramos pelo mundo, misturando-se biológica e culturalmente com as populações que encontram, se aproximam e se reencontram, sem o saberem - como durante a guerra civil em Angola - em campos opostos. 

O livro contém duas narrativas. Na primeira, que constitui o fio condutor do romance, o autor trata de “preencher lacunas” e silêncios da História. E faz isso insuflando vida a figuras que vão desfilando pelo romance ao longo de mais de 400 anos. A “outra” narrativa, grafada em itálico, que não chega a ser paralela porque converge permanentemente para a primeira, é animada por dois personagens-leitores que comentam e problematizam a primeira narrativa, em muitos casos clarificando-a ou actualizando-a.

 

Manancial para imaginação

O romance por vezes se evidencia mais como narrativa histórica, explicitando a verdadeira natureza das relações entre os reinos do Kongo e de Portugal. A citação de trechos de cartas trocadas entre os respectivos soberanos e outros documentos é tão profusa que se fica com a tentação de correr para as últimas páginas em busca das referências bibliográficas que obviamente não existem.

A relação entre os dois reinos era desigual. D. Afonso (Mvemba a Nzinga) “várias vezes havia escrito ao monarca português D. Manuel, denunciando o trato havido pelos súbditos com as suas gentes, mais interessados no comércio e no resgate de escravos do que no trabalho de construção de edificações em alvenaria, no cultivo e preparação do pão e no ensino de ofícios em que eram mestres e de que carecia o seu reino.

D. Afonso clamava que havia ‘necessidade de mais do que de padres de algumas poucas pessoas para ensinarem nas escolas, nem mesmo de nenhumas mercadorias, somente vinho e farinha, para o Santo Sacramento’” (pág. 47).

Há uma passagem deste livro que mescla História e Ficção que ajuda a compreender o que ocorreria muito depois e se consumaria com a decadência e posterior conquista pelos portugueses dos estados africanos no território que é hoje Angola: “... Mas, para meu pai está tudo certo. O seu processo interno de alienação de si próprio foi realizado com êxito. Tem à sua volta uma corte de privilegiados, completamente subordinados aos interesses dos portugueses que vão esvaziando o reino dos seus filhos, enviando milhares e milhares de nossos irmãos para terras tão estranhas e distantes, donde nunca houve regresso. Não sei o que o tempo ainda trará a estas terras. Eu já não verei esses tempos...” (pág. 51, monólogo de D. Henrique, “enfraquecido, deitado sobre a esteira, as febres intermitentes toldando-lhe a alma e o pensamento”). 

Mas “O incesto real” vai muito além dos reinos do Kongo e de Portugal. Os descendentes de D. Pedro e Maria da Graça movem-se no romance ao longo de quase 500 anos, até aos tempos actuais, vivenciando os principais marcos da História de Angola, incluindo a eclosão da luta armada de libertação nacional, a independência, a invasão sul-africana, a guerra civil e a conquista da paz. Os últimos capítulos (“espiras”), muito mais descritivos, ganham um ritmo acelerado, como se o autor tivesse pressa de chegar ao fim. É nesta parte que parecem emergir as memórias biográficas do autor, que começam na sua infância em Moçâmedes e a ida a Sá da Bandeira (Lubango) para estudar no liceu. Diante da narrativa do recuo das FAPLA e dos cubanos das principais cidades do litoral e do avanço das tropas sul-africanas até ao rio Keve, às portas de Luanda, torna-se impossível não evocar a figura do comandante Jujú que se notabilizou em 1975/76 como porta-voz do Estado-Maior das FAPLA. Essa evocação é mesmo sugerida por um dos “narradores-comentadores” quando exclama: “Até que enfim dás um ar da tua graça”.

“O incesto real” é um romance cuja acção se desenrola nos interstícios da História, naquelas zonas de silêncio e penumbra que não constam dos livros de História e que constituem um manancial para a imaginação criadora dos escritores. Efectivamente, se a História é a narrativa dos factos ocorridos, o romance histórico é a narrativa dos factos que não tendo ocorrido poderiam ter ocorrido.   

 

 

JÚLIO DE ALMEIDA “JUJÚ”: “É falso que Angola tenha começado com o Reino do Kongo e as suas relações com Portugal”




Escritor bissexto, Júlio de Almeida “Jujú” acaba de publicar, aos 80 anos, o seu segundo romance, “O incesto real”, sob a chancela da editora Kacimbo. O primeiro, “VAICOMDEUS”, foi publicado há 15 anos. Na entrevista que a seguir se publica, o escritor fala do seu novo livro e das questões que o mesmo suscita. Defende que Angola “como entidade territorial, tal como a temos hoje, é muito recente” e que “é falso que tenha começado com o Reino do Kongo e as suas relações com Portugal”. E explica os motivos que o levaram, em 2003, a abandonar a condição de deputado pelo MPLA, partido que, segundo disse, “tem vindo a perder o charme político e filosófico”  e a dar tiros nos pés com posicionamentos “a maior parte deles movidos pela táctica imediata e não baseados num ideário político consequente”  

 

Isaquiel Cori

 

Fale-nos, por favor, da génese deste livro. Como é que tudo começou, que inquietações ou motivações o levaram a escrevê-lo?

A génese deste livro foi determinada por duas vertentes: a primeira foi motivada pelo apregoado slogan de África ser o “berço da humanidade”. Se assim é, então somos todos primos uns dos outros e temos um antepassado comum, a Lucie (o mais antigo dos humanos conhecido) que, se fosse viva teria hoje 3,2 milhões de anos. A segunda vertente tem a ver com o demasiado desconhecimento que as actuais gerações têm da sua própria história. Fala-se (erradamente) em 500 anos de colonialismo, como se as relações entre os povos de Angola e Portugal fossem linearmente sempre iguais, tanto faz que se fale do ano 1500 ou do ano 2000.

 

O seu romance tem um grande suporte de pesquisa histórico-documental. Essa pesquisa foi feita em Angola e no exterior? Em quanto tempo?

As fontes para a escrita deste livro foram de duas ou três ordens: a primeira decorre de muitas leituras de fontes escritas existentes sobre as diferentes épocas que o texto cobre; a segunda sobre pesquisas feitas na Net; e a terceira sobre memórias e lembranças pessoais, que não são a mesma coisa, sendo que designo de memórias factos e situações por mim vividos, enquanto que lembranças são também factos e situações de que tive conhecimento, mas que aconteceram ou foram vividos por outros.

 

O Reino do Kongo continua a inspirar os escritores angolanos. No seu caso concreto, onde reside o poder de atracção do Reino do Kongo?

O Reino do Kongo, ou melhor o encontro deste Reino com parte dum mundo longínquo e tão diferente, representa um choque de civilizações, cujo estudo é sem dúvida aliciante. Se tivermos em conta a correspondência trocada pelo Rei do Kongo Mvemba a Nzinga com três sucessivos reis de Portugal, estaremos em presença, em primeira mão, da visão autóctone da história mútua daqueles dois reinos, história essa que habitualmente só é contada por uma das partes. Por essa razão é dado relevo especial ao conteúdo das cartas escritas pelo Reino do Kongo.

 

D. Pedro, o primo-irmão de D. Henrique, é uma figura que realmente existiu ou é fruto da imaginação do escritor?

O personagem D. Pedro faz parte da ficção do livro. O facto de ter sido pai de dois gémeos é pura invenção minha. Mas aconteceu mesmo que um primo-irmão de D. Henrique fez parte dos integrantes da comitiva do futuro bispo. Aproveito a oportunidade para declarar que, apesar das pesquisas por mim feitas, não encontrei relato algum em que se dissesse qual o nome original (kikongo) quer do primo, quer do próprio D. Henrique. E essa lacuna persegue-me desde que há 60 anos, pela primeira vez, tomei contacto com “histórias” sobre este Reino.

 

D. Henrique, o filho do Mani Kongo Mvemba a Nzinga (D. Afonso I), apesar de ordenado bispo, ao longo da sua vida não terá realizado actividades “em prol da organização eclesiástica” no Reino do Kongo. Terá sido então um prelado relutante?

A actividade eclesiástica de D. Henrique no Reino do Kongo, também não mereceu destaque na documentação histórica, salvo a que está ligada ao seu contacto com o Papa da altura e as condições em que foi ordenado padre e posteriormente nomeado como Bispo de Útica, mesmo sem bispado, como se refere no livro.

 

Ao ler o seu livro fiquei com a impressão de que, mais do que um romance, é na verdade um ensaio sobre as origens de Angola. É no Reino do Kongo, na dinâmica das suas relações com Portugal, que Angola começa?

Não me parece correcto, ou melhor, é falso que Angola tenha começado com o Reino do Kongo e as suas relações com Portugal. Angola, como entidade territorial, tal como a temos hoje, é muito recente e, nas suas origens e contactos com os mundos exteriores, é composta por muitas parcelas. Mas que a dinâmica das relações entre os diferentes reinos que hoje integram Angola e o mundo exterior contribuíram para o que hoje é Angola, é facto incontestável. E merecem outros livros, de história ou de ficção, que sem dúvida irão aparecer.

 

O seu livro vem colocar-se no centro de discussões muito actuais sobre identidade e nacionalidade. Esse tipo de discussão 45 anos depois da nossa independência o inquieta?

Claro que me inquieta, como ao longo de minha vida a condicionou em parte, estas questões de identidade e nacionalidade. Não há como escapar ao facto de ainda não  sermos “uma só Nação”, embora todos devemos ter idêntico Bilhete de Identidade. Pode-se contribuir positivamente na questão de termos a mesma identidade ou contribuir  negativamente. A primeira Lei Constitucional que representava a ideologia de quem organizou e participou na luta armada de libertação nacional defendia identidade de angolano baseada em dois vectores de per si: jus soli (nascido(a) em Angola é angolano(a); e jus sanguini (filho(a) de angolano(a) é angolano(a).

Esta representa uma contribuição abrangente na questão da identidade, o que é contrariado na actual Constituição que exclui o jus soli. Houve mesmo uma lei que determinou que o BI não fosse idêntico para todos, mas onde se legislou a diferenciação rácica dos cidadãos. Felizmente que acabou por ser revogada esta manifestação de racismo. Somos ou não todos descendentes da Lucie? Quem é racista ou tem preconceitos rácicos ainda não percebeu que também, ele próprio, é simplesmente humano. Talvez, com o Tempo (o personagem e narrador do meu livro) ele venha a aprender a ser humano.  O Incesto Real existiu ou não?

 

Quando diz que pessoalmente as questões de identidade e nacionalidade condicionaram em parte a sua vida, pode ser mais concreto?

Embora o MPLA sempre tenha demonstrado uma opção política humanista e universal, portanto anti-racista, e eu próprio tenha feito a licenciatura em Engenharia com uma bolsa de estudos (1962 a 1968) da UGEAN – União Geral dos Estudantes da África Negra sob dominação colonial portuguesa – que era uma organização afecta ao Movimento, de facto só a partir de 1968, na Conferência da Frente Leste, foi instituído o princípio de indivíduos de “raça” branca poderem ser considerados angolanos e integrarem em plenitude o Movimento. Tal aconteceu pela primeira vez, com o médico Tó Zé Miranda, em 1969, e eu próprio aguardei em Argel, desde fins de 1968 até fins de 1971, que me chamassem e fosse integrar os quadros da Frente Leste. É só um exemplo.

 

O seu livro não se fica pelo Reino do Kongo. A infância de Nzadi em Moçâmedes nos anos 1950 confunde-se com a do autor? São as suas memórias de infância?

A espira de tempo dedicada a Moçâmedes é, de certo modo, uma homenagem àquela região do nosso País. E socorri-me, como fica evidente, de memórias e lembranças desses meus tempos de menino e adolescente.

 

Nos capítulos (espiras) finais o comandante Jujú parece emergir com as suas memórias. Isso é sinal de que já não vai escrever a sua auto-biografia?

As espiras finais deste Incesto Real ocorrem de facto num espaço de tempo por mim vivido. Não são “as minhas” memórias, mas – com base no que realmente aconteceu – representam a ficção do autor sobre os mais recentes factos históricos. Os percursos dos personagens são minha ficção. Os factos são históricos e são mais importantes do que a minha biografia.

 

Volto a colocar a questão: tem em agenda a escrita da sua biografia, dada a sua qualidade de partícipe e testemunha importante de processos históricos decisivos na consolidação da independência do país?

Não pretendo escrever a minha biografia para além do que já foi dito e escrito em diversas entrevistas e o que de autobiográfico ressalta dos dois romances por mim escritos.

 

Assumiu cargos públicos de relevância mas a dada altura retirou-se da vida política. O que o fez tomar essa decisão?

Eu retirei-me da vida política em 2003, quando perfiz 63 anos de idade. Na altura era deputado e, por escrito, expliquei à direcção do Grupo Parlamentar, sem fazer grande alarde, que já não me revia nas opções políticas que eram seguidas pelo Movimento. E, deste modo, não participei no banquete a bar aberto que se estendeu pelos seguintes 14 anos que, diga-se, foi só para convidados.

 

O estado de coisas actual no seio do Movimento, estamos a falar do MPLA,  em matéria de opções políticas, ainda não é convidativo para um eventual regresso como militante? Quais são as opções estratégicas do MPLA de hoje que lhe desagradam particularmente?

O MPLA tem vindo a perder o charme político e filosófico que já teve e eu, aos 80 anos, também os perdi, o charme, a energia e a atracção do antigamente. O que mais me desagrada são “os tiros nos pés” que conformam vários posicionamentos do Movimento, a maior parte deles movidos pela táctica imediata e não baseados num ideário político consequente, apesar das muitas críticas, sugestões e propostas que vários ex-militantes vêm fazendo publicamente.

 

Já está a escrever um outro livro ou está ainda a viver a ressaca d’O incesto real?

O Incesto Real aparece vinte anos depois do lançamento do VAICOMDEUS. E só começou a “viver” agora, isto é, a ser lido. Não tenho a certeza se haverá um terceiro romance. Deixemos o Tempo aconselhar.

 

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Perfil

 

Júlio de Almeida “Jujú” nasceu na província do Namibe em 1940. Licenciado em Engenharia Mecânica (1962/1968), trabalhou de 1968 a 1971 como engenheiro em Argel, onde integrou a delegação local do MPLA e o Centro de Estudos Angolanos. Foi comissário político na Frente Leste entre 1971 e 1974. É co-signatário da Proclamação das FAPLA.

Tornou-se bastante conhecido entre os angolanos entre 1975 e 1976, na qualidade de porta-voz do Estado-Maior das FAPLA, quando diariamente comunicava à imprensa sobre a situação político-militar. Foi vice-ministro dos Transportes (1976/1983) e trabalhou na qualidade de engenheiro entre 1983 e 1992 como director de Estudos e Projectos. Entre 1984 e 2014 foi professor na Faculdade de Engenharia da Universidade Agostinho Neto. Foi ainda deputado à Assembleia Nacional pela bancada do MPLA, de 1992 a 2003. É membro fundador da Associação Tchiweka de Documentação.





domingo, 15 de novembro de 2020

UMA HISTÓRIA ANTIGA: Das manifestações e da incapacidade do Governo lidar com as mesmas*

A incapacidade das autoridades angolanas lidarem com manifestações convocadas por forças sociais que lhe são adversas já vem de longe. No meu livro “Dias da Nossa Vida” – romance – publicado em 2018 mas escrito entre 2014 e 2016, é descrita uma manifestação de estudantes universitários e a forma como as autoridades da província se posicionaram e lidaram com a mesma. A cena tal como está narrada - e as figuras concretas que nela se movem - é ficção. Mas uma ficção imensamente nutrida pela realidade que envolvia o autor. Publico abaixo um excerto da tal cena. O resto só lendo mesmo o romance, editado pela Acácias.

 ISAQUIEL CORI

“Mesmo com toda a carga de vigilância humana e electrónica sobre si, o núcleo duro do movimento de jovens estudantes, nos últimos tempos, conseguia alcançar zonas de sombra e de silêncio em que estava completamente fora do alcance dos Serviços. Foi aí, numa dessas zonas, que esse núcleo congeminou as acções de enfrentamento às autoridades. 

        Nas primeiras horas da manhã de sábado, os primeiros grupos de estudantes convergiram para o largo Angola Avante. Vestidos de camisolas e chapéus brancos, alguns dos jovens carregavam cartazes toscos de papelão com inscrições, bem visíveis, contra a corrupção no ensino e na governação e por mais saúde e emprego. Outros aludiam à falta de liberdade de expressão. Em pouco tempo juntaram-se, no largo, umas largas centenas de jovens, alegres e barulhentos nas suas reivindicações. O Governador retirara-se, um dia antes, para a sua fazenda, e deixara ordens expressas para que, numa eventualidade como a que ocorria agora, Reinaldo Bartolomeu coordenasse as acções das forças de segurança e ordem pública.

        Reinaldo ainda foi a tempo de embarcar o sogro e a cunhada no voo de regresso a Luanda. Transformou a sala de operações dos Serviços de Informação em gabinete de crise e desencadeou, imediatamente, os primeiros passos do plano de contingência.

       

        - Como estamos, comandante? O desdobramento das forças e meios, está feito?

        - Sim. Colocamos um cordão de homens e meios em redor do largo e reforçamos a guarnição e o patrulhamento nos acessos e junto ao Palácio e às instalações da rádio e da televisão. Eles estão isolados. Mas quanto mais cedo os desbaratarmos melhor, evitamos o risco de ganharem simpatia e atraírem mais gente para a sua causa.

        O Comissário Zebedias António era um homem essencialmente prático, como aliás a maioria dos antigos comandantes de brigada das ex-FAPLA. Mais do que um polícia, raciocinava como um militar. E mal conseguia esconder o desagrado por estar a ser chefiado por alguém que ele considerava civil. Era um problema antigo, esse, da má relação institucional entre a Polícia e os Serviços de Informação. Os policiais queixavam-se, muitas vezes, da arrogância e autossuficiência dos agentes dos serviços de inteligência, além de se sentirem enciumados com as regalias materiais de que estes eram contemplados pelo poder político.

        - Vamos acabar com esta manifestação. Mas antes de usarmos a força tentemos convencer os cabecilhas a desmobilizarem voluntariamente.

        - É uma perda de tempo. Veja o que acontece em Luanda. É carregar contra eles e matarmos o mal pela raiz. É preciso não dar asas a esses miúdos. Largamos os cães contra eles e eles fogem com o rabo entre as pernas.

        Reinaldo sabia desse tipo de abordagem e não concordava com ela. Sentia que o Governador, preocupadíssimo com a estabilidade social e política da província, queria, a todo o custo, evitar um banho de sangue. Politicamente saíra de cena e deixara a responsabilidade a Reinaldo. O Comissário Zebedias António não estava sozinho naquele tipo de visão. Em alguns meios castrenses, e até de um certo núcleo político, emergiam, cada vez mais, manifestações de intolerância em relação à diferença, e até mesmo de cansaço em relação à paz. Mas eram minoritários, apesar de serem fortes e estarem bem incrustados no coração do poder político e militar.

     - Comissário Zebedias, vamos dar uma oportunidade ao bom senso. Vamos conversar com os miúdos, a ver no que é que dá.

        - Não vamos cometer, premeditadamente, erros. Não estamos em tempo de conversa. Esses, que você chama miúdos, podem ser a nossa perdição. Os nossos cães estão a salivar, a espera de serem largados. Não compreendo essa hesitação.

        Reinaldo captou o tom de desprezo na voz do Comissário. Estava a ser tratado por cobarde.

        - A autoridade suprema, aqui, sou eu. Comissário, tem dúvida?

        Zebedias António levantou-se e foi fumar um cigarro à janela. Aí, iluminada directamente pela luz do sol, ficou bem clara a cicatriz espessa que lhe ia da parte inferior da orelha esquerda e desaparecia sob a gola da camisa do uniforme policial. Era resultado da guerra. Reinaldo fez tenção de proibir-lhe de fumar aí, mas foi interrompido pelo toque do telefone portátil. Era o Chefe Admirável Redondo. Afastou-se com o telefone para o seu gabinete.

        - Bom dia, Chefe.

        - Já acabaram com a confusão? Mande-me já o relatório a dizer que está tudo acabado. Vocês estão na boca do mundo. Essa manifestação está a abrir telejornais lá fora. Não se fala de outra coisa. Recebi ordens para evitarmos sangue. Nada de sangue. Mas acabe com a merda dessa manifestação.

        - Está tudo a postos, Chefe. Eu, pessoalmente, vou explorar uma última possibilidade de conversa, antes de usarmos a força.

        - Como? Pessoalmente? Não brinques com as multidões.

        - É uma última tentativa, Chefe. De contrário, vai correr sangue. Muito sangue.

        Seguiu-se um longo silêncio. A possibilidade de derramar sangue de jovens desarmados silenciou Admirável Redondo. Os tempos não iam de feição para esse tipo de coisas.

        - Avança como pensas. Dá-me o relatório definitivo, imediatamente a seguir.

        - Está bem, Chefe.

        Reinaldo, mais do que sentiu, viu claramente um lavar de mãos por parte do chefe. O destino dos jovens e a reputação de todo o sistema estavam nas suas mãos. Regressou à sala de crise, com um brilho de determinação renovada nos olhos, e reassumiu, ostensivamente, o comando de toda a operação.

        Zebedias António, militar de formação e experiente, sabia obedecer às ordens.”

*Excerto do romance DIAS DA NOSSA VIDA, de ISAQUIEL CORI

Foto da Editora Acácias

sexta-feira, 16 de outubro de 2020

POETA ANTÓNIO GONÇALVES: "A UEA precisa de adaptar-se aos novos ventos"





Publicou no princípio deste mês, pela Editora Acácias, na colecção Troncos da Literatura Angolana, o livro de poemas Os Livros dos Ancestrais. Motivo mais que suficiente para o entrevistar. António Gonçalves fala nesta entrevista do seu livro, que segundo disse resulta das suas vivências na centralidade do Sequele e da reflexão em torno da ancestralidade. Mas também recua no tempo e descreve o ambiente da sua infância e os factores que o terão levado ao hábito de leitura. Por fim, caracteriza o desempenho actual da União dos Escritores Angolanos, de que já foi secretário-geral. A UEA está transformada num “corpo amorfo que não tem dinamismo e está muito aquém dos interesses da sociedade angolana e muito menos da literatura angolana”. Sentencia sem “papas na língua”.

  ISAQUIEL CORI

Como é que surge este Os Livros dos Ancestrais, a começar pelo título?

Comecei por projectar uma homenagem ao lugar em que resido actualmente, que é a Centralidade do Sequele e então concebi um livro que se chama Icónico Postal do Sequele. À medida que este livro foi tomando corpo surgiu o poema Utima, que significa “coração” em umbundu. De repente escrevi vários textos, que totalizaram 21, que se transformaram num livro à parte. Como notei que sobretudo o primeiro livro tinha uma carga relacionada com os nossos ancestrais, decidi juntar os livros num só e dei-lhe o título de Os Livros dos Ancestrais.

 

O primeiro livro, ou primeira parte de Os Livros dos Ancestrais, faz uma imersão até então literariamente inédita nesses novos aglomerados urbanos que são as centralidades. O que de diferente, em termos poéticos, captou relativamente aos outros lugares onde viveu?

É uma experiência diferente. Embora tenha crescido no Bairro Neves Bendinha, que antes se chamava Bairro Cemitério Novo e depois Bairro Popular, frequentei muito o Rangel e o Cazenga, onde tinha familiares, bem como o Sambizanga. É uma vivência muito própria que se diferencia das zonas urbanas como a Ingombota ou o Kinaxixi. O que vamos encontrar nas centralidades, sobretudo na onde vivo, são pessoas oriundas daqueles bairros que trouxeram os seus hábitos e costumes. Mas elas tiveram também que se adaptar ao novo meio, já que somos todos pioneiros nisso de conhecer como viver em centralidades, em que no caso do Sequele, apesar de ser aberta, há normas, regras. No meio de tudo isso há personagens que se destacam.

 

Que se destacam e alguns dos quais aparecem poetizados no livro.

Sim. Como uma espécie de historiador tentei fixar aquilo que são os primeiros anos de vivência do Sequele. Fi-lo não só em função do que vi, mas também trabalhando-os. Por exemplo, a Tia Maria é uma pessoa muito conhecida no mercado, que é o ponto-chave do Sequele, frequentado por todos. Agora já há outros pontos de encontro, nomeadamente restaurantes, mas na altura em que concebi o livro todo o mundo concentrava-se no mercado. O Man Jasse, que fala um português de categoria, “o ambaquista do Sequele”, é outro personagem conhecido, que em função do estilo de vida e das contradições existenciais está com um desequilíbrio mental, mas continua a ser conhecido como DJ.

 

Essas figuras contemporâneas do Sequele chegam a ser tão marcantes à leitura do seu livro, que, de certo modo, acabam por prevalecer relativamente às marcas da ancestralidade…

Há um poema dedicado aos 40 anos da Independência Nacional, Evocação Transcendental que Ilumina o Quadro, em que há a evocação muito explícita do passado, da ancestralidade. Nele, falo dos reinos do Congo, Matamba, Benguela, Lunda-Cokwe, Rei Mandume… Tive como referência esse poema para atribuir ao conjunto dos dois livros o título Os Livros dos Ancestrais. Mas também em Utima encontramos referências aos ancestrais. A diferença entre os dois livros é que se o primeiro é multitemático, o segundo é unitemático, isto é, com um único tema que trato de 21 formas diferentes. É um poema em série com 21 textos. Na verdade, remeto-me à qualidade de intermediário que recebe as mensagens dos ancestrais para transmitir à modernidade. É uma construção ficcional que normalmente só é feita quando estamos a falar da ficção narrativa.

 

Está reformado enquanto funcionário público. Logo, tem muito mais tempo para dedicar-se à criação literária…

De uma forma geral sim. Estou agora a escrever o Décimo Segundo Livro dos Ancestrais, que espero concluir ainda este ano. Ao contrário de Utima, vou regressar a um formato multitemático. Tenho também a intenção de seleccionar as minhas narrativas, que estão muito dispersas. Vou reuní-las e publicá-las em livro. A par disso, estou a seleccionar uma série de textos que apresentei em conferências em Cuba e noutros países da América Latina e também cá em Angola, para publicá-los em livro.

 

Nos dez anos em que esteve como conselheiro cultural na Embaixada de Angola em Cuba publicou muita coisa em espanhol. Tratam-se de textos escritos originariamente naquela língua ou traduzidos?

Escrevia sempre em português e tinha um secretário que tratava de traduzir para o espanhol, já que ele dominava também o português. Em Cuba, publiquei seis livros bilingues, em português e espanhol, e dois totalmente em espanhol. Na Costa Rica, publiquei um livro em espanhol, que depois os cubanos reeditaram (Emosentidos) e na Venezuela A Quinta Estação do Tempo, em espanhol.

 

Fale-nos do seu processo de escrita. Como é que os seus poemas surgem? Vivencia-os primeiro ou eles vão ganhando sentido e forma enquanto os escreve?

Há um processo, que é o mais recorrrente, em que o poema aparece na cabeça, desaparece e reaparece depois de algum tempo. Faço então o registo e deixo-o por aí. Há um outro processo em que desperto à noite como se me estivessem a transmitir mensagens e então registo o poema na totalidade. Um outro processo é quando vivencio algo que me emociona e trato de o traduzir em palavras. Aí também o texto fica algum tempo na gaveta e mais tarde dou-lhe o tratamento estético. São raros os poemas que atingem a forma definitiva logo de primeira, embora possa ter já a antevisão do chamado texto acabado. Tenho um poema, África que Observo com os Dedos, que me levou dois anos a escrevê-lo. É o meu poema mais conhecido no Mundo, o que melhor identifica a minha poética.

 

Recuando. Quais são as pessoas e os livros que mais o terão influenciado no sentido da criação literária?

Aos 13 anos lia muito a revista Sete Balas, que então estava na moda. Em 1975, as pessoas da minha geração liam muito livros provenientes de Portugal e sobretudo do Brasil. Li Jubiabá de Jorge Amado, li José Lins do Rego, outro brasileiro, e lembro-me também da influência da literatura russa e dos então países socialistas em geral. Foi naquele período que tomei contacto com Sagrada Esperança de Agostinho Neto, os poemas de António Jacinto e Viriato da Cruz. Comecei a ler Mário António muito mais tarde. Decido em 1979 escrever Cenas que o Musseque Conhece, que dou a ler ao meu professor de português e ele faz uma crítica a dizer que com pequenas correcções o livro podia ser publicado. Isso foi um incentivo para mim. Em 1980 é que começo a publicar pela Brigada Jovem de Literatura e participo num caderno de homenagem a Agostinho Neto com o poema Reflexão, que assinei como Tony Gonçalves. Considero que a minha produção literária começa em 1980.

 

Como era o ambiente da sua infância em casa? O que o levou ao hábito de leitura?

Tínhamos uma biblioteca em casa, em que alguns livros eram do meu pai, outros do meu irmão mais velho, o Johnson, que ainda vive. As minhas irmãs mais velhas estudavam no Liceu Feminino e já tinham o hábito da leitura. Os livros que mais predominavam eram os de carácter político, porque o meu irmão mais velho era o coordenador da JMPLA no bairro Neves Bendinha. Ele iniciou-me na política e chegou uma altura em que ele era o coordenador da “Jota” e eu era o da OPA. Estamos a falar de 1975/1977.

 

A literatura em geral e a poesia em particular que papel podem jogar em momentos de transformação como o que o país vive?

O povo angolano nunca aceitou de ânimo leve a colonização portuguesa e mesmo a holandesa. Somos um povo rebelde que sempre resistiu à colonização. É curioso que na história da literatura angolana, que nasce da conjugação com o jornalismo, vamos encontrar em A Voz de Angola Clamando no Deserto um texto de confronto em que angolanos respondiam a um outro texto em se alegava que o angolano era preguiçoso, não estava preparado para viver em sociedade, etc., etc. Vamos encontrar depois, já na década de 40, uma plêiade de intelectuais, na sua maioria poetas, que reivindicam a necessidade da Independência do país. Quer dizer que a literatura angolana sempre esteve vinculada ao processo de libertação de Angola. As gerações actuais devem continuar nessa senda. A vantagem que temos neste momento é que há grandes possibilidades de surgimento de bons ficcionistas, além de bons poetas. Sou dos que acham que a literatura deve estar ao serviço da sociedade. Não acho que um escritor deva afastar-se dos problemas do seu tempo. Naquilo que escrevo tento mostrar essa posição, que é inequívoca. Nunca me vejo como um escritor fora do meio social em que vivo. O escritor deve ter uma consciência histórica.

 

Foi durante vários anos secretário-geral da União dos Escritores Angolanos. Qual é a leitura que faz do desempenho da UEA nos últimos tempos?

Depois daquela fase eufórica em que era ao mesmo tempo uma grande editora, publicava muitas obras e tinha uma grande intervenção cívica, a UEA acabou por não manter esse perfil. Por um lado, não continua a produzir obras, de tal modo que alguns membros acham que devia ser apenas uma cooperativa de escritores. A UEA perdeu o protagonismo na sociedade a favor de outros movimentos cívicos de novos grupos de escritores jovens que vão ocupando o seu espaço.

 

A UEA não estará a pagar o preço por, durante décadas, ter estado “acoplada” ao poder político e ser mesmo uma plataforma de acesso a esse poder?

Também está a pagar essa factura. Mas muito mais do que isso é o facto dela não se ter adaptado aos novos ventos. Há debates que têm sido promovidos em alguns círculos que podia muito bem ser a UEA a fazer, conforme durante anos o Luandino Vieira fez, mesmo no tempo de partido único, tal como o João Melo em alguns períodos do seu mandato e, modéstia à parte, também eu, no meu mandato. Há um outro problema que é o do relacionamento pessoal. Há escritores que não se revêem na UEA, porque as políticas e a forma de estar da própria UEA não correspondem aos anseios dos escritores. É uma pena que tenha de dizer isso e não é nenhuma ofensa ao Carmo Neto, mas na verdade há que rever o papel histórico da UEA e em que medida ela se deve reformular para corresponder aos desafios dos tempos modernos.

 

Retendo essa questão do papel histórico da UEA e indo para os seus primórdios, não acha que sobre ela recaíram responsabilidades culturais e sociais extremas?

Agostinho Neto, quando fez os pronunciamentos sobre a cultura nacional e o papel da UEA e dos escritores, estava longe de prever os desenvolvimentos que o país teria. Neto tentou salvaguardar aspectos que também defendo. Continuo a achar que a literatura angolana é essencialmente africana, que os escritores têm um papel fundamental em defesa dos valores mais sagrados e nobres do imaginário e do bem-estar social. A responsabilidade em si atribuída à UEA foi resultado de um momento histórico particular, primeiro pelo facto de ele próprio, Agostinho Neto, ser o poeta que era e ter sido o primeiro Presidente da República. Segundo, porque quem estava a governar era o MPLA. Só que à medida que as coisas foram evoluindo, em 1992 dá-se a transformação do sistema monopartidário para o multipartidarismo. A UEA devia rever também a sua estratégia de intervenção na sociedade angolana. Já devia ter tido uma maior abertura. Lembro-me que quando eu era o secretário-geral, por exemplo, convidei o Sousa Jamba a entrar para a UEA; convidei o João Paulo Nganga, depois dele ter lançado aquele livro polémico, “O Preto no Branco”… Mas eu saí e mais tarde fiquei a saber que essas e outras pessoas não figuravam como membros da UEA. Alguma coisa não esteve bem. Já naquela altura a UEA devia ter alargado o seu leque de membros em função da dinâmica do país, convidando, inclusive, escritores membros de outros partidos políticos. Se isso tivesse acontecido, a UEA estaria a ser vista de uma outra forma.

 

De que forma é que ela está a ser vista?

Como um corpo amorfo que não tem dinamismo e está muito aquém dos interesses da sociedade angolana e muito menos da literatura angolana.

 

Nesse quadro, a criação da Academia de Letras não terá esvaziado ainda mais a UEA?

Não tenho nada contra o surgimento de instituições culturais que têm em vista o progresso social e cultural do país. Questionaria apenas a oportunidade e a viabilidade de instituições como a Academia de Letras. São muitas instituições para um mesmo objecto social, o que cria alguns constrangimentos. Há quem entenda que na Academia estão os melhores e na UEA os piores… Esse tipo de discussão não é salutar para quem quer construir um país como o nosso, onde o elitismo não se deve sobrepôr ao desenvolvimento natural da literatura e da cultura.

 

Até aqui não temos um cânone da literatura angolana, que muito ajudaria no enquadramento do seu estudo e até na criação de um plano nacional da leitura. Em linhas gerais, para si, como é que deveria ser esse cânone?

Há um trabalho que o escritor Boaventura Cardoso iniciou enquanto ministro da Cultura, com a criação de uma comissão de investigadores angolanos, portugueses e brasileiros, para a escrita de uma História da Literatura Angolana. É uma pena que esse projecto tenha desaparecido com a saída do senhor ministro Boaventura Cardoso da função. É uma pena que no país os projectos importantes no domínio da Cultura desapareçam quando o ministro deixa o cargo. Não podemos continuar nesses termos.

Temos de ter um cânone da literatura angolana e defendo que nele não devam entrar apenas os autores da Mensagem e os da Cultura. Deve abranger também a geração de 80 [do século XX], mas também a novíssima geração que começa com o ano 2000. Considero que nesse período, de 2000 a 2020 ( faltam menos de dois anos para 2020), se não existe uma geração literária afirmada, há referências a considerar. Mas devo dizer que os novíssimos autores têm de apurar o seu estilo. Noto que quase todos eles escrevem da mesma forma e é difícil identificar uma voz individual. Mas isso é um processo.

O problema do cânone remete-nos para a discussão do que é a literatura angolana. Será que tudo o que se escreve, tanto por autores na diáspora como cá, é literatura angolana? Entendo que literatura angolana é aquela que expressa a alma do povo angolano, que defende os valores da angolanidade numa perspectiva dinâmica.

 

Como referiu, dos “novíssimos autores”, tem nomes a mencionar, pelo valor promissor do que escrevem?

Ressalto o nome do Hélder Simbad, que tem uma proposta estética que corroboro. Há também o Nguimba Ngola, que tem um texto excelente, e o Zola Vida, que me parece estar no bom caminho.

 

 Quem é quem

 

António Gonçalves nasceu em Luanda, antes da proclamação da Independência Nacional.

Gestor hoteleiro, frequentou o curso de Linguística no ISCED de Luanda, opção Língua Portuguesa.

Foi secretário-geral da União dos Escritores Angolanos no período de 1996 a 2001. Grande parte da sua obra literária foi editada em Cuba, onde durante dez anos exerceu a função de conselheiro cultural da Embaixada de Angola.

É membro da União dos Escritores e Artistas de Cuba, da Organização Poetas do Mundo e do Movimento Poético Mundial com sede em Medellin (Colômbia).

Além de Angola e Cuba tem textos publicados na Nicarágua, Venezuela, Costa Rica, Colômbia, Suécia, Espanha e Alemanha.

Foi director-adjunto do Instituto das Indústrias Culturais do Ministério da Cultura.

*Entrevista publicada no Jornal de Angola em 2018, após o lançamento do "Livro dos Ancestrais".


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quarta-feira, 14 de outubro de 2020

Fuga impossível

 Isaquiel Cori

 


A brisa, bem perceptível no assobiar característico e no balançar da folhagem das árvores, corria livremente pelas ruas quase desertas. Um ou outro humano circulava, rigorosamente com roupas a cobrir o corpo inteiro e máscara sobre a boca e o nariz, a que alguns ainda juntavam uma viseira de plástico envidraçado. Uns tantos quadrúpedes sem dono - cães e gatos – habitavam os cantos escuros e quando por algum motivo se punham a correr, na claridade da lua, a sombra em movimento duplicava-lhes o tamanho. As ruas estavam quase vazias mas os acontecimentos dos últimos meses faziam pressentir uma brutal, horrível e mortal presença microscópica: o novo coronovírus, agora chamado SARS-CoV-2, o vector da covid-19, doença que acuava os seres humanos nas suas residências. A vida humana parecia suspensa. Reinava a dúvida, uma total ausência de certeza que ressoava no ar e nas consciências aprisionadas.  Será desta que a hegemonia humana na terra se vai desmoronar? E há-de ser um reles ser microscópico a impor uma nova ordem natural, uma nova hierarquia da vida na terra, com os seres humanos debilitados, escravizados, mortos?

Os mosquitos esvoaçavam e zumbiam de contentes, aliados naturais que aparentavam ser do novo coronavírus  e da ordem mundial emergente. Toda a sorte de bactérias – cocos, bacilos e espirilos – bem como os vírus antigos, dos humanos conhecidos ou desconhecidos, igualmente, pareciam saudar o eclodir de um mundo com humanos fracos.

Num dado ponto pouco iluminado da rua ouvem-se gritos. É um jovem, sem camisa, o dorso brilhante de suor e da luz que vinha de uma lâmpada pendurada num fio invisível. Dois homens vestidos a rigor, como mandam as ordens da quarentena, tentavam segurá-lo, imobilizá-lo, dominá-lo. Estava difícil. O jovem continuava a debater-se. E a gritar.

“Não estou bêbado.  Me dá o meu kumbu, o meu kumbu. Eram 2 mil”.

A noite, como dito acima, é luarenta. A paisagem urbana é típica de uma foto antiga a preto e branco. Os quadrúpedes em fuga são perseguidos pelos fantasmas de si mesmos.

“Deus vai te condenar, Deus vai te condenar. Você vai na cidade dos malucos, na cidade dos malucos!”, o jovem de dorso nu continuava insubmisso, as suas falas desconexas soavam como profecias e, por isso, reforçavam o medo que estava no ar. O ambiente aí não era bom, pelo que o jovem ficou para trás, ele, os seus gritos, as suas falas obscuras e os homens que o tentavam conter.  

Na memória deste que vos conta e que no tempo daquelas ruas escuras e vazias circulou, veio a lembrança fugidia de um mundo vibrante de além mar e de além lá:  europas, américas, ásias, oceanias... atormentados pela covid-19, e agora esta África aqui... A espécie humana definha e nem se escuta o dobrar dos sinos. A horda microscópica, invisível, se levanta e espeta a sua adaga inefável no pulmão humano, fibrando-o e cortando os aéreos canais vitais. E a voz inaudível do Rei SARS-CoV-2 grita bem lá no fundo da humana garganta: “Quem é afinal mais poderoso, nós os micro seres, ou vós os auto-proclamados senhores do universo? Reconhecereis, por fim, que a inteligência também reside no infinitamente pequeno? E que a nossa presença no universo não tem medida e se expande por todo o espaço vazio? Pois é. Alargai o vosso entendimento, não estais sozinhos no mundo. Durante milhares de anos coexistimos convosco, observámo-vos, toleramos a vossa petulância, assistimos à vossa crueldade para com os outros seres vivos e para convosco mesmos. Certamente arranjareis uma forma eficaz de nos conter, sabemos dos esforços que tendes feito para parar a nossa progressão. Mas esta é só uma vaga. Outras e outras se seguirão. E nós não estamos apenas na Terra. Em breve vós ireis explorar outros planetas, outros mundos, a começar por Marte. Estirpes de nós, mais violentas, mais resilientes, mais mortíferas, estão lá e no universo a fora. E sempre que um humano de lá regressar transportará essas estirpes, que se juntarão a nós para solucionar então a charada genómica, que irrevogavelmente porá fim à existência da espécie humana na Terra. E não vos iludais: tal como no restante universo, a vida na Terra pode seguir o seu curso sem vós, humanos! Aliás, a vida na Terra durante milhões de anos prosperou sem vós.”

Este que vos fala, dotado de uma sensibilidade fora do comum, sentiu-se dominado pelo medo, medo do claro/escuro da rua, medo do céu escuro, medo do silêncio vibrante, medo dos próprios pensamentos, medo tão visceral que cada um dos passos que dava exponenciava todos os outros medos que sentia. Esta acumulação de medos pôs este que vos fala a correr como um míssil, sem saber do que fugia, se do SARS-CoV-2, se da condição de ser humano...