“O incesto real” é um romance cuja acção em grande parte se desenrola nas zonas de silêncio e de penumbra da História e que são um manancial para a imaginação criadora dos escritores
Isaquiel
Cori
O
pano de fundo sobre o qual grande parte da trama do romance é construída é
aquele período histórico que se inicia no século XV, com as viagens marítimas
protagonizadas essencialmente por Portugal e Espanha e que alguns historiadores
chamam Descobrimentos, outros Encontro de Civilizações e outros ainda Primeira
Globalização. Mas é já no século XVI que os personagens iniciais do romance
entram em cena, já Diogo Cão fizera duas viagens de exploração à costa
ocidental de África em que entrara em contacto com o soberano do Reino do
Kongo. Precisamente no seu segundo regresso a Portugal o navegante carregara
num dos seus barcos uma comitiva enviada por Mvemba a Nzinga, o Mani Kongo,
que, baptizado em 1491, adoptara o nome Afonso I. Faziam parte da comitiva
membros da corte, incluindo D. Henrique, filho de Afonso I, de 12 anos de
idade, e outros familiares do soberano.
Já em Portugal o konguês D. Pedro, primo como
irmão de D. Henrique, envolve-se com a portuguesa Maria da Graça, que dá a luz
os gémeos Vagá – de “Vasco da Gama” – e Gavá – “Gama de Vasco”. É através das
peripécias de ambos, com trajectórias de vida diferentes, e da sua
descendência, que a trama do romance se adensa.
Vagá, remetido ao extremo sul de Portugal, torna-se pai de Gamahl, com a
bailarina Leila. Gamahl é descrito como “um dos mais originais homens do século
XVI, o primeiro luso-conguês-marroquino – espécie única do género humano – que
nunca estivera nos planos do Criador”... e que se tornaria membro da guarda
pessoal de D. Sebastião “O Desejado”, o rei de Portugal que desapareceria na
batalha de Alcácer-Kibir, no Marrocos em 1578.
Por sua vez Gavá, pelas voltas que o destino
dá, ou se assim o entendermos, que só a ficção permite e concebe, em 1536 chega
ao Reino do Kongo, onde ainda reinava Mvemba a Nzinga, que então sobrevivera a
“três reis dos portugueses” e ao próprio D. Pedro, o pai dos gémeos falecido em
S. Tomé em “situação de evidente cativeiro”. Tanto o rei Mvemba a Nzinga, seu
tio-avô, como o próprio Gavá, desconheciam que eram parentes.
Em resumo, o romance abarca séculos da
história de uma família real konguesa cujos descendentes kongueses-portugueses
se espalham em dois ramos pelo mundo, misturando-se biológica e culturalmente
com as populações que encontram, se aproximam e se reencontram, sem o saberem -
como durante a guerra civil em Angola - em campos opostos.
O
livro contém duas narrativas. Na primeira, que constitui o fio condutor do
romance, o autor trata de “preencher lacunas” e silêncios da História. E faz
isso insuflando vida a figuras que vão desfilando pelo romance ao longo de mais
de 400 anos. A “outra”
narrativa, grafada em itálico, que não chega a ser paralela porque converge
permanentemente para a primeira, é animada por dois personagens-leitores que comentam
e problematizam a primeira narrativa, em muitos casos clarificando-a ou
actualizando-a.
Manancial para
imaginação
O romance por vezes se evidencia mais como
narrativa histórica, explicitando a verdadeira natureza das relações entre os
reinos do Kongo e de Portugal. A citação de trechos de cartas trocadas entre os
respectivos soberanos e outros documentos é tão profusa que se fica com a
tentação de correr para as últimas páginas em busca das referências
bibliográficas que obviamente não existem.
A relação entre os dois reinos era desigual.
D. Afonso (Mvemba a Nzinga) “várias vezes havia escrito ao monarca português D.
Manuel, denunciando o trato havido pelos súbditos com as suas gentes, mais
interessados no comércio e no resgate de escravos do que no trabalho de
construção de edificações em alvenaria, no cultivo e preparação do pão e no
ensino de ofícios em que eram mestres e de que carecia o seu reino.
D. Afonso clamava que havia ‘necessidade de
mais do que de padres de algumas poucas pessoas para ensinarem nas escolas, nem
mesmo de nenhumas mercadorias, somente vinho e farinha, para o Santo
Sacramento’” (pág. 47).
Há uma passagem deste livro que mescla História
e Ficção que ajuda a compreender o que ocorreria muito depois e se consumaria
com a decadência e posterior conquista pelos portugueses dos estados africanos
no território que é hoje Angola: “... Mas, para meu pai está tudo certo. O seu
processo interno de alienação de si próprio foi realizado com êxito. Tem à sua
volta uma corte de privilegiados, completamente subordinados aos interesses dos
portugueses que vão esvaziando o reino dos seus filhos, enviando milhares e
milhares de nossos irmãos para terras tão estranhas e distantes, donde nunca
houve regresso. Não sei o que o tempo ainda trará a estas terras. Eu já não
verei esses tempos...” (pág. 51, monólogo de D. Henrique, “enfraquecido,
deitado sobre a esteira, as febres intermitentes toldando-lhe a alma e o
pensamento”).
Mas “O incesto real” vai muito além dos
reinos do Kongo e de Portugal. Os descendentes de D. Pedro e Maria da Graça
movem-se no romance ao longo de quase 500 anos, até aos tempos actuais,
vivenciando os principais marcos da História de Angola, incluindo a eclosão da
luta armada de libertação nacional, a independência, a invasão sul-africana, a
guerra civil e a conquista da paz. Os últimos capítulos (“espiras”), muito mais
descritivos, ganham um ritmo acelerado, como se o autor tivesse pressa de
chegar ao fim. É nesta parte que parecem emergir as memórias biográficas do
autor, que começam na sua infância em Moçâmedes e a ida a Sá da Bandeira
(Lubango) para estudar no liceu. Diante da narrativa do recuo das FAPLA e dos
cubanos das principais cidades do litoral e do avanço das tropas sul-africanas
até ao rio Keve, às portas de Luanda, torna-se impossível não evocar a figura
do comandante Jujú que se notabilizou em 1975/76 como porta-voz do Estado-Maior
das FAPLA. Essa evocação é mesmo sugerida por um dos “narradores-comentadores”
quando exclama: “Até que enfim dás um ar da tua graça”.
“O incesto real” é um romance cuja acção se
desenrola nos interstícios da História, naquelas zonas de silêncio e penumbra
que não constam dos livros de História e que constituem um manancial para a
imaginação criadora dos escritores. Efectivamente, se a História é a narrativa
dos factos ocorridos, o romance histórico é a narrativa dos factos que não
tendo ocorrido poderiam ter
ocorrido.
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