terça-feira, 27 de abril de 2021

ROMANCE O IMPÉRIO KASSITUR, DE F. TCHIKONDO: Sonhar o futuro




Isaquiel Cori

O romance “O Império Kassitur na Dinastia Sekele”, de F. Tchikondo, editado pela União dos Escritores Angolanos, é a saga da família Sekele ao longo de várias gerações, abarcando o período de 1992 a 2070. Nesse longo lapso de tempo a família constrói o Império Kassitur, um muitíssimo bem sucedido grupo empresarial do sector turístico.

A narrativa, que estrategicamente resulta do relatório de um grupo de estudiosos encarregado, em 2150, de pesquisar a história dos Sekele, põe o leitor diante de um admirável mundo novo, em que a Física quântica enfim triunfou e concretizou-se na vida quotidiana através da informática quântica, da indústria quântica... Foram construídas pistas magnéticas por onde “trafegam viaturas de levitação dos mais variados modelos e potências e os mais modernos transportes movidos a electricidade, comandados por computadores quânticos, que enchem essas avenidas com os seus movimentos suaves, silenciosos e precisos”.  No deserto do Namibe funciona um sistema de lançamento para viagens a Lua e a Marte. Há liberdade sexual e a poliginia e a poliandria estão de “mãos dadas”. A sociedade é dominada pelas mulheres, que “ultrapassaram os homens em conhecimento, riqueza e liderança”. A educação e todas as “unidades das crianças” estão entregues a instituições públicas... A democracia subsiste completamente transformada: os partidos políticos extinguiram-se e reina um sistema dominado pelos grupos empresariais.

Mas desengane-se quem pensar que neste (naquele) mundo tudo é perfeito: a expansão do sistema quântico de comunicação por telepatia está a enfrentar dificuldades por causa de “doenças primitivas” como o coronavírus e o “mbumbi” em algumas localidades e de algumas pessoas que ainda não se libertaram dos preconceitos e acreditam no feitiço. E a criminalidade é uma realidade. “Os investimentos na indústria humanóide cresceram como resultado de especulações nas bolsas de valores”.

Angola é imaginada como “um dos principais destinos de investimento económico e de aplicações financeiras provenientes de todo o mundo”; “um sem número de empresas e homens de negócios deslocalizaram-se dos países ricos e desenvolvidos e vieram para Angola salvar o que restava das suas marcas e das suas imensas fortunas. Depressa alcançaram o sucesso”.

A narrativa é surpreendentemente ágil, envolvente, o que torna a leitura prazerosa e deixa o leitor à mercê do ritmo e do desenrolar da história, que é servida por uma urdidura engenhosa. Alguns dos momentos de maior dramaticidade estão centrados nos diálogos, bastante profundos e analíticos. É através dos diálogos que alguns personagens ficam marcados na memória do leitor.

Apesar do romance abarcar um período que vai até daqui a 150 anos, em que “fatalmente” haverá enormes transformações na língua portuguesa falada em Angola, o autor optou por uma linguagem que privilegia a comunicabilidade com o leitor actual, a quem são dadas as novidades “incríveis” do novo mundo. O romance  “O Imperío Kassitur na Dinastia Sekele” é, em primeiro lugar, um hino à liberdade de imaginação e de criatividade. Sonhar não é proibido.

 

ESCRITOR F. TCHICONDO “No futuro também haverá sociedades de conflito”



F. Tchikondo, pseudónimo literário de Francisco Queirós, o actual ministro da Justiça e Direitos Humanos, acaba de lançar (22/12) o romance “O Império Kassitur na Dinastia Sekele”, uma ficção no verdadeiro sentido da palavra, pois narra, em grande parte, uma sociedade ainda inexistente e, que, convenhamos, mesmo que não venha a existir poderia ter existido... O livro, que conta com um prefácio assinado pelo romancista Boaventura Cardoso, tem a chancela editorial da União dos Escritores Angolanos. O Jornal de Angola foi ao encontro de F. Tchikondo e com ele teve a conversa que a seguir se transcreve

 

Isaquiel Cori

 

F. Tchikondo trata-se de pseudónimo ou de heterónimo?

É nome mesmo, da minha avó que se chamava Albertina Tchikondo. Uso o nome Tchikondo não apenas para a homenagear, porque ela teve uma influência muito grande na minha educação, mas também porque as autoridades coloniais portuguesas não a registaram com esse nome. Aliás, nem registaram o meu pai como filho dela, o que é muito estranho, são atitudes coloniais inexplicáveis. O meu pai é filho de mãe incógnita. Então uma maneira de tornar o nome da minha avó conhecido foi passar a usar o nome dela como meu pseudónimo literário.

 

Como é que o romance “O Grande Império Kassitur na Dinastia Sekele” começou na sua cabeça? Surge primeiro como uma história, com os personagens a ganharem contorno, ou como uma tese?

Surge de uma preocupação. Nós temos uma determinada realidade, económica sobretudo, que tem as suas características próprias... Tem uma informalidade que me preocupa, porque a forma como estamos a geri-la pode perpetuá-la em vez de a combatermos. Fiz o mestrado em ciências jurídico-económicas e a minha tese, que aliás está publicada, foi exactamente sobre economia informal. Isso trouxe-me algumas preocupações, saber como será a economia daqui pra frente, como é que Angola com estas características económicas se poderá transformar numa Angola altamente desenvolvida economicamente, por um lado. Por outro, como é que as pessoas que vivem neste ambiente económico conseguem desenvolver a sua actividade empresarial e atingir níveis elevados de sucesso ao ponto de poderem criar verdadeiros impérios económicos. Então imaginei a história de um angolano normal, um cidadão que aos 9 anos fica órfão de pai e mãe, que morreram numa mina. Ele e a irmã salvaram-se, ele fica praticamente abandonado no mundo, aqui em Luanda torna-se menino de rua e passa pelas vicissitudes todas. A adolescência dele também é muito caracterizada pela vida na rua, tal como a juventude. É na juventude que ele começa a lutar para conseguir uma vida melhor. Entretanto tem uma relação com a mulher, com quem tem uma filha. A sua preocupação passa a ser dar uma boa vida à filha. Então começa a tentar ter sucesso económico...

 

... Não vamos contar a história aos leitores potenciais, deixemos que leiam o livro. O Império Kassitur é uma empresa, ou melhor, um grupo empresarial. Qual é o objecto social da Kassitur?

É um grupo empresarial de muito sucesso. O seu objecto principal é o turismo. Kassinda Sekele fundou a empresa com base no nome dele e no objecto social. A aglutinação de Kassinda e Turismo dá Kassitur. A empresa depois tem um sucesso enorme na conjuntura em que ele viveu, de 1992 pra frente.

 

A narrativa, pelo artifício adoptado pelo autor, é feita em 2170. Pressupõe-se que em Angola se terá chegado a uma sociedade em que a democracia funciona sem partidos políticos, substituídos por empresas. É este o sonho que o escritor tem para a sociedade angolana daqui a 150 anos?

Não diria um sonho. Talvez uma projecção da Angola que existirá dentro de 150 anos. Aliás, há três perguntas a que tento dar resposta através desta narrativa. A primeira é como será Angola daqui a 150 anos, a segunda é como chegaremos a essa Angola e a terceira como as pessoas que viverão daqui a 150 anos olharão para nós que vivemos agora. É um exercício que implicou usar a ficção científica para explicar os avanços tecnológicos e científicos que acontecerão necessariamente. Mas também foi necessário usar a imaginação para, partindo dessa realidade, da tal economia muito informalizada, etc., como é que a economia poderá tornar-se altamente desenvolvida, mas também como é que evoluirão os outros aspectos sociológicos, como é que a vida será do ponto de vista dos relacionamentos conjugais. Por exemplo, hoje já se nota uma tendência para o abandono do modelo antigo; o modelo conjugal que temos agora já vem de há séculos e vai sofrendo evoluções. Como será daqui a 150 anos? E do ponto de vista cultural como é que as pessoas pensarão? Porque os modelos, as referências, também evoluem, não são estáticas. Foi preciso fazer um exercício de imaginação, partindo de uma dada realidade actual mas também do histórico passado, e ver qual a linha de evolução que nos poderá conduzir a uma Angolade daqui a 150 anos.

 

Sendo o autor também membro do governo, portanto investido de altas funções políticas, e sendo que escrever um romance implica devanear, “andar nas nuvens”, F. Tchikondo fez uso de um interruptor mental que accionava enquanto ministro e depois desligava quando passasse à condição de ficcionista?

Não é difícil conciliar. Só é preciso ser organizado. No espaço das 24 horas do dia dá para fazer muita coisa. E depois há o espaço da semana, do mês, do ano, a vida... Dá para fazer política e aquilo de que se tem vocação, talento. E também dá para ficar com a família e os amigos. Enfim, dá para muita coisa se a pessoa for organizada. A literatura para mim aparece como um momento em que tenho espaço livre na minha mente. 

 

A razão da pergunta é que tendo o seu romance uma componente de ficção científica o devanear é maior do que se fosse um romance realista, o grau de abstracção é maior...

Este romance não é só ficção científica. A parte sobre o desenvolvimento científico e tecnológico é mesmo ficção científica e tive que me apoiar naqueles que estudaram Física. Estudei um autor, Michio Kaku, americano de origem japonesa, professor da Universidade de Nova Iorque. Li dois livros dele sobre Física.

 

Isso no quadro da preparação para a escrita?

Sim. Para fazer uma projecção para Angola daqui a 150 anos eu tinha que escrever e colocar o leitor a pensar como se já estivesse nessa época de daqui a 150 anos. Os personagens e os diálogos entre eles, a relação entre eles, os sistemas da época, etc., tive que visualizar sistemas, modelos já dessa época. E, para isso, no domínio tecnológico, interessou-me mais a componente da Física, por exemplo, para descrever aquilo que prevejo que venha a acontecer, a comunicação do pensamento por telepatia, a levitação magnética... é algo que está a ser estudado e que possivelmente acontecerá. E muitas outras coisas que só estudando os que se ocupam da Física é que nós podemos ter alguma percepção. E também ver como é que essa Física evolui e qual a sua linha de evolução. Por extrapolação aplico tudo isso à realidade angolana. E também no domínio da procriação talvez já não seja mais necessário, daqui a algum tempo, um homem e uma mulher para fazer um filho. A partir de uma célula pode vir a ser possível gerar um ser humano. Este romance não é só ficção científica, também tem, se assim quisermos chamar, ficção social, ficção cultural e ficção antropológica.

 

O seu romance parece projectar uma sociedade que reúne ao mesmo tempo as características de uma utopia e de uma distopia...

Repare bem. Eu não tenho a ilusão de prever uma sociedade perfeita. O raciocínio do livro não é no sentido de prever uma sociedade organizada, perfeita. Não. É no sentido de evoluir mas com os altos e baixos que qualquer sociedade tem. No passado houve e no futuro também haverá sociedades de conflito, mais ou menos inclusivas, mais ou menos excludentes. Tenho a perfeita consciência disso e sou coerente ao fazer essa projecção para daqui a 150 anos. Quando falo, por exemplo, do modelo político sem partidos, de uma democracia sem partidos, é olhando para a evolução. Neste momento quem se candidata para o poder são os partidos. E vemos que cada vez mais o acesso ao poder político é muito mercantilizado, por causa do sistema de marketing eleitoral que é cada vez mais caro. Os partidos hoje afirmam-se mais pelo bem sucedido do seu marketing do que pelas suas convicções e as suas ideologias. Vemos isso nos países mais desenvolvidos. É quem tem mais dinheiro para suportar um bom marketing político que tem mais possibilidades de chegar ao poder político. Ora, esse é um modelo que, mais cedo ou mais tarde, vai se auto-destruir, porque vai se chegar a um ponto em que as pessoas vão dizer “mas isto é comércio ou é mesmo política? E onde é que sai o dinheiro para os partidos se sustentarem e sustentarem campanhas com tão volumosas quantidades de dinheiro”?...

 

Essas ideias, que acaba de exprimir, são sustentadas no romance pelo personagem Michael Hossi. São ideias que o autor também defende? O autor identifica-se em grande medida com esse personagem?

Na verdade não é uma questão de estar de acordo ou não com esta visão. É uma constatação histórica. Nós somos críticos. Intelectualmente estamos no mundo mas não somos amorfos. Olhamos para os fenómenos e fazemos deles uma leitura e uma explicação, tentando responder a coisas que aparentemente não combinam bem. E esse sentido crítico leva a perguntar como é que seria, uma vez que o sistema de acesso ao poder pelo partido pode eventualmente implodir, qual seria o  sucedâneo, o que é que depois disso viria? Daí este exercício intelectual de antevisão, de especulação política e sociológia de como é que seria o outro sistema, possivelmente uma sociedade sem partidos políticos.

 

Sendo que, pela estratégia narrativa que adoptou, a história é contada através de um relatório de especialistas no ano 2170, verifica-se, entretanto, que a linguagem é a do português vernáculo actual, de 2020. Isso acontece porque a sua projecção, enquanto autor, é que em 2150 o português vernáculo será  ainda este de hoje?

Olha, essa foi a parte mais difícil e desafiante para mim. Era saber como as pessoas se comunicarão daqui a 150 anos. Tenho a consciência de que 150 anos atrás comunicou-se de uma determinada maneira. Felizmente temos registos históricos de como é que isso foi feito e da evolução que houve. Fazendo essa extrapolação para daqui a 150 anos necessariamente concluiremos que também haverá uma forma de comunicação, uma linguagem e até mesmo uma construção gramatical que será diferente. Aí não consegui ser criativo ao ponto de utilizar uma linguagem possivelmente da época, de daqui a 150 anos. Não consegui.

 

Privilegiou então o lado da comunicação com o leitor de hoje?

Com o leitor de hoje. Na verdade há coisas que é possível imaginar como é que serão daqui a 150 anos. Sobretudo na tecnologia é muito fácil fazer a extrapolação. Mas na linguagem, nas questões sociológicas, antropológicas e culturais é muito mais arriscado.

 

Essa extrapolação seria sempre ficção...

Seria sempre ficção. Mas uma ficção que exigiria um grau de abstracção de uma forma muito mais apurada. Eu teria que ter um conhecimento da evolução linguística e conhecimentos científicos da língua para poder esticar o raciocínio e a criatividade até ao limite e criar então um modelo de linguagem. Quem sabe num outro romance eu consiga fazer esse exercício...

 

Há neste romance marcas, referências, que apontam para situações deste ano de 2020. Fala-se no vírus Corona versão 2019, fala-se numa pandemia... O livro foi escrito este ano?

Não, já vinha sendo escrito há um ano e meio, dois anos... Mas para dar explicação e sustentação lógica a alguns acontecimentos foi necessário tomar mão de realidades actuais. Por exemplo, para que Angola se transforme e tenha alterações mais ou menos radicais, em alguns casos revolucionárias, de rotura com o passado, é preciso que aconteça algo que provoque isso. Ora, esse algo para mim foi a existência de uma guerra global que tem aspectos de guerra biológica que não são de excluir. Claro que não será uma guerra mundial como a de 1914/18 com aquela visão clássica de matança, etc., é uma guerra global dos tempos actuais em que se usa mais a força do domínio económico, do domínio dos mercados, da religião e dos sentimentos religiosos, etc., etc. Essas armas, digamos assim, da guerra global hodierna é que utilizei para justificar uma rotura com o passado. Portanto acontece uma guerra global que proporciona uma alteração nos sistemas a nível global e sobretudo de Angola. É nesse contexto que falo do coronavírus como uma possível arma biológica que levou o mundo a alterações. Ainda é cedo para dizermos quais são os efeitos estruturantes ou desestruturantes na vida das pessoas e da humanidade por causa do corona, mas já podemos prever que alterará modelos, sistemas, o que fará com que a vida se altere profundamente.

 

Aparentemente enquanto escritor a sua socialização ocorreu na relação com escritores como Pepetela, Boaventura Cardoso e Adriano Botelho de Vasconcelos. Considera-se como pertencendo à geração destes autores? Como é que se situa na linha geracional da literatura angolana?

O que procurei no Pepetela, no Adriano Botelho de Vasconcelos e no Boaventura Cardoso foi sobretudo a experiência literária. Considero que é uma responsabilidade grande escrever para o público. Não podemos fazer as coisas de ânimo leve. Aconselhei-me com eles de uma maneira muito aberta. E eles também tiveram a gentileza de me apoiar, aconselhar e me ensinar mesmo como é que se faz literatura. São pessoas com quem tenho uma relação de amizade e foi com uma facilidade grande que se proporcionou o diálogo. Mas identifico-me muito com os escritores recentes, como o Ondjaki, por exemplo, ou o (Roderick) Nehone, que apesar de já não ser muito jovem é da nova geração, o Carmo Neto que também é da nova geração, enfim, identifico-me muito com a literatura jovem, embora reconheça que temos que trabalhar bastante, sobretudo inculcar hábitos de leitura na nossa sociedade. Escrever um livro é muito caro, é um prejuízo. Quem escreve o faz por paixão, mas perde dinheiro. Se o mercado fosse mais consumidor...  Mas não há hábitos de leitura. Se houvesse a apetência da sociedade em comprar livros talvez houvesse mais literatura jovem ou de jovens escritores.

 

Essa questão da difusão da leitura e do livro passa por medidas de Estado que permitam tornar mais barato o papel, a produção e o próprio livro, além da criação de muito mais bibliotecas. Enquanto membro do governo certamente terá uma palavra em relação a tudo isso...

Os mecanismos que o governo usa para incentivar esta ou aquela prática que convém às políticas do goevrno são os instrumentos financeiros. Não necessariamente dar dinheiro, mas sobretudo isentar impostos, fazer com que pelo não pagamento do imposto ou então pela redução de impostos aquele que se dedique a esta actividade escrevendo ou editando ou produzindo o livro materialmente nas gráficas tenha um custo de produção baixo com um regime fiscal adequado. Creio que já existe um regime especial. Este é um caminho. E havia também que incentivar mais à leitura, porque sem um mercado literário de consumo mesmo que os livros sejam baratos vão ficar nas prateleiras.

 

O que é que mais o desafiou na escrita deste livro?

A escrita deste livro mexeu muito comigo do ponto de vista da criatividade e da imaginação. Como é que os que viverão daqui a 150 anos olharão para nós? Há uma parte muito substancial do livro que é dedicada a isso. São os herdeiros do Kassinda Sekele, seus bisnetos e trisnetos, que farão a sua leitura retrospectiva tentando descobrir como é que o bisavô ou trisavô chegou onde chegou e então fazem juízos, avaliações, leituras no meio de umas histórias muito interessantes porque são baseadas na época actual, sobretudo desde 1992, quando o regime económico e político se altera e vamos para uma política de mercado, sendo a partir daí que as pessoas começam a se posicionar para ficarem ricas. Essa componente de como é que as pessoas em 2170 vão olhar para nós foi muito desafiante para mim.

 

O exercício da escrita literária coloca o indivíduo numa situação de fragilidade, de vulnerabilidade emocional e até mesmo física. Como é que conciliou e encarou o contraste entre uma actividade que o vulnerabiliza, em que põe as suas emoções e os seus sentimentos mais profundos a nu e a outra actividade, a de governante, em que deve evidenciar autoridade e não ter as emoções à flor da pele? 

É conciliável desde que a pessoa paute a sua conduta por princípios. Se a pessoa, que é o meu caso, seguir valores de rectidão, de verticalidade e sobretudo os valores que eu prezo muito e que aplico desde quando fui ministro da Geologia e Minas e agora enquanto ministro da Justiça, que são a transparência, a lealdade e o rigor. A minha vida toda é marcada por esses três princípios. Na transparência eu não escondo as coisas; e para não esconder esforço-me para não fazer coisas más. Só se esconde aquilo de que a gente tem vergonha. Se tenho coisas más na minha vida não posso ser transparente. Procuro levar uma vida que me permita mostrar o que sou sem receio e sem estar com muitas voltas a explicar isto ou aquilo. Não tenho receio de ser visto assim e que as pessoas façam uma radiografia do meu interior pela transparência que eu próprio sigo. E depois há a lealdade. Eu tenho que ser leal à linha do meu partido, à liderança do meu líder político que é o Presidente da República, tenho de conhecer o pensamento dele e tenho que ser leal a isso. Há-de notar que a narrativa apesar de ter temas delicados e mesmo controversos não foge à lealdade. Pelo contrário procura fazer com que haja uma visão que está alinhada, embora não sendo aquele alinhamento canino que estraga tudo.

 

Em algum momento enquanto criador se sentiu na necessidade de se auto-censurar, de delimitar o âmbito da sua criatividade para estar em linha com  o pensamento político vigente?

Sim. Necessariamente eu tenho que ser auto-crítico e tenho que me impor limites, porque estou inserido numa determinada sociedade, estou inserido politicamente num determinado contexto e estou inserido também enquanto dirigente político. Eu tenho que fazer a minha narrativa literária não comprometendo a coerência com essas inserções, porque senão são duas pessoas e eu não sou duas pessoas. Sou apenas uma pessoa. Quando o entusiasmo da escrita me leva a uma determinada direcção tenho de ter a capacidade de auto-crítica e dizer que essa direcção não é correcta, posso fazer a mesma coisa mas utilizando um método mais de acordo com o sistema e o pensamento actual.

 

Na linha de evolução do sistema democrático, conforme narrado no romance, os partidos políticos vão acabar por desaparecer. Prega-se uma democracia sem partidos. Não tem receio que isso venha a ferir susceptibilidades no seio do seu partido?

Não tenho, porque vejo o lado positivo disso. Temos de ter consciência de que nada é estático, tudo muda. A própria dinâmica partidária de organização e funcionamento também evolui. Se há essa evolução temos a obrigação, hoje, de pensar como é que poderá ser amanhã e prepararmo-nos já. Penso que com esta especulação acabo por dar um contributo não só ao partido a que eu pertenço mas aos partidos em geral, para começarem a ver que tudo isso pode vir a desaparecer. E se desaparecer estamos preparados? Portanto, é um pouco no sentido construtivo dessa visão que eu falo nisso. E não tenho receio de falar porque não estou a criticar para destruir um modelo que existe, é apenas para fazer uma especulação, se quisermos, político-científica de como é que as coisas evoluirão. E esse tipo de projecção é aconselhável que se faça, não só nesse domínio mas também noutros. Mesmo na nossa vida pessoal temos a obrigação de ver se hoje é assim como é que amanhã poderá ser, para não sermos apanhados desprevenidos e não ficarmos perdidos quando as coisas acontecerem.

 

 

Romance “O Incesto Real”, de Júlio de Almeida "Jujú": FICÇÃO NOS SILÊNCIOS DA HISTÓRIA

“O incesto real” é um romance cuja acção em grande parte se desenrola nas zonas de silêncio e de penumbra da História e que são um manancial para a imaginação criadora dos escritores

 

Isaquiel Cori






 Para a escrita de “O incesto real” Júlio de Almeida pesquisou documentação histórica sobre o Reino do Kongo, os primórdios da presença portuguesa no território que seria Angola e a correspondência entre os soberanos do Kongo e de Portugal, bem como sobre a presença secular e “silenciosa” de negros naquele país europeu.

O pano de fundo sobre o qual grande parte da trama do romance é construída é aquele período histórico que se inicia no século XV, com as viagens marítimas protagonizadas essencialmente por Portugal e Espanha e que alguns historiadores chamam Descobrimentos, outros Encontro de Civilizações e outros ainda Primeira Globalização. Mas é já no século XVI que os personagens iniciais do romance entram em cena, já Diogo Cão fizera duas viagens de exploração à costa ocidental de África em que entrara em contacto com o soberano do Reino do Kongo. Precisamente no seu segundo regresso a Portugal o navegante carregara num dos seus barcos uma comitiva enviada por Mvemba a Nzinga, o Mani Kongo, que, baptizado em 1491, adoptara o nome Afonso I. Faziam parte da comitiva membros da corte, incluindo D. Henrique, filho de Afonso I, de 12 anos de idade, e outros familiares do soberano.

Já em Portugal o konguês D. Pedro, primo como irmão de D. Henrique, envolve-se com a portuguesa Maria da Graça, que dá a luz os gémeos Vagá – de “Vasco da Gama” – e Gavá – “Gama de Vasco”. É através das peripécias de ambos, com trajectórias de vida diferentes, e da sua descendência, que a trama do romance se adensa.  Vagá, remetido ao extremo sul de Portugal, torna-se pai de Gamahl, com a bailarina Leila. Gamahl é descrito como “um dos mais originais homens do século XVI, o primeiro luso-conguês-marroquino – espécie única do género humano – que nunca estivera nos planos do Criador”... e que se tornaria membro da guarda pessoal de D. Sebastião “O Desejado”, o rei de Portugal que desapareceria na batalha de Alcácer-Kibir, no Marrocos em 1578.

Por sua vez Gavá, pelas voltas que o destino dá, ou se assim o entendermos, que só a ficção permite e concebe, em 1536 chega ao Reino do Kongo, onde ainda reinava Mvemba a Nzinga, que então sobrevivera a “três reis dos portugueses” e ao próprio D. Pedro, o pai dos gémeos falecido em S. Tomé em “situação de evidente cativeiro”. Tanto o rei Mvemba a Nzinga, seu tio-avô, como o próprio Gavá, desconheciam que eram parentes.

Em resumo, o romance abarca séculos da história de uma família real konguesa cujos descendentes kongueses-portugueses se espalham em dois ramos pelo mundo, misturando-se biológica e culturalmente com as populações que encontram, se aproximam e se reencontram, sem o saberem - como durante a guerra civil em Angola - em campos opostos. 

O livro contém duas narrativas. Na primeira, que constitui o fio condutor do romance, o autor trata de “preencher lacunas” e silêncios da História. E faz isso insuflando vida a figuras que vão desfilando pelo romance ao longo de mais de 400 anos. A “outra” narrativa, grafada em itálico, que não chega a ser paralela porque converge permanentemente para a primeira, é animada por dois personagens-leitores que comentam e problematizam a primeira narrativa, em muitos casos clarificando-a ou actualizando-a.

 

Manancial para imaginação

O romance por vezes se evidencia mais como narrativa histórica, explicitando a verdadeira natureza das relações entre os reinos do Kongo e de Portugal. A citação de trechos de cartas trocadas entre os respectivos soberanos e outros documentos é tão profusa que se fica com a tentação de correr para as últimas páginas em busca das referências bibliográficas que obviamente não existem.

A relação entre os dois reinos era desigual. D. Afonso (Mvemba a Nzinga) “várias vezes havia escrito ao monarca português D. Manuel, denunciando o trato havido pelos súbditos com as suas gentes, mais interessados no comércio e no resgate de escravos do que no trabalho de construção de edificações em alvenaria, no cultivo e preparação do pão e no ensino de ofícios em que eram mestres e de que carecia o seu reino.

D. Afonso clamava que havia ‘necessidade de mais do que de padres de algumas poucas pessoas para ensinarem nas escolas, nem mesmo de nenhumas mercadorias, somente vinho e farinha, para o Santo Sacramento’” (pág. 47).

Há uma passagem deste livro que mescla História e Ficção que ajuda a compreender o que ocorreria muito depois e se consumaria com a decadência e posterior conquista pelos portugueses dos estados africanos no território que é hoje Angola: “... Mas, para meu pai está tudo certo. O seu processo interno de alienação de si próprio foi realizado com êxito. Tem à sua volta uma corte de privilegiados, completamente subordinados aos interesses dos portugueses que vão esvaziando o reino dos seus filhos, enviando milhares e milhares de nossos irmãos para terras tão estranhas e distantes, donde nunca houve regresso. Não sei o que o tempo ainda trará a estas terras. Eu já não verei esses tempos...” (pág. 51, monólogo de D. Henrique, “enfraquecido, deitado sobre a esteira, as febres intermitentes toldando-lhe a alma e o pensamento”). 

Mas “O incesto real” vai muito além dos reinos do Kongo e de Portugal. Os descendentes de D. Pedro e Maria da Graça movem-se no romance ao longo de quase 500 anos, até aos tempos actuais, vivenciando os principais marcos da História de Angola, incluindo a eclosão da luta armada de libertação nacional, a independência, a invasão sul-africana, a guerra civil e a conquista da paz. Os últimos capítulos (“espiras”), muito mais descritivos, ganham um ritmo acelerado, como se o autor tivesse pressa de chegar ao fim. É nesta parte que parecem emergir as memórias biográficas do autor, que começam na sua infância em Moçâmedes e a ida a Sá da Bandeira (Lubango) para estudar no liceu. Diante da narrativa do recuo das FAPLA e dos cubanos das principais cidades do litoral e do avanço das tropas sul-africanas até ao rio Keve, às portas de Luanda, torna-se impossível não evocar a figura do comandante Jujú que se notabilizou em 1975/76 como porta-voz do Estado-Maior das FAPLA. Essa evocação é mesmo sugerida por um dos “narradores-comentadores” quando exclama: “Até que enfim dás um ar da tua graça”.

“O incesto real” é um romance cuja acção se desenrola nos interstícios da História, naquelas zonas de silêncio e penumbra que não constam dos livros de História e que constituem um manancial para a imaginação criadora dos escritores. Efectivamente, se a História é a narrativa dos factos ocorridos, o romance histórico é a narrativa dos factos que não tendo ocorrido poderiam ter ocorrido.   

 

 

JÚLIO DE ALMEIDA “JUJÚ”: “É falso que Angola tenha começado com o Reino do Kongo e as suas relações com Portugal”




Escritor bissexto, Júlio de Almeida “Jujú” acaba de publicar, aos 80 anos, o seu segundo romance, “O incesto real”, sob a chancela da editora Kacimbo. O primeiro, “VAICOMDEUS”, foi publicado há 15 anos. Na entrevista que a seguir se publica, o escritor fala do seu novo livro e das questões que o mesmo suscita. Defende que Angola “como entidade territorial, tal como a temos hoje, é muito recente” e que “é falso que tenha começado com o Reino do Kongo e as suas relações com Portugal”. E explica os motivos que o levaram, em 2003, a abandonar a condição de deputado pelo MPLA, partido que, segundo disse, “tem vindo a perder o charme político e filosófico”  e a dar tiros nos pés com posicionamentos “a maior parte deles movidos pela táctica imediata e não baseados num ideário político consequente”  

 

Isaquiel Cori

 

Fale-nos, por favor, da génese deste livro. Como é que tudo começou, que inquietações ou motivações o levaram a escrevê-lo?

A génese deste livro foi determinada por duas vertentes: a primeira foi motivada pelo apregoado slogan de África ser o “berço da humanidade”. Se assim é, então somos todos primos uns dos outros e temos um antepassado comum, a Lucie (o mais antigo dos humanos conhecido) que, se fosse viva teria hoje 3,2 milhões de anos. A segunda vertente tem a ver com o demasiado desconhecimento que as actuais gerações têm da sua própria história. Fala-se (erradamente) em 500 anos de colonialismo, como se as relações entre os povos de Angola e Portugal fossem linearmente sempre iguais, tanto faz que se fale do ano 1500 ou do ano 2000.

 

O seu romance tem um grande suporte de pesquisa histórico-documental. Essa pesquisa foi feita em Angola e no exterior? Em quanto tempo?

As fontes para a escrita deste livro foram de duas ou três ordens: a primeira decorre de muitas leituras de fontes escritas existentes sobre as diferentes épocas que o texto cobre; a segunda sobre pesquisas feitas na Net; e a terceira sobre memórias e lembranças pessoais, que não são a mesma coisa, sendo que designo de memórias factos e situações por mim vividos, enquanto que lembranças são também factos e situações de que tive conhecimento, mas que aconteceram ou foram vividos por outros.

 

O Reino do Kongo continua a inspirar os escritores angolanos. No seu caso concreto, onde reside o poder de atracção do Reino do Kongo?

O Reino do Kongo, ou melhor o encontro deste Reino com parte dum mundo longínquo e tão diferente, representa um choque de civilizações, cujo estudo é sem dúvida aliciante. Se tivermos em conta a correspondência trocada pelo Rei do Kongo Mvemba a Nzinga com três sucessivos reis de Portugal, estaremos em presença, em primeira mão, da visão autóctone da história mútua daqueles dois reinos, história essa que habitualmente só é contada por uma das partes. Por essa razão é dado relevo especial ao conteúdo das cartas escritas pelo Reino do Kongo.

 

D. Pedro, o primo-irmão de D. Henrique, é uma figura que realmente existiu ou é fruto da imaginação do escritor?

O personagem D. Pedro faz parte da ficção do livro. O facto de ter sido pai de dois gémeos é pura invenção minha. Mas aconteceu mesmo que um primo-irmão de D. Henrique fez parte dos integrantes da comitiva do futuro bispo. Aproveito a oportunidade para declarar que, apesar das pesquisas por mim feitas, não encontrei relato algum em que se dissesse qual o nome original (kikongo) quer do primo, quer do próprio D. Henrique. E essa lacuna persegue-me desde que há 60 anos, pela primeira vez, tomei contacto com “histórias” sobre este Reino.

 

D. Henrique, o filho do Mani Kongo Mvemba a Nzinga (D. Afonso I), apesar de ordenado bispo, ao longo da sua vida não terá realizado actividades “em prol da organização eclesiástica” no Reino do Kongo. Terá sido então um prelado relutante?

A actividade eclesiástica de D. Henrique no Reino do Kongo, também não mereceu destaque na documentação histórica, salvo a que está ligada ao seu contacto com o Papa da altura e as condições em que foi ordenado padre e posteriormente nomeado como Bispo de Útica, mesmo sem bispado, como se refere no livro.

 

Ao ler o seu livro fiquei com a impressão de que, mais do que um romance, é na verdade um ensaio sobre as origens de Angola. É no Reino do Kongo, na dinâmica das suas relações com Portugal, que Angola começa?

Não me parece correcto, ou melhor, é falso que Angola tenha começado com o Reino do Kongo e as suas relações com Portugal. Angola, como entidade territorial, tal como a temos hoje, é muito recente e, nas suas origens e contactos com os mundos exteriores, é composta por muitas parcelas. Mas que a dinâmica das relações entre os diferentes reinos que hoje integram Angola e o mundo exterior contribuíram para o que hoje é Angola, é facto incontestável. E merecem outros livros, de história ou de ficção, que sem dúvida irão aparecer.

 

O seu livro vem colocar-se no centro de discussões muito actuais sobre identidade e nacionalidade. Esse tipo de discussão 45 anos depois da nossa independência o inquieta?

Claro que me inquieta, como ao longo de minha vida a condicionou em parte, estas questões de identidade e nacionalidade. Não há como escapar ao facto de ainda não  sermos “uma só Nação”, embora todos devemos ter idêntico Bilhete de Identidade. Pode-se contribuir positivamente na questão de termos a mesma identidade ou contribuir  negativamente. A primeira Lei Constitucional que representava a ideologia de quem organizou e participou na luta armada de libertação nacional defendia identidade de angolano baseada em dois vectores de per si: jus soli (nascido(a) em Angola é angolano(a); e jus sanguini (filho(a) de angolano(a) é angolano(a).

Esta representa uma contribuição abrangente na questão da identidade, o que é contrariado na actual Constituição que exclui o jus soli. Houve mesmo uma lei que determinou que o BI não fosse idêntico para todos, mas onde se legislou a diferenciação rácica dos cidadãos. Felizmente que acabou por ser revogada esta manifestação de racismo. Somos ou não todos descendentes da Lucie? Quem é racista ou tem preconceitos rácicos ainda não percebeu que também, ele próprio, é simplesmente humano. Talvez, com o Tempo (o personagem e narrador do meu livro) ele venha a aprender a ser humano.  O Incesto Real existiu ou não?

 

Quando diz que pessoalmente as questões de identidade e nacionalidade condicionaram em parte a sua vida, pode ser mais concreto?

Embora o MPLA sempre tenha demonstrado uma opção política humanista e universal, portanto anti-racista, e eu próprio tenha feito a licenciatura em Engenharia com uma bolsa de estudos (1962 a 1968) da UGEAN – União Geral dos Estudantes da África Negra sob dominação colonial portuguesa – que era uma organização afecta ao Movimento, de facto só a partir de 1968, na Conferência da Frente Leste, foi instituído o princípio de indivíduos de “raça” branca poderem ser considerados angolanos e integrarem em plenitude o Movimento. Tal aconteceu pela primeira vez, com o médico Tó Zé Miranda, em 1969, e eu próprio aguardei em Argel, desde fins de 1968 até fins de 1971, que me chamassem e fosse integrar os quadros da Frente Leste. É só um exemplo.

 

O seu livro não se fica pelo Reino do Kongo. A infância de Nzadi em Moçâmedes nos anos 1950 confunde-se com a do autor? São as suas memórias de infância?

A espira de tempo dedicada a Moçâmedes é, de certo modo, uma homenagem àquela região do nosso País. E socorri-me, como fica evidente, de memórias e lembranças desses meus tempos de menino e adolescente.

 

Nos capítulos (espiras) finais o comandante Jujú parece emergir com as suas memórias. Isso é sinal de que já não vai escrever a sua auto-biografia?

As espiras finais deste Incesto Real ocorrem de facto num espaço de tempo por mim vivido. Não são “as minhas” memórias, mas – com base no que realmente aconteceu – representam a ficção do autor sobre os mais recentes factos históricos. Os percursos dos personagens são minha ficção. Os factos são históricos e são mais importantes do que a minha biografia.

 

Volto a colocar a questão: tem em agenda a escrita da sua biografia, dada a sua qualidade de partícipe e testemunha importante de processos históricos decisivos na consolidação da independência do país?

Não pretendo escrever a minha biografia para além do que já foi dito e escrito em diversas entrevistas e o que de autobiográfico ressalta dos dois romances por mim escritos.

 

Assumiu cargos públicos de relevância mas a dada altura retirou-se da vida política. O que o fez tomar essa decisão?

Eu retirei-me da vida política em 2003, quando perfiz 63 anos de idade. Na altura era deputado e, por escrito, expliquei à direcção do Grupo Parlamentar, sem fazer grande alarde, que já não me revia nas opções políticas que eram seguidas pelo Movimento. E, deste modo, não participei no banquete a bar aberto que se estendeu pelos seguintes 14 anos que, diga-se, foi só para convidados.

 

O estado de coisas actual no seio do Movimento, estamos a falar do MPLA,  em matéria de opções políticas, ainda não é convidativo para um eventual regresso como militante? Quais são as opções estratégicas do MPLA de hoje que lhe desagradam particularmente?

O MPLA tem vindo a perder o charme político e filosófico que já teve e eu, aos 80 anos, também os perdi, o charme, a energia e a atracção do antigamente. O que mais me desagrada são “os tiros nos pés” que conformam vários posicionamentos do Movimento, a maior parte deles movidos pela táctica imediata e não baseados num ideário político consequente, apesar das muitas críticas, sugestões e propostas que vários ex-militantes vêm fazendo publicamente.

 

Já está a escrever um outro livro ou está ainda a viver a ressaca d’O incesto real?

O Incesto Real aparece vinte anos depois do lançamento do VAICOMDEUS. E só começou a “viver” agora, isto é, a ser lido. Não tenho a certeza se haverá um terceiro romance. Deixemos o Tempo aconselhar.

 

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Perfil

 

Júlio de Almeida “Jujú” nasceu na província do Namibe em 1940. Licenciado em Engenharia Mecânica (1962/1968), trabalhou de 1968 a 1971 como engenheiro em Argel, onde integrou a delegação local do MPLA e o Centro de Estudos Angolanos. Foi comissário político na Frente Leste entre 1971 e 1974. É co-signatário da Proclamação das FAPLA.

Tornou-se bastante conhecido entre os angolanos entre 1975 e 1976, na qualidade de porta-voz do Estado-Maior das FAPLA, quando diariamente comunicava à imprensa sobre a situação político-militar. Foi vice-ministro dos Transportes (1976/1983) e trabalhou na qualidade de engenheiro entre 1983 e 1992 como director de Estudos e Projectos. Entre 1984 e 2014 foi professor na Faculdade de Engenharia da Universidade Agostinho Neto. Foi ainda deputado à Assembleia Nacional pela bancada do MPLA, de 1992 a 2003. É membro fundador da Associação Tchiweka de Documentação.





domingo, 15 de novembro de 2020

UMA HISTÓRIA ANTIGA: Das manifestações e da incapacidade do Governo lidar com as mesmas*

A incapacidade das autoridades angolanas lidarem com manifestações convocadas por forças sociais que lhe são adversas já vem de longe. No meu livro “Dias da Nossa Vida” – romance – publicado em 2018 mas escrito entre 2014 e 2016, é descrita uma manifestação de estudantes universitários e a forma como as autoridades da província se posicionaram e lidaram com a mesma. A cena tal como está narrada - e as figuras concretas que nela se movem - é ficção. Mas uma ficção imensamente nutrida pela realidade que envolvia o autor. Publico abaixo um excerto da tal cena. O resto só lendo mesmo o romance, editado pela Acácias.

 ISAQUIEL CORI

“Mesmo com toda a carga de vigilância humana e electrónica sobre si, o núcleo duro do movimento de jovens estudantes, nos últimos tempos, conseguia alcançar zonas de sombra e de silêncio em que estava completamente fora do alcance dos Serviços. Foi aí, numa dessas zonas, que esse núcleo congeminou as acções de enfrentamento às autoridades. 

        Nas primeiras horas da manhã de sábado, os primeiros grupos de estudantes convergiram para o largo Angola Avante. Vestidos de camisolas e chapéus brancos, alguns dos jovens carregavam cartazes toscos de papelão com inscrições, bem visíveis, contra a corrupção no ensino e na governação e por mais saúde e emprego. Outros aludiam à falta de liberdade de expressão. Em pouco tempo juntaram-se, no largo, umas largas centenas de jovens, alegres e barulhentos nas suas reivindicações. O Governador retirara-se, um dia antes, para a sua fazenda, e deixara ordens expressas para que, numa eventualidade como a que ocorria agora, Reinaldo Bartolomeu coordenasse as acções das forças de segurança e ordem pública.

        Reinaldo ainda foi a tempo de embarcar o sogro e a cunhada no voo de regresso a Luanda. Transformou a sala de operações dos Serviços de Informação em gabinete de crise e desencadeou, imediatamente, os primeiros passos do plano de contingência.

       

        - Como estamos, comandante? O desdobramento das forças e meios, está feito?

        - Sim. Colocamos um cordão de homens e meios em redor do largo e reforçamos a guarnição e o patrulhamento nos acessos e junto ao Palácio e às instalações da rádio e da televisão. Eles estão isolados. Mas quanto mais cedo os desbaratarmos melhor, evitamos o risco de ganharem simpatia e atraírem mais gente para a sua causa.

        O Comissário Zebedias António era um homem essencialmente prático, como aliás a maioria dos antigos comandantes de brigada das ex-FAPLA. Mais do que um polícia, raciocinava como um militar. E mal conseguia esconder o desagrado por estar a ser chefiado por alguém que ele considerava civil. Era um problema antigo, esse, da má relação institucional entre a Polícia e os Serviços de Informação. Os policiais queixavam-se, muitas vezes, da arrogância e autossuficiência dos agentes dos serviços de inteligência, além de se sentirem enciumados com as regalias materiais de que estes eram contemplados pelo poder político.

        - Vamos acabar com esta manifestação. Mas antes de usarmos a força tentemos convencer os cabecilhas a desmobilizarem voluntariamente.

        - É uma perda de tempo. Veja o que acontece em Luanda. É carregar contra eles e matarmos o mal pela raiz. É preciso não dar asas a esses miúdos. Largamos os cães contra eles e eles fogem com o rabo entre as pernas.

        Reinaldo sabia desse tipo de abordagem e não concordava com ela. Sentia que o Governador, preocupadíssimo com a estabilidade social e política da província, queria, a todo o custo, evitar um banho de sangue. Politicamente saíra de cena e deixara a responsabilidade a Reinaldo. O Comissário Zebedias António não estava sozinho naquele tipo de visão. Em alguns meios castrenses, e até de um certo núcleo político, emergiam, cada vez mais, manifestações de intolerância em relação à diferença, e até mesmo de cansaço em relação à paz. Mas eram minoritários, apesar de serem fortes e estarem bem incrustados no coração do poder político e militar.

     - Comissário Zebedias, vamos dar uma oportunidade ao bom senso. Vamos conversar com os miúdos, a ver no que é que dá.

        - Não vamos cometer, premeditadamente, erros. Não estamos em tempo de conversa. Esses, que você chama miúdos, podem ser a nossa perdição. Os nossos cães estão a salivar, a espera de serem largados. Não compreendo essa hesitação.

        Reinaldo captou o tom de desprezo na voz do Comissário. Estava a ser tratado por cobarde.

        - A autoridade suprema, aqui, sou eu. Comissário, tem dúvida?

        Zebedias António levantou-se e foi fumar um cigarro à janela. Aí, iluminada directamente pela luz do sol, ficou bem clara a cicatriz espessa que lhe ia da parte inferior da orelha esquerda e desaparecia sob a gola da camisa do uniforme policial. Era resultado da guerra. Reinaldo fez tenção de proibir-lhe de fumar aí, mas foi interrompido pelo toque do telefone portátil. Era o Chefe Admirável Redondo. Afastou-se com o telefone para o seu gabinete.

        - Bom dia, Chefe.

        - Já acabaram com a confusão? Mande-me já o relatório a dizer que está tudo acabado. Vocês estão na boca do mundo. Essa manifestação está a abrir telejornais lá fora. Não se fala de outra coisa. Recebi ordens para evitarmos sangue. Nada de sangue. Mas acabe com a merda dessa manifestação.

        - Está tudo a postos, Chefe. Eu, pessoalmente, vou explorar uma última possibilidade de conversa, antes de usarmos a força.

        - Como? Pessoalmente? Não brinques com as multidões.

        - É uma última tentativa, Chefe. De contrário, vai correr sangue. Muito sangue.

        Seguiu-se um longo silêncio. A possibilidade de derramar sangue de jovens desarmados silenciou Admirável Redondo. Os tempos não iam de feição para esse tipo de coisas.

        - Avança como pensas. Dá-me o relatório definitivo, imediatamente a seguir.

        - Está bem, Chefe.

        Reinaldo, mais do que sentiu, viu claramente um lavar de mãos por parte do chefe. O destino dos jovens e a reputação de todo o sistema estavam nas suas mãos. Regressou à sala de crise, com um brilho de determinação renovada nos olhos, e reassumiu, ostensivamente, o comando de toda a operação.

        Zebedias António, militar de formação e experiente, sabia obedecer às ordens.”

*Excerto do romance DIAS DA NOSSA VIDA, de ISAQUIEL CORI

Foto da Editora Acácias

sexta-feira, 16 de outubro de 2020

POETA ANTÓNIO GONÇALVES: "A UEA precisa de adaptar-se aos novos ventos"





Publicou no princípio deste mês, pela Editora Acácias, na colecção Troncos da Literatura Angolana, o livro de poemas Os Livros dos Ancestrais. Motivo mais que suficiente para o entrevistar. António Gonçalves fala nesta entrevista do seu livro, que segundo disse resulta das suas vivências na centralidade do Sequele e da reflexão em torno da ancestralidade. Mas também recua no tempo e descreve o ambiente da sua infância e os factores que o terão levado ao hábito de leitura. Por fim, caracteriza o desempenho actual da União dos Escritores Angolanos, de que já foi secretário-geral. A UEA está transformada num “corpo amorfo que não tem dinamismo e está muito aquém dos interesses da sociedade angolana e muito menos da literatura angolana”. Sentencia sem “papas na língua”.

  ISAQUIEL CORI

Como é que surge este Os Livros dos Ancestrais, a começar pelo título?

Comecei por projectar uma homenagem ao lugar em que resido actualmente, que é a Centralidade do Sequele e então concebi um livro que se chama Icónico Postal do Sequele. À medida que este livro foi tomando corpo surgiu o poema Utima, que significa “coração” em umbundu. De repente escrevi vários textos, que totalizaram 21, que se transformaram num livro à parte. Como notei que sobretudo o primeiro livro tinha uma carga relacionada com os nossos ancestrais, decidi juntar os livros num só e dei-lhe o título de Os Livros dos Ancestrais.

 

O primeiro livro, ou primeira parte de Os Livros dos Ancestrais, faz uma imersão até então literariamente inédita nesses novos aglomerados urbanos que são as centralidades. O que de diferente, em termos poéticos, captou relativamente aos outros lugares onde viveu?

É uma experiência diferente. Embora tenha crescido no Bairro Neves Bendinha, que antes se chamava Bairro Cemitério Novo e depois Bairro Popular, frequentei muito o Rangel e o Cazenga, onde tinha familiares, bem como o Sambizanga. É uma vivência muito própria que se diferencia das zonas urbanas como a Ingombota ou o Kinaxixi. O que vamos encontrar nas centralidades, sobretudo na onde vivo, são pessoas oriundas daqueles bairros que trouxeram os seus hábitos e costumes. Mas elas tiveram também que se adaptar ao novo meio, já que somos todos pioneiros nisso de conhecer como viver em centralidades, em que no caso do Sequele, apesar de ser aberta, há normas, regras. No meio de tudo isso há personagens que se destacam.

 

Que se destacam e alguns dos quais aparecem poetizados no livro.

Sim. Como uma espécie de historiador tentei fixar aquilo que são os primeiros anos de vivência do Sequele. Fi-lo não só em função do que vi, mas também trabalhando-os. Por exemplo, a Tia Maria é uma pessoa muito conhecida no mercado, que é o ponto-chave do Sequele, frequentado por todos. Agora já há outros pontos de encontro, nomeadamente restaurantes, mas na altura em que concebi o livro todo o mundo concentrava-se no mercado. O Man Jasse, que fala um português de categoria, “o ambaquista do Sequele”, é outro personagem conhecido, que em função do estilo de vida e das contradições existenciais está com um desequilíbrio mental, mas continua a ser conhecido como DJ.

 

Essas figuras contemporâneas do Sequele chegam a ser tão marcantes à leitura do seu livro, que, de certo modo, acabam por prevalecer relativamente às marcas da ancestralidade…

Há um poema dedicado aos 40 anos da Independência Nacional, Evocação Transcendental que Ilumina o Quadro, em que há a evocação muito explícita do passado, da ancestralidade. Nele, falo dos reinos do Congo, Matamba, Benguela, Lunda-Cokwe, Rei Mandume… Tive como referência esse poema para atribuir ao conjunto dos dois livros o título Os Livros dos Ancestrais. Mas também em Utima encontramos referências aos ancestrais. A diferença entre os dois livros é que se o primeiro é multitemático, o segundo é unitemático, isto é, com um único tema que trato de 21 formas diferentes. É um poema em série com 21 textos. Na verdade, remeto-me à qualidade de intermediário que recebe as mensagens dos ancestrais para transmitir à modernidade. É uma construção ficcional que normalmente só é feita quando estamos a falar da ficção narrativa.

 

Está reformado enquanto funcionário público. Logo, tem muito mais tempo para dedicar-se à criação literária…

De uma forma geral sim. Estou agora a escrever o Décimo Segundo Livro dos Ancestrais, que espero concluir ainda este ano. Ao contrário de Utima, vou regressar a um formato multitemático. Tenho também a intenção de seleccionar as minhas narrativas, que estão muito dispersas. Vou reuní-las e publicá-las em livro. A par disso, estou a seleccionar uma série de textos que apresentei em conferências em Cuba e noutros países da América Latina e também cá em Angola, para publicá-los em livro.

 

Nos dez anos em que esteve como conselheiro cultural na Embaixada de Angola em Cuba publicou muita coisa em espanhol. Tratam-se de textos escritos originariamente naquela língua ou traduzidos?

Escrevia sempre em português e tinha um secretário que tratava de traduzir para o espanhol, já que ele dominava também o português. Em Cuba, publiquei seis livros bilingues, em português e espanhol, e dois totalmente em espanhol. Na Costa Rica, publiquei um livro em espanhol, que depois os cubanos reeditaram (Emosentidos) e na Venezuela A Quinta Estação do Tempo, em espanhol.

 

Fale-nos do seu processo de escrita. Como é que os seus poemas surgem? Vivencia-os primeiro ou eles vão ganhando sentido e forma enquanto os escreve?

Há um processo, que é o mais recorrrente, em que o poema aparece na cabeça, desaparece e reaparece depois de algum tempo. Faço então o registo e deixo-o por aí. Há um outro processo em que desperto à noite como se me estivessem a transmitir mensagens e então registo o poema na totalidade. Um outro processo é quando vivencio algo que me emociona e trato de o traduzir em palavras. Aí também o texto fica algum tempo na gaveta e mais tarde dou-lhe o tratamento estético. São raros os poemas que atingem a forma definitiva logo de primeira, embora possa ter já a antevisão do chamado texto acabado. Tenho um poema, África que Observo com os Dedos, que me levou dois anos a escrevê-lo. É o meu poema mais conhecido no Mundo, o que melhor identifica a minha poética.

 

Recuando. Quais são as pessoas e os livros que mais o terão influenciado no sentido da criação literária?

Aos 13 anos lia muito a revista Sete Balas, que então estava na moda. Em 1975, as pessoas da minha geração liam muito livros provenientes de Portugal e sobretudo do Brasil. Li Jubiabá de Jorge Amado, li José Lins do Rego, outro brasileiro, e lembro-me também da influência da literatura russa e dos então países socialistas em geral. Foi naquele período que tomei contacto com Sagrada Esperança de Agostinho Neto, os poemas de António Jacinto e Viriato da Cruz. Comecei a ler Mário António muito mais tarde. Decido em 1979 escrever Cenas que o Musseque Conhece, que dou a ler ao meu professor de português e ele faz uma crítica a dizer que com pequenas correcções o livro podia ser publicado. Isso foi um incentivo para mim. Em 1980 é que começo a publicar pela Brigada Jovem de Literatura e participo num caderno de homenagem a Agostinho Neto com o poema Reflexão, que assinei como Tony Gonçalves. Considero que a minha produção literária começa em 1980.

 

Como era o ambiente da sua infância em casa? O que o levou ao hábito de leitura?

Tínhamos uma biblioteca em casa, em que alguns livros eram do meu pai, outros do meu irmão mais velho, o Johnson, que ainda vive. As minhas irmãs mais velhas estudavam no Liceu Feminino e já tinham o hábito da leitura. Os livros que mais predominavam eram os de carácter político, porque o meu irmão mais velho era o coordenador da JMPLA no bairro Neves Bendinha. Ele iniciou-me na política e chegou uma altura em que ele era o coordenador da “Jota” e eu era o da OPA. Estamos a falar de 1975/1977.

 

A literatura em geral e a poesia em particular que papel podem jogar em momentos de transformação como o que o país vive?

O povo angolano nunca aceitou de ânimo leve a colonização portuguesa e mesmo a holandesa. Somos um povo rebelde que sempre resistiu à colonização. É curioso que na história da literatura angolana, que nasce da conjugação com o jornalismo, vamos encontrar em A Voz de Angola Clamando no Deserto um texto de confronto em que angolanos respondiam a um outro texto em se alegava que o angolano era preguiçoso, não estava preparado para viver em sociedade, etc., etc. Vamos encontrar depois, já na década de 40, uma plêiade de intelectuais, na sua maioria poetas, que reivindicam a necessidade da Independência do país. Quer dizer que a literatura angolana sempre esteve vinculada ao processo de libertação de Angola. As gerações actuais devem continuar nessa senda. A vantagem que temos neste momento é que há grandes possibilidades de surgimento de bons ficcionistas, além de bons poetas. Sou dos que acham que a literatura deve estar ao serviço da sociedade. Não acho que um escritor deva afastar-se dos problemas do seu tempo. Naquilo que escrevo tento mostrar essa posição, que é inequívoca. Nunca me vejo como um escritor fora do meio social em que vivo. O escritor deve ter uma consciência histórica.

 

Foi durante vários anos secretário-geral da União dos Escritores Angolanos. Qual é a leitura que faz do desempenho da UEA nos últimos tempos?

Depois daquela fase eufórica em que era ao mesmo tempo uma grande editora, publicava muitas obras e tinha uma grande intervenção cívica, a UEA acabou por não manter esse perfil. Por um lado, não continua a produzir obras, de tal modo que alguns membros acham que devia ser apenas uma cooperativa de escritores. A UEA perdeu o protagonismo na sociedade a favor de outros movimentos cívicos de novos grupos de escritores jovens que vão ocupando o seu espaço.

 

A UEA não estará a pagar o preço por, durante décadas, ter estado “acoplada” ao poder político e ser mesmo uma plataforma de acesso a esse poder?

Também está a pagar essa factura. Mas muito mais do que isso é o facto dela não se ter adaptado aos novos ventos. Há debates que têm sido promovidos em alguns círculos que podia muito bem ser a UEA a fazer, conforme durante anos o Luandino Vieira fez, mesmo no tempo de partido único, tal como o João Melo em alguns períodos do seu mandato e, modéstia à parte, também eu, no meu mandato. Há um outro problema que é o do relacionamento pessoal. Há escritores que não se revêem na UEA, porque as políticas e a forma de estar da própria UEA não correspondem aos anseios dos escritores. É uma pena que tenha de dizer isso e não é nenhuma ofensa ao Carmo Neto, mas na verdade há que rever o papel histórico da UEA e em que medida ela se deve reformular para corresponder aos desafios dos tempos modernos.

 

Retendo essa questão do papel histórico da UEA e indo para os seus primórdios, não acha que sobre ela recaíram responsabilidades culturais e sociais extremas?

Agostinho Neto, quando fez os pronunciamentos sobre a cultura nacional e o papel da UEA e dos escritores, estava longe de prever os desenvolvimentos que o país teria. Neto tentou salvaguardar aspectos que também defendo. Continuo a achar que a literatura angolana é essencialmente africana, que os escritores têm um papel fundamental em defesa dos valores mais sagrados e nobres do imaginário e do bem-estar social. A responsabilidade em si atribuída à UEA foi resultado de um momento histórico particular, primeiro pelo facto de ele próprio, Agostinho Neto, ser o poeta que era e ter sido o primeiro Presidente da República. Segundo, porque quem estava a governar era o MPLA. Só que à medida que as coisas foram evoluindo, em 1992 dá-se a transformação do sistema monopartidário para o multipartidarismo. A UEA devia rever também a sua estratégia de intervenção na sociedade angolana. Já devia ter tido uma maior abertura. Lembro-me que quando eu era o secretário-geral, por exemplo, convidei o Sousa Jamba a entrar para a UEA; convidei o João Paulo Nganga, depois dele ter lançado aquele livro polémico, “O Preto no Branco”… Mas eu saí e mais tarde fiquei a saber que essas e outras pessoas não figuravam como membros da UEA. Alguma coisa não esteve bem. Já naquela altura a UEA devia ter alargado o seu leque de membros em função da dinâmica do país, convidando, inclusive, escritores membros de outros partidos políticos. Se isso tivesse acontecido, a UEA estaria a ser vista de uma outra forma.

 

De que forma é que ela está a ser vista?

Como um corpo amorfo que não tem dinamismo e está muito aquém dos interesses da sociedade angolana e muito menos da literatura angolana.

 

Nesse quadro, a criação da Academia de Letras não terá esvaziado ainda mais a UEA?

Não tenho nada contra o surgimento de instituições culturais que têm em vista o progresso social e cultural do país. Questionaria apenas a oportunidade e a viabilidade de instituições como a Academia de Letras. São muitas instituições para um mesmo objecto social, o que cria alguns constrangimentos. Há quem entenda que na Academia estão os melhores e na UEA os piores… Esse tipo de discussão não é salutar para quem quer construir um país como o nosso, onde o elitismo não se deve sobrepôr ao desenvolvimento natural da literatura e da cultura.

 

Até aqui não temos um cânone da literatura angolana, que muito ajudaria no enquadramento do seu estudo e até na criação de um plano nacional da leitura. Em linhas gerais, para si, como é que deveria ser esse cânone?

Há um trabalho que o escritor Boaventura Cardoso iniciou enquanto ministro da Cultura, com a criação de uma comissão de investigadores angolanos, portugueses e brasileiros, para a escrita de uma História da Literatura Angolana. É uma pena que esse projecto tenha desaparecido com a saída do senhor ministro Boaventura Cardoso da função. É uma pena que no país os projectos importantes no domínio da Cultura desapareçam quando o ministro deixa o cargo. Não podemos continuar nesses termos.

Temos de ter um cânone da literatura angolana e defendo que nele não devam entrar apenas os autores da Mensagem e os da Cultura. Deve abranger também a geração de 80 [do século XX], mas também a novíssima geração que começa com o ano 2000. Considero que nesse período, de 2000 a 2020 ( faltam menos de dois anos para 2020), se não existe uma geração literária afirmada, há referências a considerar. Mas devo dizer que os novíssimos autores têm de apurar o seu estilo. Noto que quase todos eles escrevem da mesma forma e é difícil identificar uma voz individual. Mas isso é um processo.

O problema do cânone remete-nos para a discussão do que é a literatura angolana. Será que tudo o que se escreve, tanto por autores na diáspora como cá, é literatura angolana? Entendo que literatura angolana é aquela que expressa a alma do povo angolano, que defende os valores da angolanidade numa perspectiva dinâmica.

 

Como referiu, dos “novíssimos autores”, tem nomes a mencionar, pelo valor promissor do que escrevem?

Ressalto o nome do Hélder Simbad, que tem uma proposta estética que corroboro. Há também o Nguimba Ngola, que tem um texto excelente, e o Zola Vida, que me parece estar no bom caminho.

 

 Quem é quem

 

António Gonçalves nasceu em Luanda, antes da proclamação da Independência Nacional.

Gestor hoteleiro, frequentou o curso de Linguística no ISCED de Luanda, opção Língua Portuguesa.

Foi secretário-geral da União dos Escritores Angolanos no período de 1996 a 2001. Grande parte da sua obra literária foi editada em Cuba, onde durante dez anos exerceu a função de conselheiro cultural da Embaixada de Angola.

É membro da União dos Escritores e Artistas de Cuba, da Organização Poetas do Mundo e do Movimento Poético Mundial com sede em Medellin (Colômbia).

Além de Angola e Cuba tem textos publicados na Nicarágua, Venezuela, Costa Rica, Colômbia, Suécia, Espanha e Alemanha.

Foi director-adjunto do Instituto das Indústrias Culturais do Ministério da Cultura.

*Entrevista publicada no Jornal de Angola em 2018, após o lançamento do "Livro dos Ancestrais".


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