terça-feira, 27 de abril de 2021

LUÍS KANDJIMBO Pela construção do cânone literário angolano




 “Alumbu – O Cânone Endógeno no Campo Literário Angolano - Para uma Hermenêutica Cultural”, o livro de ensaios de Luís Kandjimbo editado pela Mayamba e apresentado ao público na última quarta-feira, em Luanda, na sede da União dos Escritores Angolanos, é uma colectânea de textos que pretende inscrever-se, segundo o próprio autor, “na melhor tradição ensaística e tematizar problemáticas da cultura angolana no contexto mais geral das culturas africanas”

Isaquiel Cori

É no domínio da literatura, mais concretamente da formulação ou da interpretação das poéticas, e da Cultura em geral, onde se travam, em última instância, os grandes combates pela prevalência da ideia de identidade e de soberania dos povos. Porque na verdade tudo começa pelas ideias que nutrimos a nosso respeito, sobre o que nos rodeia, sobre donde vimos e para onde queremos ir. E é essa capacidade de geração de ideias próprias que a globalização, tendencialmente, destrói ou esmorece nas sociedades periféricas deste “vasto mundo”.

A crónica pobreza material, ao atirar as pessoas para um círculo de sobrevivência, tira-lhes a capacidade de valorizar ou priorizar o abstracto, que é a dimensão onde, afinal de contas, se estrutura o pensamento a respeito de nós mesmos, dos nosso passado e do nosso destino.

Luís Kandjimbo (LK) é um intelectual angolano que, de modo concreto, consistente e coerente, desde a década de 1980, vem publicando textos ensaísticos, em seminários, congressos ou conferências em Angola e no exterior, em publicações periódicas e em livros, onde o seu pensamento, que no princípio se circunscrevia à literatura e depois à filosofia e à Cultura, possui um leitmotiv: a perspectiva angolana e africana da análise. Para ser mais preciso, a perspectiva “endógena” da análise dos fenómenos literário e cultural angolano e africano. E para levar a cabo essa empreitada, LK, indivíduo metódico e auto-disciplinado, impôs-se a si mesmo um autodidactismo quase sem paralelo entre nós, ao mesmo tempo que foi alicerçando a sua formação académica.

A par do “endogenismo” filosófico, literário e cultural, LK, seja em palcos de debate no país ou no exterior, conforme está patente em toda a sua obra ensaística, vem travando um combate contra o “crioulismo” a que uma determinada corrente de intelectuais lusos e angolanos pretend(e)ia reduzir ou enquadrar toda a literatura e cultura angolanas.

 

Clarificar a posição

Neste livro que acaba de publicar, LK reactualiza o vários debates que travou a respeito e clarifica, mais uma vez, a sua posição: “Sendo a presença de alguns segmentos de origem europeia incontornável na sociedade angolana, o espectro da perspectiva naturalista do hibridismo ou da perspectiva multicultural de inspiração anglo-americana que pode daí derivar, influenciadas pelas soluções americanas da discriminação positiva ou affirmative action, não deve anular uma História feita de resistências contra a ocupação colonial portuguesa cujos sujeitos são as populações ou as comunidades étnicas autóctones de Angola. E os contributos de origem europeia, que não podem ser ignorados, hão-de obedecer a uma lógica endógena.”

A perspectiva endógena dos estudos de LK levou-o a propor um cânone literário angolano baseado numa definição de literatura angolana que vai muito para além do “crioulismo” e valoriza igualmente a memória ancestral africana. “(...) à angolanidade literária subjaz uma angolanidade – pressuposto que comporta uma experiência, um sistema de referências, uma memória colectiva, um sentido de passado ou história, sobre o qual assenta a estratégia dos escritores. O texto literário é assim a materialização de uma das várias modalidades possíveis da experiência angolana.”

Essa citação de LK, constante do seu livro “Apologia de Kalitangi”, é a prova da sua visão “ecumênica” do fenómeno literário angolano, ao contrário do rótulo de “fundamentalista negro” a que alguns críticos o pretendiam remeter. Evidencia esse “ecumenismo” a sua proposta de “Tópicos para um Curso Ideal de Literatura Angolana”, contida em “Alumbu”, cuja introdução geral aponta precisamente para os saberes filosóficos angolanos, a geografia de Angola, a história de Angola e às línguas nacionais angolanas, passando pela discussão de “algumas questões teóricas como o conceito de angolanidade e de angolanidade literária versus crioulidade”, a problemática da língua portuguesa em Angola e a sua coexistência com as línguas nacionais, incluindo a construção do cânone literário angolano, a literatura moderna de Angola, a história da literatura angolana e a sua periodização.

Em suma, LK tira as consequências práticas dos seus estudos teóricos sobre a literatura e a cultura angolanas, propondo um programa de ensino da literatura angolana.   

Mas não se fica por aí. Um olhar ao índice do livro revela logo ao que o autor veio: “O Cânone no Campo Literário Angolano”; “O Endógeno e o Universal na Literatura Angolana”; “Outros Cânones e Novas Leituras para a Literatura Angolana”; “A Problemática do Ensino da Literatura Angolana e a Teorização Literária (...)” ; Tópicos para um Curso Ideal de Literatura Angolana”; “A Literatura Angolana Perante a Formação de um Cânone Literário Mínimo de Língua Portuguesa e as Estratégias da sua Difusão e Ensino”, “Duas Gerações Literárias no Dealbar do século XX Angolano – Proposta para a História Literária”; “Angolanidade e Crioulidade: O Substantivo e a Falácia”, “A Incompletude no Processo de Disciplinarização das Literaturas Africanas”; “Kalitangi: Um Herói da Literatura Oral Umbundu”; “Para uma História do Etnónimo Ovimbundu” e “A Nação – Sujeito Colectivo, Representações do Território e Identidade Cultural”.

Quando, em 1984, em Paris, o grande Mário Pinto de Andrade foi ao encontro do jovem LK, ao fim de uma comunicação que este acabara de fazer numa conferência, felicitando-o e dizendo-lhe “Gostei da sua comunicação”, literal e “fisicamente” (se assim é possível dizer) estabeleceu-se uma linha de continuidade na definição do conceito de angolanidade que aquele intelectual ajudou a cunhar e defendeu ao longo de toda a sua vida contra a “crioulidade” redutora, e que LK se propôs a aprofundar num contexto global de erosão das identidades e dos apelos à “multiculturalidade”.

Luís Domingos Francisco, o próprio Luís Kandjimbo, nasceu na cidade de Benguela em 1960. Ensaísta e crítico literário, é membro da UEA - de que é actualmente presidente da mesa da assembleia-geral – da Academia Angolana de Letras, da Associação Internacional de Estudos Literários e Culturais Africanos e da Associação para o Estudo das Literaturas Africanas de Paris. Doutorado em Estudos de Literatura, mestre em Filosofia pela Universidade Nova de Lisboa e licenciado em Direito pela Universidade Agostinho Neto, presentemente é director-geral do Instituto Superior Politécnico Metropolitano de Angola, professor nos cursos de pós-graduação da Faculdade de Ciências Sociais da Universidade Agostinho Neto e da Academia de Ciências Sociais e Tecnologias e investigador do Instituto de Estudos Literários e Tradição da FCSH da Universidade Nova de Lisboa.

Tem várias obras publicadas, desde 1988 quando publicou “Apuros de Vigília” (ensaios), sendo as mais recentes “Ideogramas de Ngandji” (ensaios, Triangularte Editora, 2013) e “Acasos & Melomanias Urbanas” (estórias, Editora Acácias, 2018).

O conjunto da sua obra estende-se pela poesia, o conto e o ensaio. Nos últimos anos surpreendeu a todos quando se apresentou publicamente como músico-guitarrista, actuando ocasionalmente para plateias selectas.

 

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