terça-feira, 27 de abril de 2021

Romance “O Incesto Real”, de Júlio de Almeida "Jujú": FICÇÃO NOS SILÊNCIOS DA HISTÓRIA

“O incesto real” é um romance cuja acção em grande parte se desenrola nas zonas de silêncio e de penumbra da História e que são um manancial para a imaginação criadora dos escritores

 

Isaquiel Cori






 Para a escrita de “O incesto real” Júlio de Almeida pesquisou documentação histórica sobre o Reino do Kongo, os primórdios da presença portuguesa no território que seria Angola e a correspondência entre os soberanos do Kongo e de Portugal, bem como sobre a presença secular e “silenciosa” de negros naquele país europeu.

O pano de fundo sobre o qual grande parte da trama do romance é construída é aquele período histórico que se inicia no século XV, com as viagens marítimas protagonizadas essencialmente por Portugal e Espanha e que alguns historiadores chamam Descobrimentos, outros Encontro de Civilizações e outros ainda Primeira Globalização. Mas é já no século XVI que os personagens iniciais do romance entram em cena, já Diogo Cão fizera duas viagens de exploração à costa ocidental de África em que entrara em contacto com o soberano do Reino do Kongo. Precisamente no seu segundo regresso a Portugal o navegante carregara num dos seus barcos uma comitiva enviada por Mvemba a Nzinga, o Mani Kongo, que, baptizado em 1491, adoptara o nome Afonso I. Faziam parte da comitiva membros da corte, incluindo D. Henrique, filho de Afonso I, de 12 anos de idade, e outros familiares do soberano.

Já em Portugal o konguês D. Pedro, primo como irmão de D. Henrique, envolve-se com a portuguesa Maria da Graça, que dá a luz os gémeos Vagá – de “Vasco da Gama” – e Gavá – “Gama de Vasco”. É através das peripécias de ambos, com trajectórias de vida diferentes, e da sua descendência, que a trama do romance se adensa.  Vagá, remetido ao extremo sul de Portugal, torna-se pai de Gamahl, com a bailarina Leila. Gamahl é descrito como “um dos mais originais homens do século XVI, o primeiro luso-conguês-marroquino – espécie única do género humano – que nunca estivera nos planos do Criador”... e que se tornaria membro da guarda pessoal de D. Sebastião “O Desejado”, o rei de Portugal que desapareceria na batalha de Alcácer-Kibir, no Marrocos em 1578.

Por sua vez Gavá, pelas voltas que o destino dá, ou se assim o entendermos, que só a ficção permite e concebe, em 1536 chega ao Reino do Kongo, onde ainda reinava Mvemba a Nzinga, que então sobrevivera a “três reis dos portugueses” e ao próprio D. Pedro, o pai dos gémeos falecido em S. Tomé em “situação de evidente cativeiro”. Tanto o rei Mvemba a Nzinga, seu tio-avô, como o próprio Gavá, desconheciam que eram parentes.

Em resumo, o romance abarca séculos da história de uma família real konguesa cujos descendentes kongueses-portugueses se espalham em dois ramos pelo mundo, misturando-se biológica e culturalmente com as populações que encontram, se aproximam e se reencontram, sem o saberem - como durante a guerra civil em Angola - em campos opostos. 

O livro contém duas narrativas. Na primeira, que constitui o fio condutor do romance, o autor trata de “preencher lacunas” e silêncios da História. E faz isso insuflando vida a figuras que vão desfilando pelo romance ao longo de mais de 400 anos. A “outra” narrativa, grafada em itálico, que não chega a ser paralela porque converge permanentemente para a primeira, é animada por dois personagens-leitores que comentam e problematizam a primeira narrativa, em muitos casos clarificando-a ou actualizando-a.

 

Manancial para imaginação

O romance por vezes se evidencia mais como narrativa histórica, explicitando a verdadeira natureza das relações entre os reinos do Kongo e de Portugal. A citação de trechos de cartas trocadas entre os respectivos soberanos e outros documentos é tão profusa que se fica com a tentação de correr para as últimas páginas em busca das referências bibliográficas que obviamente não existem.

A relação entre os dois reinos era desigual. D. Afonso (Mvemba a Nzinga) “várias vezes havia escrito ao monarca português D. Manuel, denunciando o trato havido pelos súbditos com as suas gentes, mais interessados no comércio e no resgate de escravos do que no trabalho de construção de edificações em alvenaria, no cultivo e preparação do pão e no ensino de ofícios em que eram mestres e de que carecia o seu reino.

D. Afonso clamava que havia ‘necessidade de mais do que de padres de algumas poucas pessoas para ensinarem nas escolas, nem mesmo de nenhumas mercadorias, somente vinho e farinha, para o Santo Sacramento’” (pág. 47).

Há uma passagem deste livro que mescla História e Ficção que ajuda a compreender o que ocorreria muito depois e se consumaria com a decadência e posterior conquista pelos portugueses dos estados africanos no território que é hoje Angola: “... Mas, para meu pai está tudo certo. O seu processo interno de alienação de si próprio foi realizado com êxito. Tem à sua volta uma corte de privilegiados, completamente subordinados aos interesses dos portugueses que vão esvaziando o reino dos seus filhos, enviando milhares e milhares de nossos irmãos para terras tão estranhas e distantes, donde nunca houve regresso. Não sei o que o tempo ainda trará a estas terras. Eu já não verei esses tempos...” (pág. 51, monólogo de D. Henrique, “enfraquecido, deitado sobre a esteira, as febres intermitentes toldando-lhe a alma e o pensamento”). 

Mas “O incesto real” vai muito além dos reinos do Kongo e de Portugal. Os descendentes de D. Pedro e Maria da Graça movem-se no romance ao longo de quase 500 anos, até aos tempos actuais, vivenciando os principais marcos da História de Angola, incluindo a eclosão da luta armada de libertação nacional, a independência, a invasão sul-africana, a guerra civil e a conquista da paz. Os últimos capítulos (“espiras”), muito mais descritivos, ganham um ritmo acelerado, como se o autor tivesse pressa de chegar ao fim. É nesta parte que parecem emergir as memórias biográficas do autor, que começam na sua infância em Moçâmedes e a ida a Sá da Bandeira (Lubango) para estudar no liceu. Diante da narrativa do recuo das FAPLA e dos cubanos das principais cidades do litoral e do avanço das tropas sul-africanas até ao rio Keve, às portas de Luanda, torna-se impossível não evocar a figura do comandante Jujú que se notabilizou em 1975/76 como porta-voz do Estado-Maior das FAPLA. Essa evocação é mesmo sugerida por um dos “narradores-comentadores” quando exclama: “Até que enfim dás um ar da tua graça”.

“O incesto real” é um romance cuja acção se desenrola nos interstícios da História, naquelas zonas de silêncio e penumbra que não constam dos livros de História e que constituem um manancial para a imaginação criadora dos escritores. Efectivamente, se a História é a narrativa dos factos ocorridos, o romance histórico é a narrativa dos factos que não tendo ocorrido poderiam ter ocorrido.   

 

 

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