Isaquiel Cori│
Ouvi com insistência, nos últimos dias, apelos no
sentido de se esquecer o passado, de passar uma borracha sobre as lembranças da
guerra. Isso supostamente em nome da reconciliação nacional e para não ferir
susceptibilidades. Tomados ao extremo, tais apelos levar-nos-iam ao mundo
orwelliano patente no romance distópico “1984”, onde é narrada uma sociedade em
que, entre outras aberrações, existe toda uma burocracia especializada em alterar, adaptar, “actualizar” os registos históricos
em função da ideologia vigente no momento.
A memória colectiva da guerra, aqui entendida como o
somatório das memórias individuais resultantes das experiências pessoais
vivenciadas em situação de guerra, é um património nacional. No plano
individual, se fosse possível, imaginemos obrigar um ex-militar das ex-FAPLA ou
das ex-FALA a esquecer completamente todo o seu passado de militar, as
peripécias boas ou más por que passou… além da desumanidade que tal gesto
implicaria, estaríamos a empobrecer, mais do que já estão, tais pessoas, na
medida que as lembranças, as recordações, em suma a memória, é o seu
património, em muitos casos a única verdadeira riqueza que possuem. E no caso
da mãe que perdeu o filho (ou os filhos), da mulher que perdeu o marido, do
jovem que ficou sem os pais e os irmãos, a memória é o único elo com os seus
entes queridos. Ora, para mim, o direito à memória, a lembrar o passado, é um
direito humano inalienável, tal como o emergente conceito, muito associado à
internet e às redes sociais, do direito ao esquecimento. E é preciso não dar
como adquirido que tudo que aconteceu ontem será lembrado da mesma maneira
amanhã. Hoje
a memória da guerra é viva, é uma ferida por cicatrizar, mas se as pessoas não
escreverem as suas experiências, as suas frustrações decorrentes da guerra, o
que viram e o que sentiram, e até sobre o que fizeram ou deixaram de fazer,
daqui a uma centena de anos, se tanto, a guerra, não havendo já mais ninguém para se lembrar
dela, não terá acontecido. E, sem memória dela, estaremos mais disponíveis para
a repetir. Por outro lado, a memória, não sendo
estática, retroalimenta-se com a visão do presente e propicia narrativas que
podem ser completamente diferentes e até contrárias ao que realmente aconteceu.
Um
dos papéis da escrita é fixar a memória colectiva, obrigar-nos a não esquecer.
Tenho acompanhado com muito interesse o esforço de alguns historiadores
militares, com Miguel Júnior à cabeça, de reconstituição de alguns episódios da
guerra a partir de uma visão historiográfica angolana, contrapondo-se,
esclarecendo ou complementando a visão de narradores cubanos e sul-africanos. Destacar
aqui os títulos “O Fracasso da Operação Savannah”, compilação organizada por
Miguel Júnior, de textos assinados, entre outros, pelos cabos de guerra Luís
Faceira e Peregrino Chindondo; “História Militar de Angola”, outra compilação
de textos organizada por Miguel Júnior e Manuel Difuila; e “A Batalha de
Kifangondo (1975) – Factos e Documentos”, de vários autores, incluindo Miguel
Júnior. No exterior ano sim ano não, são
publicados livros sobre a nossa guerra civil, um dos mais destacáveis dos quais
é “A Guerra Civil em Angola (1975-2002)”, de Justin Pearce. A leitura do último
capítulo da “História de Angola” de Douglas Wheeler e René Pélissier,
intitulado “Uma breve história de Angola entre 1971 e 2008”, é absolutamente
recomendável.
Há
ainda o surgimento de uma bibliografia de memórias de protagonistas ou
testemunhas civis e militares, de ambos os lados da antiga barricada, também
muito interessantes. Recomendo a leitura dos livros “A Segunda Revolução”, de
Jardo Muekalia, “Caminho para Paz e Reconciliação Nacional – De Gbadolite a
Bicesse (1989-1992)”, de Jorge Valentim, “Huambo, 56 Dias de Terror e Morte”,
de Jorge Ntyamba, e o recentíssimo
“Luena, 45 Dias de Batalha – Cerco à Cidade e Negociações
em Bicesse”, de Esmael Silva. Leia-se também
“Prisioneiros da UNITA nas Terras do Fim do Mundo”, do cubano Manuel Rojas Garcia, e “Cuito Cuanavale
– Crónica de uma Batalha”, do também cubano Ruben Jimenez Gomez.
Tudo
isso ainda é pouco. Os sociólogos, os antropólogos, os economistas, e outros
pesquisadores, têm de entrar em campo para estudar, enquanto as marcas ainda
estão bem visíveis, que Angola é esta que emergiu da guerra e o quanto esta nos
transformou naquilo que somos hoje. E se há retorno e se esse retorno realmente
é possível e desejável.
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