segunda-feira, 11 de setembro de 2017

UMA HISTÓRIA IGUAL A MUITAS

Isaquiel Cori │


Joana Munguay é uma mulher dos seus 70 anos que gosta de ver a tarde passar sentada na rua, à porta do quintal da casa do filho que é meu vizinho. De um dos seus oito filhos. A vizinhança passa distraída por ela, com uns a atirarem-lhe umas palavras de saudação e outros ignorando-a completamente. As crianças brincam perto, aos ruídos,  despertando-a por vezes do estado de aparente sonolência.  
Ela desaparece por longos dias, na ronda que faz habitualmente a casa de cada um dos filhos, mas é na do meu vizinho que passa mais tempo e gosta de estar mais, talvez por dispor de um quintal grande onde ela consegue dar vazão aos enraizados instintos de camponesa, cultivando umas quantas hortaliças e ervas cheirosas como a salsa e a hortelã.
Pensei na velha senhora na última semana, em que, muito mais do que em anos anteriores, recebi convites pessoais para ir a cerimónias de outorga de diplomas universitários e participar nas consequentes festas.  Humanamente não era possível satisfazer a todos.
Joana Munguay, que chegou robusta e lúcida à idade que ostenta, tem todos os seus oito filhos formados. Duas são médicas, um é economista, outra jurista. Um é engenheiro informático, outro é psicólogo – e oficial superior das Forças Armadas - e os últimos são engenheiro de construção civil e professora.
Ela não esconde, nos círculos que frequenta, cada vez mais restrictos à sociedade de senhoras da igreja, que os filhos são a sua vaidade. Infelizmente, não tenho a certeza se ela é a vaidade dos filhos.
O percurso de Joana Munguay, camponesa que nasceu em Mazozo, a pouco mais de sessenta quilómetros de Luanda, e para aqui veio muito nova para tornar-se lavadeira, quitandeira, novamente lavadeira, costureira, cozinheira e outras profissões bem na base da escadaria social urbana da época colonial, mal sabendo ler e escrever, e que quase 42 anos depois da independência tem os seus oito filhos, como soe dizer-se, doutores, espanta por não ser um caso excepcional mas que se multiplica por esta Angola a dentro.
E a distância dos anos acumulados desde que ela veio para Luanda onde casou-se e teve os filhos, esconde a distância enorme que ela percorreu e venceu do ponto de vista social, histórico, cultural e humano.
Social porque, entendendo que ela prolongou a sua vida na vida dos filhos, Joana Mungway, a camponesa, a lavadeira, saltou para a classe média (ou para aquela que deveria ser a classe média); histórico, porque ela representa a ascensão, como sujeitos da história - com dignidade e plena consciência - de um estracto da população cujos ancestrais viveram sob a escravatura e foram sujeitos aos rigores do colonialismo; cultural, porque Joana Mungway, através e com os filhos, deixou para trás algumas crenças obscurantistas e assimilou os valores da modernidade, que amalgamou a todo o conjunto difuso da ancestralidade. Por fim, o ponto de vista humano.
As estatísticas que o país já vai produzindo, com alguma consistência, apontam os inegáveis progressos ocorridos no sector do ensino superior, que foi estendido a todas as províncias. Os jovens têm muito mais possibilidades de fazer a formação superior e os papás e as mamãs de Cabinda ao Cunene podem acalentar mais o sonho de ver os filhos doutores e com potencial de terem bons empregos, numa estratégia legítima de “adiantamento” social da família, pois é sabido que filhos de pais com formação superior tendencialmente também terão esse nível de formação. Ora, muitos criticam o facto da extensão do sistema universitário ter nivelado por baixo a qualidade do ensino, e que a  sua massificação não é compatível com a excelência. Além das respostas institucionais que devem obrigatoriamente ser dadas, cabe aos estudantes tomarem essas críticas como pessoais e estudarem mais e melhor para mais tarde “darem cartas” no mercado de trabalho.

***
Sempre que vejo Joana Munguay sentada à porta do filho aproximo-me com cuidado, porque ela assusta-se facilmente com os gestos e os sons bruscos. Quando está realmente a dormitar não a incomodo mas fico a olhar demoradamente para ela, velha senhora de pele grossa e cheia de rugas que dizem dos muitos sóis que a queimaram e dos ventos que a curtiram. Sinto-lhe, com os olhos, o coração a bater ritmadamente debaixo do quimono que mal esconde um fio de ouro antigo, oferta do falecido marido.  Desejo sinceramente que os filhos não sejam ingratos e que a amem tanto como ela os ama. Que ela seja a vaidade e o orgulho deles. E pergunto-me então se ela estará mesmo a dormir ou mergulhada em pensamentos tão profundos como a história da sua vida.


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