Isaquiel
Cori │
Joana
Munguay é uma mulher dos seus 70 anos que gosta de ver a tarde passar sentada
na rua, à porta do quintal da casa do filho que é meu vizinho. De um dos seus
oito filhos. A vizinhança passa distraída por ela, com uns a atirarem-lhe umas
palavras de saudação e outros ignorando-a completamente. As crianças brincam perto,
aos ruídos, despertando-a por vezes do
estado de aparente sonolência.
Ela
desaparece por longos dias, na ronda que faz habitualmente a casa de cada um
dos filhos, mas é na do meu vizinho que passa mais tempo e gosta de estar mais,
talvez por dispor de um quintal grande onde ela consegue dar vazão aos enraizados
instintos de camponesa, cultivando umas quantas hortaliças e ervas cheirosas
como a salsa e a hortelã.
Pensei
na velha senhora na última semana, em que, muito mais do que em anos
anteriores, recebi convites pessoais para ir a cerimónias de outorga de
diplomas universitários e participar nas consequentes festas. Humanamente não era possível satisfazer a
todos.
Joana
Munguay, que chegou robusta e lúcida à idade que ostenta, tem todos os seus
oito filhos formados. Duas são médicas, um é economista, outra jurista. Um é
engenheiro informático, outro é psicólogo – e oficial superior das Forças
Armadas - e os últimos são engenheiro de construção civil e professora.
Ela
não esconde, nos círculos que frequenta, cada vez mais restrictos à sociedade
de senhoras da igreja, que os filhos são a sua vaidade. Infelizmente, não tenho
a certeza se ela é a vaidade dos filhos.
O
percurso de Joana Munguay, camponesa que nasceu em Mazozo, a pouco mais de sessenta
quilómetros de Luanda, e para aqui veio muito nova para tornar-se lavadeira,
quitandeira, novamente lavadeira, costureira, cozinheira e outras profissões
bem na base da escadaria social urbana da época colonial, mal sabendo ler e
escrever, e que quase 42 anos depois da independência tem os seus oito filhos,
como soe dizer-se, doutores, espanta por não ser um caso excepcional mas que se
multiplica por esta Angola a dentro.
E
a distância dos anos acumulados desde que ela veio para Luanda onde casou-se e
teve os filhos, esconde a distância enorme que ela percorreu e venceu do ponto
de vista social, histórico, cultural e humano.
Social
porque, entendendo que ela prolongou a sua vida na vida dos filhos, Joana
Mungway, a camponesa, a lavadeira, saltou para a classe média (ou para aquela
que deveria ser a classe média); histórico, porque ela representa a ascensão,
como sujeitos da história - com dignidade e plena consciência - de um estracto
da população cujos ancestrais viveram sob a escravatura e foram sujeitos aos
rigores do colonialismo; cultural, porque Joana Mungway, através e com os
filhos, deixou para trás algumas crenças obscurantistas e assimilou os valores
da modernidade, que amalgamou a todo o conjunto difuso da ancestralidade. Por
fim, o ponto de vista humano.
As
estatísticas que o país já vai produzindo, com alguma consistência, apontam os
inegáveis progressos ocorridos no sector do ensino superior, que foi estendido
a todas as províncias. Os jovens têm muito mais possibilidades de fazer a
formação superior e os papás e as mamãs de Cabinda ao Cunene podem acalentar
mais o sonho de ver os filhos doutores e com potencial de terem bons empregos,
numa estratégia legítima de “adiantamento” social da família, pois é sabido que
filhos de pais com formação superior tendencialmente também terão esse nível de
formação. Ora, muitos criticam o facto da extensão do sistema universitário ter
nivelado por baixo a qualidade do ensino, e que a sua massificação não é compatível com a
excelência. Além das respostas institucionais que devem obrigatoriamente ser
dadas, cabe aos estudantes tomarem essas críticas como pessoais e estudarem
mais e melhor para mais tarde “darem cartas” no mercado de trabalho.
***
Sempre
que vejo Joana Munguay sentada à porta do filho aproximo-me com cuidado, porque
ela assusta-se facilmente com os gestos e os sons bruscos. Quando está
realmente a dormitar não a incomodo mas fico a olhar demoradamente para ela,
velha senhora de pele grossa e cheia de rugas que dizem dos muitos sóis que a
queimaram e dos ventos que a curtiram. Sinto-lhe, com os olhos, o coração a
bater ritmadamente debaixo do quimono que mal esconde um fio de ouro antigo,
oferta do falecido marido. Desejo
sinceramente que os filhos não sejam ingratos e que a amem tanto como ela os
ama. Que ela seja a vaidade e o orgulho deles. E pergunto-me então se ela estará
mesmo a dormir ou mergulhada em pensamentos tão profundos como a história da
sua vida.
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