Isaquiel
Cori│
Quando,
na semana passada, num convívio restrito, disse que há 16 anos a ideia de vir a
completar 50 anos de idade era de todo improvável e fora das minhas cogitações
mais optimistas, tive de “aguentar” um coro de firme reprovação e de quase
revolta dos circunstantes, diante de tão “flagrante concessão ao pessimismo”.
Compreendi logo a reacção.
Todas
as pessoas a minha volta estavam abaixo da minha geração, ostentando idades
entre os 18 e os 25 anos. São jovens que pertencem a essa geração combativa,
ciente dos seus direitos e plenamente informada das realidades do mundo, muitos
dos quais votam hoje pela primeira vez. A esses jovens, e muito bem, a menção à
ideia de morte é completamente extemporânea, pois vivem envoltos sob uma aura
de quase imortalidade, potenciada pelas perspectivas actuais de uma vida cada
vez mais longa. Essa “aura” cresceu exponencialmente
nestes anos de paz e estende-se, com mais ou menos incidência, a todos os
angolanos de todas as gerações. É assim que se explica a comoção geral diante
de notícias de mortes: a vida é hoje um bem tão precioso e inestimável que só a
ideia de a perder causa extremo desagrado e até mesmo revolta.
Infelizmente,
no nosso país as coisas nem sempre foram assim. E mesmo até há pouco tempo!
Falo
por mim. Estamos em 1985. Então tinha a idade de alguns dos jovens mencionados
acima. Ano memorável: os Kassav vêem a Angola pela primeira vez; realiza-se em
Luanda uma Conferência Ministerial dos Países Não Alinhados; o auge das rusgas:
jovens como eu eram procurados debaixo da cama, nos tectos das casas, em todo
lado, para ir à tropa; a guerra para nós em Luanda, no Kassequel, não eram
tiros mas eram óbitos, gritos e choros que rompiam a madrugada: o fulano que
morreu no Sautar, o outro no Mussende, o outro ainda em Cazombo. E os de que
não se tinha notícia, os desaparecidos, as famílias em luto interminável.
E
mesmo assim as festas, as festas, as festas! E os dancings, com as pessoas
ilhadas até ao princípio da manhã, por causa do recolher obrigatório! Ainda
hoje eu me pergunto: porquê que naqueles anos se festejava tão intensamente o
agora e já, como se a vida toda fosse hoje e o amanhã completamente entregue ao
Deus dará? E isso, repare-se, mesmo havendo tão pouco, quase nada, para comer…
Era
isso: a morte não só estava em nosso redor como dentro de nós e ao dançar e
festejar sem limites alicerçávamos a ilusão de que não éramos fantasmas mas
sobreviventes de uma morte quase certa, que ainda nos poupara.
Pois
é, então, no limite, a solução para desanuviar o ambiente alucinante e deprimente, para muitos da minha geração, era fugir para
a frente, ir à tropa, fazer a recruta militar, enfrentar a guerra de verdade,
fosse o que Deus quisesse. É nessa tomada de decisão, não se importando já se a
vida podia ser curtíssima, que muitos jovens da minha geração realmente se
libertaram: conheceram localidades distantes, tomaram contacto com várias línguas
nacionais e, se não as aprenderam, pelo menos se familiarizaram com o seu ritmo
e entonação; alargaram as amizades íntimas a pessoas de outras etnias, outros
substractos culturais; enfim, descobriram, por experiência própria, no convívio
diário, ombro a ombro, uma Angola mais vasta e diversa. Mas a morte continuava
presente nos amigos que morriam e no medo de que a qualquer momento fosse a
nossa vez.
1990/1992.
A Guerra Fria fica para trás, acontece Bicesse, é a paz. Raramente os jovens
foram tão felizes e cheios de vontade de resolverem a sua vida. Milhares emigram
das cidades em duas direcções: para Portugal, nas pedreiras, e para o garimpo
de diamantes nas Lundas. Em ambos os casos, a busca era pelo sonhado El Dorado.
Mais uma vez, sobretudo para os que estavam nas Lundas, o recomeço da guerra
significou a volta da morte física, do vazio espiritual, da preponderância da
escuridão sobre a luz.
Quando,
no outro dia, vi nas redes sociais o clamor de riso diante das palavras de
Luvualu de Carvalho, que comparou a paz ao oxigénio, eu não ri, não podia rir,
talvez ele falasse sem compreender inteiramente o que dizia, mas eu sabia o que
as suas palavras significavam.
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