Isaquiel
Cori│
Uma
pessoa que muito estimo e que há vários anos não via, perguntou-me um dia
desses: “Cori, o teu último livro está esgotado e já lá vão uns bons anos que
não publicas outro, o que se passa?” Referia-se ao romance “O último recuo”.
Na
altura, dei uma resposta de ocasião, até porque raramente me disponho a falar
sobre o que estou a escrever: tudo o que eu possa dizer a respeito é
provisório, pois só dou como acabado um livro a partir do momento em que o
mesmo está publicado. Mais tarde, lembrei-me do amigo, com quem me encontrava
tão sazonalmente. E voltei a pensar na sua pergunta.
Na
verdade, a minha não presença nos escaparates das livrarias resultava do facto
de ter ficado paralisado diante das transformações que ocorriam aos nossos
olhos, logo depois do alcance da paz. Mais do que o betão e o asfalto, o país
foi envolvido por um vórtice na alma. Houve um renovar da fé nas próprias
forças, na possibilidade de pessoalmente fazermos as coisas acontecerem. A
escuridão de morte que ofuscava o futuro e nos fazia sobrevalorizar o
dia-a-dia, o instante, e transformava, de modo ambíguo, as festas e as danças
numa espécie de celebração da vida e ao mesmo tempo da morte por ora adiada,
afastou-se e deixou a luz fluir, como uma janela que se abre ao dia ensolarado.
O país fervilhava de optimismo e acalentava sonhos de grandeza como o de vir a
ser a maior potência africana.
Nunca
os angolanos viajaram tanto! Nunca os angolanos se deslocaram tanto no interior
do seu território!
Embaladíssimos
pela alta dos preços do petróleo e com a entrada maciça de dólares,
acreditávamos genuinamente que era chegada a nossa vez, que tínhamos a
oportunidade histórica de “descolar” do atraso. Mais do que sermos nós a caminharmos
para o futuro, era mais do que nítida a sensação de que o futuro é que corria
em nossa direcção e que a nós bastava estarmos preparados para o acolher. Todos
os deuses de todos os credos pareciam conspirar a nosso favor e muitos de nós
chegaram mesmo a julgar que, afinal, éramos nós, divinal e providencialmente
redescobertos, o “povo escolhido”.
Tudo
isso criava uma tensão espiritual e existencial, o tal vórtice na alma, que ia
muito além do tumulto mensurável, palpável, das obras de construção civil. Pois
então, era preciso assimilar o que se passava, nas dimensões visíveis e invisíveis,
e só então avançar para a escrita. Isso, no entendimento de que a escrita é uma
forma de pôr ordem no caos, de racionalizar a confusão, de ordenar a desordem e pôr luz na escuridão.
***
Muito
admiro os que conseguem tirar de objectos materiais vozes, sons, ais, gemidos e
até gargalhadas. Fazem chorar a madeira e as cordas da viola, suscitam gritos
de alegria das peles esticadas dos tambores e com isso desbravam caminhos
insuspeitados nas almas solitárias, sedentas de amor. Aos naturalmente já
propensos à felicidade, fazem-lhes transbordar de alegria. E quando à música
instrumental se acrescenta a voz do cantor, que verbaliza ou não, que conta uma
estória ou se auto-recreia em solfejos a modos de imitação do que vaga e
incertamente supomos ser a voz dos anjos, fica composto o “cenário” que faz da
música um dos fenómenos mais poderosos da existência humana.
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