Isaquiel Cori
Carmen Tindó, professora de Literaturas Africanas da
Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ), esteve recentemente em Luanda,
onde apresentou o novo romance de Manuel Rui, “Travessia por Imagem”, a convite
da Editora Kilombelombe, e assistiu ao lançamento do Jornal Cultura. Já de
regresso ao Brasil, ela respondeu a algumas questões colocadas por este jornal,
enviadas por e-mail.
Jornal Cultura - O que nos pode dizer do
estado actual dos estudos universitários no Brasil, em geral, e na UFRJ, em
particular, a respeito da literatura dos países africanos de língua portuguesa?
Carmen Tindó - Há, na UFRJ e em muitas outras
universidades brasileiras, grande interesse pelos estudos literários e
históricos acerca do continente africano, especialmente sobre Angola, Cabo Verde,
Moçambique, Guiné-Bissau e São Tomé e Príncipe. Creio que por serem os países
de África que têm o português como uma de suas línguas. Lecciono há 19 anos as
Literaturas Africanas na UFRJ e o interesse veio crescendo a cada ano, tendo
aumentado com a Lei 10.639, criada pelo Presidente Lula, que exige a
obrigatoriedade do ensino das culturas africanas e afro-brasileiras em todos os
níveis de ensino e em todo o território brasileiro. Quando implantei, na UFRJ, o
Setor de Literaturas Africanas em 1993, quase nenhum aluno ouvira falar dessas
literaturas. Hoje, só na UFRJ, há mais de 30 teses e dissertações sobre as
letras africanas, especialmente sobre autores angolanos: Pepetela, Luandino
Vieira, Paula Tavares, Ondjaki, Boaventura Cardoso, Manuel Rui, Uanhenga Xitu,
Ruy Duarte de Carvalho, João Melo, João Maimona, Agualusa, Arnaldo Santos,
entre outros. Nas demais universidades brasileiras, há também diversas teses e
dissertações, cujos autores angolanos estudados são, quase sempre, os mesmos
que acabei de mencionar.
JC - Que autores e livros de
Angola e dos países africanos de língua portuguesa mais têm chamado a atenção
da comunidade académica brasileira?
CT - Na maioria, os editados no Brasil e em Portugal. São os autores
angolanos que referi na resposta anterior. Também são autores moçambicanos, como
Mia Couto, Paulina Chiziane, Craveirinha, entre outros. Os livros de Mia Couto,
Pepetela, Ondjaki e Agualusa são muito procurados. Os da Paulina Chiziane
também. Alguns textos já são clássicos: Luuanda,
do Luandino Vieira; os contos de Jofre
Rocha, falando dos musseques; os de Arnaldo Santos, focalizando o Kinaxixi; “A
morte do velho Kipacaça”, de Boaventura Cardoso; Quem me dera ser onda, de Manuel Rui; Mayombe, de Pepetela e muitas outras obras. Paula Tavares teve toda
a sua poesia publicada, em 2011, no Brasil. Antologias poéticas também saíram,
reunindo poemas de José Craveirinha, Rui Knopfli, Luís Carlos Patraquim. As obras
inteiras de Mia Couto e Pepetela estão sendo publicadas no Brasil. Isso é
importantíssimo, pois são mais lidos os escritores editados no Brasil, em
virtude de os livros saírem mais baratos.
JC - As obras de autores
africanos de língua portuguesa, no Brasil, circulam apenas nos círculos
universitários, por exigência curricular, ou tendem a ganhar também espaços nas
livrarias e na imprensa?
CT - Em geral, a maioria dessas obras
referidas só circula nos meios universitários. Na imprensa e nas livrarias,
costumam aparecer: Mia Couto, Pepetela, Paulina Chiziane, Ondjaki, Agualusa.
Paula Tavares começa a ser veiculada, depois de ter a obra poética reunida numa
antologia publicada no Brasil pela Editora Pallas. O mesmo ocorre com as
antologias dos poetas moçambicanos Craveirinha, Knopfli e Patraquim, editadas
em Belo Horizonte.
JC - Nas obras de autores angolanos, o que mais
interessa aos leitores brasileiros?
CT - A reinvenção de mitos, tradições e a revisitação
da história angolana pela ficção; o papel da mulher angolana nas sociedades
tradicionais e na modernidade; o humor como crítica social. Obras como Jaime Bunda, do Pepetela; Filhos da pátria, de João Melo; Quem me dera ser onda, do Manuel Rui,
entre outras, agradam muito, pois apresentam um riso que satiriza aspectos da
sociedade angolana, alguns dos quais podem ser associados a determinadas
situações ocorridas em contextos sociais brasileiros.
JC - Tem uma ideia, nem que seja aproximada, de quantas teses de
licenciatura (graduação) e doutoramento, tendo como tema a literatura dos
países africanos de língua portuguesa, foram produzidas, nos últimos anos, nas
universidades brasileiras e, particularmente, na UFRJ?
CT - Como respondi na primeira pergunta, na
UFRJ, temos cerca de 30 teses e dissertações. A UFF deve ter também umas 30; a
USP deve ter mais de 50; em todo o Brasil deve haver já umas 200. No portal da
CAPES, órgão brasileiro de fomento e apoio à pesquisa universitária, as teses e
dissertações de todo o Brasil são digitalizadas na íntegra para serem
consultadas pelo público brasileiro e internacional. O endereço desse site é: http://capes.gov.br/avaliacao/cadastro-de-discentes/teses-e-dissertacoes
JC - Particularizando: o que
a levou a dedicar-se profissionalmente ao estudo e ensino da literatura
angolana, em particular, e africana, em geral?
CT - Eu sempre gostei de literatura, mas leccionava
língua portuguesa e literatura brasileira. Quando soube que a UFRJ abriria
concurso para Professor das Literaturas Africanas, resolvi estudar e fazer as
provas. Eu tinha muitos livros, pois, quando fora a Cuba, comprara. Uma colega,
casada com um engenheiro português que trabalhava em Luanda, sempre que voltava
de Angola, me trazia variados livros; muitas obras eu também tinha adquirido
quando viajara a Lisboa. Autores como Luandino Vieira, Mia Couto, Pepetela,
Manuel Rui, Paula Tavares e Boaventura Cardoso me mostraram as múltiplas
possibilidades de diálogos com a literatura brasileira. Decidi, então,
mergulhar no estudo dessas obras. A qualidade dessas me fez optar por essas letras,
cuja magia literária me encantou e me fez abraçar o ensino das literaturas
africanas de língua portuguesa, na UFRJ, onde lecciono há 19 anos.
JC - Considera a literatura
angolana suficientemente autónoma e adulta?
CT - Embora a literatura
angolana seja ainda recente, considero-a autónoma e adulta, uma vez que já se
pode falar em um sistema literário angolano. Sistema no sentido empregado pelo
crítico brasileiro António Cândido, quando aborda a formação da literatura brasileira.
Nas letras angolanas, depreendem-se movimentos literários, cujas propostas
dialogam, algumas vezes se opondo e se ultrapassando, de modo que fundam
“gerações”, cuja trajectória delineia o corpo da literatura angolana, um corpo
sistêmico que lhe dá um estatuto de maioridade e autonomia. Na minha opinião,
nada é suficiente e definitivo. Assim, a literatura angolana está aberta a
mudanças, transformações, como as demais
literaturas. Gosto muito da produção literária angolana. Penso que esta,
aos poucos, se afirmará, cada vez mais, no Brasil e no mundo.
JC - Na sua última estadia em
Luanda, o que mais lhe chamou a atenção?
CT - O que mais me chamou
a atenção foi ver uma preocupação com a cultura. Parabenizo a iniciativa do lançamento
do “Jornal Cultura”, que pretende retomar alguns aspectos da antiga Revista
Cultura, da qual participaram Luandino Vieira e outros. As muitas obras na cidade de Luanda podem ser, por muitos,
consideradas como ícones da paz e da reconstrução nacional na sociedade
angolana. Contudo, o desenvolvimento de Angola, a meu ver, tem de priorizar a
cultura, as letras, a educação, a saúde e o transporte. Por isso, ao estar
presente ao lançamento do “Jornal Cultura” e ao ouvir as propostas deste,
fiquei muito bem impressionada, acreditando que será um veículo importante de
desenvolvimento cultural em Angola. Também
me despertou a atenção a alegria do povo comemorando dez anos de paz; ficou
patente que nenhum angolano deseja mais guerras. Outro aspecto que me sensibilizou foi ver a quantidade de amigos
que, nestes 19 anos de estudo das literaturas africanas, fiz em Angola.
Carmen Lúcia Tindó R. Secco é
doutorada em Letras pela Universidade Federal do Rio de Janeiro e foi
responsável pela implantação da disciplina de Literaturas Africanas no
Departamento de Letras Clássicas da mesma
universidade.