quinta-feira, 25 de julho de 2013

O lado obscuro e a vertigem das redes sociais

A Internet e as suas várias dimensões






Isaquiel Cori

É um facto que as redes sociais, actualmente, são o "carro chefe" da Internet, isto é, constituem o motivo principal dos usuários acederem à Web. Antes já o foram os motores de busca com a sua quantidade quase infinita de informação sobre praticamente todos os tópicos e assuntos.
Os internautas, vezes sem conta, perdiam-se [perdem-se] no meio de tanta informação, incapazes de fazer as devidas conexões e dar um rumo a tanto saber. E havia ainda [há] o aspecto da impessoalidade: ao accionar o browser estamos claramente a lidar com a máquina não apenas como meio mas também como fonte de informação.
É o contrário do que acontece com as redes sociais, onde o internauta lida com pessoas [virtuais], interagindo com elas, colocando questões e obtendo respostas a mais das vezes em tempo real. As redes sociais são assim o lado mais humano e humanizante da Internet, na medida em que a principal característica do ser humano é precisamente a socialização.
Mas aqui é pertinente colocar as questões: as pessoas com quem lidamos nas redes sociais são verdadeiramente reais? São mesmo autênticas?
Ou são máscaras, projecções idealizadas de eus solitários diante do computador? De gente que sonha e vive contente, amando, sofrendo, lutando, perdendo, ganhando, caindo, soerguendo-se, gritando, calando, batendo, apanhando, e projecta os seus sonhos, através do teclado do computador, tablet ou smartphone para a rede social de que faz parte?
Para mim, confesso, esse é o lado obscuro das redes sociais e que, não poucas vezes, me provoca vertigem. Gosto de falar com pessoas de carne e osso, olhá-las nos olhos, sentir as palavras a saírem-lhes literalmente da boca, acompanhar os seus gestos ou, pelo menos, se ao telefone, captar as nuances da sua voz.
Quando leio um post no facebook ou noutra rede social é como se estivesse a ler um romance: mais do que o autor, visualizo um narrador, um contador de estórias.  

terça-feira, 16 de abril de 2013

A Opinião do Escritor João Tala

Processo eleitoral na União dos Escritores Angolanos

Isaquiel Cori
 
Três perguntas ao escritor João Tala, a propósito do processo para eleição dos novos corpos sociais da União dos Escritores Angolanos. Tala é um dos inspiradores da candidatura da Lista B, liderada por António Gonçalves.
  
Tem alguma razão de queixa em relação à forma como está a decorrer o processo eleitoral?

Está uma campanha bastante desigual e a imprensa não equilibra a vontade das duas listas do mesmo modo. Por exemplo, determinado semanário, muito conhecido no país e não só, fez campanha a favor da Lista A por três semanas consecutivas. Sabemos como isso se processa com negociatas «debaixo da mesa». Mas isso reflete apenas a atitude de uns quantos escritores sempre envolvidos de pensamentos mercantilistas para benefícios próprios e de alguns jornalistas ávidos da "massa". Estou hoje nada fascinado com a mesquinhice que reina na UEA. Muitos confrades consentem miséria ideológica, desunião, clientelismo, a exclusão etc., para que possam acontecer coisas desse género. A campanha da Lista A começou muito antes da realização da Assembleia que fixaria o início a 01 de Abril e isso já me deixa intrigado. Há também o facto autoconsumista, com dispêndio de fundos da UEA à campanha própria por parte da actual direcção, cedendo apenas valor irrisório à lista oponente.

O que tem a acrescentar ao programa eleitoral da lista B em circulação?

A Lista B parte de uma experiência que é o trabalho com o escritor, é a valorização da escrita literária como contributo ao património cultural. Fóruns como o I Encontro Internacional de Literatura Angolana, realizado em 1987, a instituição de prémios literários como o "Prémio pelo Conjunto da Obra" e outros, a promoção de tertúlias na casa dos escritores estariam acima do mercantilismo aproveitacionista, devolvendo-nos o conforto das Ideias, curtindo a nata do pensamento que faz o escol em Angola.

Tem a convicção de que a vitória da lista B está garantida?

Não me falta a convicção de que a UEA deve mudar uma série de aspectos. Apesar da surpresa que constitui a quebra rotineira das unanimidades, as duas listas estão em condições de ganhar ou não. Não antecipo nada para ninguém porque até ainda estou gratamente em campaha pela Lista B e os outros também estarão a fazer a sua.

Tudo a postos para o pleito eleitoral na UEA


Amélia Dalomba, presidente da Comissão Eleitoral

 
Isaquiel Cori

 
A eleição dos novos corpos sociais da União dos Escritores Angolanos (UEA) acontece a 20 de Abril, na sua sede, em Luanda, com a apresentação de duas listas. A lista A é liderada pelo actual secretário-geral, Carmo Neto, e a B por António Gonçalves.
Até ao dia 18 decorre a campanha eleitoral, com os candidatos a movimentarem-se e a divulgarem os respectivos programas.
Amélia Dalomba, presidente da Comissão Eleitoral, disse que todo o processo está a decorrer “com imensa tranquilidade”.
“O nosso trabalho é estabelecer consensos e equilíbrios e estamos a encontrar bastante colaboração entre os candidatos. Não temos nenhuma situação que lese os estatutos”, referiu.
A escritora garantiu que “os preceitos democráticos e estatutários estão presentes no processo e estarão presentes no pleito eleitoral”.
Disse esperar que a campanha eleitoral continue a decorrer com transparência e civismo e que cada um dos concorrentes “cuide do respeito pelo prestígio e a memória da instituição”.  
Deu a conhecer que está previsto pelo menos um debate entre os cabeça de lista, em data por acertar, na Rádio Nacional.
Fazem igualmente parte da Comissão Eleitoral os poetas António Panguila e Nok Nogueira e um representante de cada uma das listas concorrentes. O resultado da eleição é conhecido no dia 20 e os órgãos eleitos tomam posse no dia 28.
A UEA, fundada a 10 de Dezembro de 1975, congrega a grande maioria dos escritores angolanos. As suas acções estendem-se pelas vertentes associativa e editorial. O incentivo à escrita e a promoção do livro, da literatura e da leitura são as suas principais actividades.

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Programa da Lista A 
Trazer a público novos talentos literários
O programa da Lista A, onde pontificam Carmo Neto, candidato a secretário-geral, e Adriano Botelho de Vasconcelos, presidente da mesa da Assembleia Geral, manifesta a intenção de promover e divulgar cada vez mais a literatura angolana e trazer a público novos talentos no quadro do princípio da continuidade. Segundo os seus mentores, está voltado para a elevação da imagem dos escritores angolanos, o aumento das publicações e o reforço do papel da instituição como uma referência nacional e internacional na literatura, contribuindo na promoção, divulgação, construção e conservação da história de Angola no domínio cultural.
O programa prevê fortalecer as capacidades internas, para melhor responder e servir os seus membros e a sociedade.  Estabelece como linhas estratégicas para os próximos três anos o reforço da capacidade, imagem e relações institucionais; a promoção e divulgação da literatura angolana e a identificação e promoção de novos talentos.
O secretariado executivo, refere o documento, levará a cabo acções de capacitação dos quadros internos sobre estratégias de realização e produção de programas culturais e estabelecimento de protocolos de parceria com diversas instituições (internas e externas).  
É garantido que a comissão directiva procurará mobilizar e proporcionar espaços e meios para divulgação das obras dos membros dentro e fora do país e trabalhar-se-á na descoberta de novos talentos, tornando-os públicos com vista a incentivar a juventude ao gosto pela escrita e leitura.
A Lista A impõe-se como missão assegurar a promoção e divulgação da literatura angolana dentro e fora do país; defender os interesses dos membros da UEA e trazer a público os novos talentos da literatura angolana.
A meta é tornar cada vez mais a UEA uma referência incontornável na literatura angolana, contribuindo na promoção, divulgação e conservação da história angolana, sobretudo no domínio cultural. É igualmente fazer da UEA um espaço de partilha entre escritores, baseados nos princípios da solidariedade, transparência, unidade e responsabilidade social.
De modo específico, os candidatos da Lista A pretendem aumentar os níveis de produção e venda de títulos (livros) durante os próximos três anos; proporcionar  mais espaços de debate, troca de experiências e divulgação das obras dos membros da UEA dentro e fora do país; e reforçar e criar novas parcerias com instituições nacionais e internacionais, estabelecendo protocolos de parceria nos vários domínios da promoção e divulgação da literatura angolana.
Pretendem também incentivar o gosto pela leitura e a escrita no seio dos jovens e melhorar a capacidade de prestação de contas e as condições da UEA para prestar  serviços públicos.
O documento refere que, a ser eleita, a Lista A vai bater-se pela mobilização de meios para a produção de mais de 60 títulos dos membros da UEA a nível interno e externo, o estabelecimento de protocolos de parceria com Universidades e livrarias e por uma maior tradução da literatura angolana nas línguas estrangeiras mais influentes (inglês, francês, espanhol, italiano e alemão).
Vai realizar a Feira Internacional do Livro da UEA, com periodicidade anual, o Grande Prémio de Literatura da UEA, com carácter bianual, lançar o  Prémio António de Assis Júnior, revitalizar o Prémio Quem Me Dera Ser Onda e institucionalizar os prémios Alda Lara e Eugénio Ferreira, este especificamente no campo da crítica literária.
Com a Lista A, é prometido no seu programa, a literatura angolana passará a estar representada nos eventos literários internacionais, serão levadas “biblioteca e leitura” às principais unidades prisionais do país e publicitadas as obras literárias nos meios de transportes públicos e privados.
Serão feitas parcerias com a comunicação social para a promoção e divulgação da literatura angolana, realizados eventos culturais tais como a comemoração dos 50 anos de lançamento do livro “Luuanda”, do escritor Luandino Vieira, e a Semana Africana na Universidade de Coimbra, em Portugal.
Do programa consta igualmente a realização de um Seminário Internacional de Literatura sobre Guerra e Paz, um encontro nacional de escritores, a participação em feiras internacionais do livro e encontros de confraternização durante os aniversários da UEA.
O projecto de liderança de Carmo Neto para os próximos três anos inclui a recolha e selecção de novos potenciais parceiros para apoiar a promoção e divulgação da literatura angolana, a promoção de bibliotecas junto dos estabelecimentos escolares, formação e debate sobre crítica literária e o estabelecimento de protocolos com o Ministério da Educação para que nas escolas, a todos os níveis, seja obrigatório o estudo da literatura angolana e a divulgação dos escritores angolanos.
É prometida a avaliação interna e externa das contas da UEA e garantido o apoio à assistência médica e medicamentosa dos membros da UEA e pessoal administrativo.
O lema da campanha da Lista A é: “Unidos na União”.
 
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Programa da Lista B
Influenciar linhas de pesquisa universitárias


O programa da Lista B, segundo os seus mentores liderados pelo escritor António Gonçalves, é “inspirado nos grandes ideais que nortearam o surgimento da Geração da Mensagem (1948) e dos intelectuais precedentes, imortalizados no livro ‘Voz de Angola clamando no deserto’ (1801), primeiros pensadores angolanos e fundadores da nossa Literatura nacional”. 

A intenção da Lista B, segundo o preâmbulo do seu programa, é “colmatar inúmeras lacunas existentes no funcionamento actual da maior e mais antiga associação de escritores em Angola”.
Noutra vertente, é referido que se pretende “reclamar a maior adaptação da UEA aos novos tempos, projectar um futuro rico em inovações, mas sem esquecer a história do Povo Angolano e dos seus Heróis”. É igualmente projectado “recuperar o protagonismo perdido pela UEA como elemento ‘chave’ da sociedade civil e restaurar o orgulho de ser escritor-membro desta prestigiada associação”.
Concretamente, o programa da Lista B consiste em negociar um seguro para todos os escritores necessitados, organizar, em 2014, um colóquio em homenagem ao 90º aniversário natalício de António Jacinto (28 de setembro de 1924 — 23 de Junho de 1991), membro fundador da UEA e um dos grandes da literatura nacional e apoiar, em 2014, a segunda Edição da Bienal Internacional de Poesia de Luanda.
É pleiteada a organização, em 2015, da segunda edição do Encontro Internacional sobre Literatura Angolana, a consolidação do projecto editorial da UEA e o fortalecimento, de forma contínua, da publicação e divulgação de livros.
É referida a intenção de retomar a divulgação do Concurso Primeiro Livro, para os novos autores em todo o território nacional, a criação do Prémio UEA para o conjunto da obra de um escritor angolano, a ser entregue no dia 10 de Dezembro, em conjunto com o Prémio Primeiro Livro.  
É proposta a criação de uma comissão para pesquisar e sugerir a instituição do Dia do Escritor Angolano, a publicação da gazeta Lavra & Oficina, com periodicidade mensal, e a promoção de encontros nacionais de escritores, com cada edição numa província e o apoio do executivo local.
A liderança de António Gonçalves propõe-se a organizar, em cada dois anos ou sempre que as condições permitirem, um festival internacional de poesia de Angola com a presença de poetas do mundo, “com destaque aos nossos irmãos africanos”,  revitalizar os acordos já assinados pela UEA e reforçar os laços privilegiados com as diferentes associações de escritores da CPLP e de países como África do Sul, Congos, Zâmbia, Namíbia e da América Latina.
A Lista B promete criar programas de Oficinas de Escrita Criativa dirigidos especialmente a jovens, com a colaboração de especialistas de Angola, Cuba, Portugal e Brasil, proporcionar condições para a construção da Casa do Escritor, que, com os devidos apetrechamentos, servirá também para albergar personalidades estrangeiras convidadas pela UEA.
No seu projecto de gestão António Gonçalves, que se faz acompanhar pelo poeta João Maimona, proposto a presidente da mesa da Assembleia Geral, inscreve a produção de um programa, em formato televisivo e adequado ao radiofónico, para a divulgação e discussão da literatura e suas implicações na sociedade e o desenvolvimento de um projecto que permita manter convénios com instituições do ensino superior vocacionadas para o ensino de literatura, estimulando e influenciando as suas linhas de pesquisa.
É também referida a ideia de revitalizar os concursos infanto-juvenis e a sua extensão a escolas em todas as províncias.
Nas províncias onde as condições o permitam deverão ser criados  núcleos provinciais da UEA, com o apoio do Executivo local através da direcção provincial da Cultura.
Serão organizados encontros de confraternização entre escritores, para estimular as tertúlias, tendo como convidadas personalidades de destaque da vida sócio-cultural do país, bem como visitas turísticas a locais históricos e culturais espalhados pelo país, em companhia de personalidades nacionais e estrangeiras.
Finalmente, o programa da Lista B promete redefinir os critérios de atribuição da bolsa de criação literária, estabelecer um acordo com a coordenação das Mediatecas, de modo a ter-se em conta a divulgação e promoção dos livros dos escritores angolanos e estabelecer acordos com instituições culturais sediadas no país e no exterior.
“Competência, Responsabilidade e Solidariedade. Por uma União ao Serviço dos Escritores, da Cultura e da Nação” é o lema adoptado pela campanha de António Gonçalves.
 
 
 

 

domingo, 31 de março de 2013

As nuances do 1 de Abril, o Dia das Mentiras

Onde se fala de mentiras “inocentes” e “sérias
 
 
Isaquiel Cori


Sim e não. Branco e preto. Grande e pequeno. Bom e mau. Alto e baixo. Verdade e mentira... É assim que, na generalidade, o senso comum tende a pintar o mundo, como se a vida fosse uma pobre moeda de duas faces. Pepetela, no seu celebrado romance, “Mayombe”, introduz, entre o sim e o não, a questão do talvez. E entre a verdade e a mentira?

Crescemos a ouvir, e agora dizemos aos nossos filhos, que mentir é muito feio. E que mais vale dizer a verdade, seja em que circunstância for. Mas, como na história bíblica, por analogia, diante da pecadora, quem nunca mentiu, que atire a primeira pedra.
“De quando em vez, uso umas mentirinhas. Por exemplo, às vezes digo aos meus filhos que vamos passear a um determinado lugar e acabamos por não ir”. Tratam-se de mentiras “inocentes”, “sem consequências de maior”, na óptica de Rosa Gracieth, 39 anos. Para lá desse tipo de mentira, ela distingue outro, “mais sério”: “Há aquela mentira que chega a ser um roubo. Por exemplo, alguém vende-te um produto por dois mil kwanzas, quando o seu preço verdadeiro é mil. Mais do que mentira, isso é um roubo”.
Leonilda Damião, 32 anos, é igualmente de opinião que existem mentiras “inocentes”, “toleráveis”: “De quando em vez, quando quero uma coisa do meu esposo, minto, e, ao fim e ao cabo, descubro certas verdades. Quando a mentira não é destrutiva mas saudável, ela contribui para uma boa relação”.
Mentiras afectivas?, interrogamo-nos nós.
Definitivamente, há gradações no mentir. Mentiras “inocentes”. Mentiras “sérias”. Se aquelas são parte íntima do jogo saudável das relações humanas (nesta acepção, podem ser expressas pelos verbos “estigar”, reinar, caçoar, brincar) já estas podem ter efeitos danosos. “Quando alguém me mente sinto-me muito zangada. É triste e frustrante. Perco logo a confiança nessa pessoa”, exclama Leonilda Damião.
“Sinto-me decepcionado, sobretudo se o mentiroso for alguém que convive comigo. Encaro essa mentira como um acto de traição”, acrescenta Adriano Makuéria, 38 anos.
“A mentira, para ser saudável, tem de ter limite. A pessoa que mente tem de saber que não vai prejudicar ninguém”, opina Gina Lopes (não quis dizer a idade), sub-directora pedagógica da escola primária 6.014. “Num desses 1 de Abril, alguém ligou-me a dizer que um amigo morreu. A notícia espalhou-se e até chegou a formar-se óbito, quando na verdade o tal amigo estava bem vivo e a dar as suas voltas. Senti-me muito transtornada e ofendida”, revela.
Gina Lopes acrescenta o fenómeno da mentira aos males que vêem sendo observados e recenseados na sociedade angolana. “Em Angola mente-se muito, tanto a nível das figuras públicas como das outras. Tendem a dizer que podem, quando na verdade não podem. Muitos jovens, quando querem conquistar uma rapariga, fruto da pobreza em que vivem, fazem-se passar por alguém que não são. E agora, com o uso generalizado dos telemóveis, as pessoas tornaram-se muito mais mentirosas”.
Porventura também mente-se por caridade? Por amor?
“Sim”, afirma Leonilda Damião. “Há quem, diante de um defeito do companheiro, para não magoá-lo, prefere mentir”.
Entre homens e mulheres, em Angola, quem mais tende a mentir? À falta de estatísticas, que nos dariam um quadro objectivo do problema, contentamo-nos a colher a opinião dos nossos interlocutores. “Acredito que haja um equilíbrio. Todo o ser humano está sujeito a mentir”, diz Gina Lopes.
Adriano Makuéria é mais contudente: “As mulheres mentem mais. Veja que raramente elas aceitam dizer a sua idade ou, se trabalham, o salário que auferem”.
“Os homens mentem muito mais. Vejo mais seriedade nas mulheres”, defende Casimiro Morais, 40 anos.
Na escala de graduação da mentira há que mencionar aquela que está associada ao maravilhoso, à fábula, ao sonho. Este é o mundo, por excelência, da literatura, da ficção. “O escritor mente para fazer passar a sua mensagem. Ele é um educador, já que tenta criar uma mentalidade nova. O escritor pode recorrer a personagens fictícias para, digamos assim, salvar a sociedade”, refere Timóteo Ulika (pseudónimo literário do historiador Cornélio Caley).

A perspectiva jurídica

Segundo Lazarino Poulson, advogado, não existe mentira legítima. “A mentira é sempre um engano”, afirma. “Eventualmente, a mentira pode ser admissível no âmbito do trato, da cortesia, mas nunca na esfera jurídica. Aliás, há crimes que têm na sua base a mentira. São os casos dos crimes de burla, de peculato, de abuso de confiança e de falsificação”.
Na óptica do advogado, nem mesmo o Dia das Mentiras pode servir de desculpa para mentiras danosas. “Imagine que no dia 1 de Abril alguém desperte um alarme de bomba num aeroporto. Isso pode provocar pânico e daí danos materiais e outros. A esse indivíduo deverão ser imputadas responsabilidades civis e criminais. Quando a mentira provoca danos ou afecta os nossos direitos, ela é muito perniciosa”.
A classe profissional que mais mente, na percepção de Lazarino Poulson, é a das secretárias. Seguem-se-lhe, por esta ordem, a dos políticos, dos advogados e dos jornalistas.
O jurista Noé Filho esclarece que, juridicamente, uma mentira pode redundar num falso testemunho, quando “um indivíduo faz um depoimento contrário à verdade por ele conhecida”. Noé Filho menciona também a figura da simulação, no âmbito do direito civil, “quando alguém pretende realizar um negócio mas age de forma diferente, como se o não quisesse realizar”.
O jurista elucida que, em Direito, a acção consiste em fazer ou em não fazer. “Logo, também pode-se mentir por omissão”.
Ele reconhece que, por razões profissionais, os advogados podem ser obrigados a mentir... por omissão. “Pelo sigilo profissional, os advogados não têm a obrigação de narrar certos factos concernentes à situação dos seus clientes. Eles não podem, no tribunal, dizer algo que possa prejudicar os seus clientes”.
Noé Filho admite que se possa mentir no dia 1 de Abril. “Há mentiras grosseiras, aquelas que, pelo modo como são ditas, não têm a possibilidade de encontrar qualquer crédito. Essas são as mentiras toleráveis no Dia das Mentiras. Já as mentiras mais refinadas, aquelas que são ditas no sentido de produzir um efeito contrário à realidade ou para conseguir um proveito ou para que as pessoas tenham um determinado comportamento, não são, de modo nenhum, toleráveis”.

 

NA – Este texto foi originariamente publicado aqui em 23 de Agosto de 2009. Republico-o por achá-lo perfeitamente actual.

 

domingo, 24 de março de 2013

MULHERES: ESSAS DESCONHECIDAS...

Isaquiel Cori
 
 
Já em 1858, um eminente pensador, M. De Ponsan, no seu livro “História Filosófica e Médica da Mulher”, escrevia: a mulher “é um ser multiforme; autêntica Proteia, muda de aspecto sob os nossos olhos, segundo as paixões que nos animam: é o céu, é o inferno, é um anjo, um demónio, o dia, a noite, a paz, a guerra, o amor, o ódio, a beleza, a feieza, uma graça, uma fúria; é sempre ela, sempre a mesma, sempre una e sempre múltipla: una em relação a ela, múltipla em relação a nós, cujas paixões são várias. E como é feita para as nossas paixões, se a quisermos julgar sem paixão escapa-nos, nunca mais a encontramos”.

Trata-se evidentemente de um olhar e de um discurso masculino sobre a mulher.

Hoje, em pleno século XXI, a mulher continua a concitar a admiração dos homens, ao mesmo tempo que continua por eles incompreendida. Ela é um mistério nunca desvendado, uma fruta saborosa de que se desfruta mas que nunca é verdadeiramente possuída…

… Cá estamos nós, também, a incorrer nos estereótipos do discurso masculino sobre a mulher...

Décadas de luta e de conquista dos seus direitos cívicos, políticos, económicos e sociais, transformaram a mulher hoje num ser dotado de uma visão e de um discurso próprios.

Cantada na música e na poesia, exaltada nas artes, ela hoje não só canta-se e exalta-se a si própria, mas também estende o seu olhar em redor e dá corpo a uma visão própria do mundo, da vida, e até mesmo do homem, a partir de uma sensibilidade ‘diferente’.

De tal modo que alguns estudiosos da cultura chegam a falar numa música, numa poesia e numa arte, em geral, ‘feminina’.

A noção de ‘sexo fraco’ há muito deixou de fazer sentido, tal como a noção implícita de ‘sexo forte’: descobertas científicas atestam realmente a existência de algumas diferenças fisiológicas e ao nível do funcionamento do cérebro, entre homens e mulheres, mas nada que aponte para uma pretensa superioridade de um sexo sobre outro. No fundo essas diferenças resultam tão somente em sensibilidades e percepções específicas, que definem, afinal, o homem e a mulher.

Entretanto, a afirmação integral da mulher, em todo o mundo, ainda é uma meta por alcançar. Apesar de já existir uma numerosa élite de mulheres competentes, bem formadas técnica e academicamente, elas continuam essencialmente à margem dos centros de poder e de decisão.

Aqui não se trata já, tão somente, de uma questão de discriminação das mulheres, mas de uma questão mais global de défice dos direitos humanos, pois as mulheres constituem mais de 50 por cento da população mundial. E em se tratando de desenvolvimento humano, nas suas componentes política, económica, social e cultural, a marginalização das mulheres revela-se absurda e um factor de entrave para esse mesmo desenvolvimento.

À medida em que mais e mais contingentes de mulheres acederem a níveis de educação cada vez mais elevados e livrarem-se da pobreza, e à medida, também, em que mais e mais homens libertarem-se das amarras do preconceito, estamos certos, a igualdade de género, que será sempre uma meta e nunca um fim em si mesmo, uma igualdade baseada no justo reconhecimento do mérito e não obtida à força de discriminação, positiva ou negativa, será uma realidade.

 

terça-feira, 8 de janeiro de 2013

A força e o poder da fé erguem um novo templo

- Igreja Metodista Unida de António Rocha

Isaquiel Cori      Google+
 
A convite de Joca da Costa, presidente da junta administrativa, estive, num domingo recente, no culto da Igreja Metodista de António Rocha, no bairro Golfe 1. Foi a segunda vez que lá estive.
A primeira foi há cerca de dez anos e encontrei então uma igreja a funcionar numas instalações precárias de pau-a-pique. Algumas paredes pareciam ir cair a qualquer momento. Os crentes amontoavam-se num espaço pequeno com pouca circulação de ar e ao longo de todo o culto jamais largavam os lenços com que tentavam enxugar o calor do rosto.
A igreja de António Rocha serve uma comunidade que se estende do Golfe ao bairro Popular, maioritariamente de origem camponesa. Como em todas as igrejas angolanas, as mulheres são o motor da igreja, são elas que dinamizam as principais actividades. Ao longo da semana, pude informar-me então, elas iam às suas lavras nos arredores de Luanda, para regressarem à sexta-feira e então irem ao domingo assistir ao culto. Os seus filhos compunham a sociedade de jovens e davam as suas vozes ao grupo coral da igreja. Muitos desses jovens acabavam por namorar e casar com companheiros da igreja.
No domingo recente em que estive na Igreja de António Rocha constatei, diria incrédulo se não estivesse no interior da igreja, que a junta administrativa da igreja, agora composta em grande parte pelos filhos das mamãs camponesas, muitos dos quais  adquiriram a formação universitária, liderados pelo pastor Calenji, deitou abaixo o “edifício” de pau-a-pique e ergueu uma igreja digna desse nome, toda ela em cimento armado, com assentos no rés do chão e no primeiro andar. A arte decorativa no interior, ainda inacabado, em nada fica a dever aos lugares de culto situados em comunidades mais abastadas.
Há dez anos a igreja, em termos arquitectónicos, estava perfeitamente inserida no seu meio: a maioria das casas em redor era de pau-a-pique ou madeira, com quintais de chapas de zinco. Com o tempo as casas em redor passaram a ser de blocos de cimento, tal como os quintais: nesse cenário, a igreja de pau-a-pique parecia uma relíquia. Hoje, com o seu magnificente edifício, a Igreja de António Rocha sobressai no bairro, onde é o seu “farol” arquitectónico, a referência das referências.
Ao longo do culto pude aperceber-me que o mosaico  sociológico da comunidade de António Rocha é basicamente o mesmo de há dez anos, mas com uma franja mais alargada e activa de jovens conscientes do seu papel de baluartes da igreja. As mamãs e os papás camponeses estão cansados e muitos deles desiludidos com as desapropriações das suas lavras que deram lugar à construção de bairros residenciais, fábricas, o novo aeroporto e outros empreendimentos. Alguns dos papás e mamãs que eu há dez anos vira cheios de vigor e saúde a cantar e a dançar hoje ainda cantam e dançam mas estão visivelmente velhos, cansados e até mesmo doentes. Todavia, é visível nos seus olhos o brilho aceso pela fé  e o orgulho de terem participado da obra de construção do novo templo. E pelo facto de verem os filhos a erguer o testemunho da igreja.
Durante muito tempo reflecti sobre a força da fé e da igreja e do quanto as pessoas podem ser levadas a fazer boas obras em prol da comunidade, independentemente da sua condição social. A obra monumental da nova igreja de António Rocha foi feita com dinheiro arrecadado nos cultos. Tostão a tostão, kwanza a kwanza, as contribuições de cada um dos crentes e eventuais visitantes permitiram a concretização do sonho: uma igreja nova, moderna, digna dos crentes mas, sobretudo, do próprio Deus que eles adoram.
Ao sair daquele culto dominical renovei a minha fé em Deus e na capacidade que Ele tem de inspirar os homens a juntos fazerem coisas boas.

quarta-feira, 29 de agosto de 2012

ELEIÇÕES GERAIS EM ANGOLA 2012

Campanha eleitoral de "quase quase"

 
Isaquiel Cori

A campanha para as eleições presidenciais e legislativas de 31 de Agosto, para mim, deixou uma sensação de “quase quase”, de algo incompleto, inacabado. Nesse período, os políticos esgrimem os seus mais profundos argumentos para aliciamento do eleitorado, chegando ao extremar das posições. Em todo o mundo é nas campanhas eleitorais que se revelam os instintos mais básicos dos políticos e em que os seus discursos não escondem ao que vêem e põem mais claramente a nu o seu destino e vocação: a manutenção ou a conquista do poder.
A campanha eleitoral, se não chegou a ser ruim, foi morna. Num previsível crescendo, vieram ao de cima algumas questões que, fora desse período, o bom senso convencionou não abordar, por ferirem a ainda tão frágil reconciliação nacional. A memória da guerra, que vem sendo fixada, num meritório esforço de exorcismo, através de livros de vários autores/actores preocupados em fornecer subsídios aos historiadores, foi lançada na agenda da campanha por várias formações políticas. Eu, que julgava que a guerra, não devendo jamais ser esquecida, transformara-se em mero registo da história e reminiscência tênue na memória de uma ou duas gerações que os tempos acelerados prematuramente envelheceram, fiquei assustado. É que na boca dos políticos o tema da guerra  tem um enorme potencial de deitar por terra o edifício reconciliatório que a nação conseguiu construir ao longo dos anos de paz. Tenho dito aos amigos que têm a paciência de me escutar que a temática da guerra deve ser entregue aos sociólogos, historiadores, antropólogos, psicólogos, filósofos e outros académicos, para a dissecarem da mesma forma como os biólogos matam o seu objecto de estudo para descortinarem o seu modo de funcionamento interno e assim chegarem a verdades mais gerais. Não mencionei os escritores e os poetas porque estes há muito mergulharam no interior da guerra e os seus livros estão aí a  interpelar as nossas consciências e a mostrar a dimensão da loucura colectiva.
Voltando à vaca fria. Ainda não foi desta que a campanha eleitoral serviu para unir os angolanos. Os partidos políticos, apesar de se dizerem interessados no voto de todos os angolanos, na prática mostraram-se fundamentalmente sectários, quase inteiramente voltados para os seus militantes e apoiantes. Por exemplo, os actos políticos de massas, sendo uma exibição da força interna e organizada do partido, ao mesmo tempo constituem um momento de separação entre o “nós” e os “outros”.
Os tempos de antena na televisão e na rádio foram um maçante desfiar de monólogos, de discursos unidireccionais e arrogantes.
De repente, os serviços noticiosos mais nobres da TPA e da RNA, invadidos com notícias redundantes, tornaram-se intragáveis, obrigando os consumidores mais lúcidos a exercerem o direito de mudar de canal. O MPLA, naturalmente, aproveitando o vazio legal, e estando-se no período do “tudo ou nada”, em que em causa está acima de tudo a continuidade no poder,  tirou o maior proveito possível da comunicação social pública. Esse facto traz a tona a necessidade imperiosa de se legislar e regulamentar a respeito de todos os aspectos da campanha eleitoral, ao invés de os deixar à deriva da ética e do bom senso. Traz igualmente à ribalta a questão das relações entre o jornalismo e a política e do quanto entre nós o jornalismo está profundamente inquinado pela política. É ainda sintoma de que o jornalismo angolano hoje ainda não se emancipou para ganhar o estatuto de consciência moral da sociedade e almejar um lugar de respeito na história.
Do lado da UNITA vieram os maiores motivos para calafrios. A bandeira da fraude antecipada, da desconfiança visceral nas instituições, o nacionalismo fundamentalista com alardes racistas, tribalistas e regionalistas, que se julgava superado com o choque cultural e científico da modernidade, revelaram uma UNITA acossada nos seus medos, presa a questões atávicas de identidade.
A CASA-CE, que alguns apontaram como a terceira via, revelou-se uma força política inteiramente tributária do carisma do seu líder, que lhe confere a aparente unidade e capitaliza e canaliza algumas frustrações oriundas do MPLA e da UNITA. Ora, até aonde irá uma formação política essencialmente reactiva, assente em bases tão precárias?
A campanha eleitoral permitiu enxergar melhor aquela franja de jovens que se autodenominam revolucionários e que, há alguns meses, protagonizaram manifestações de rua contra o regime instituído. De tendência confusamente libertária e anarquista, essa franja de jovens viu-se órfã com a exclusão do Bloco Democrático do processo eleitoral. O BD era a formação política que mais se esforçava por enquadrá-los politicamente, juntando-se invariavelmente às suas manifestações de rua.
A campanha eleitoral revelou mais uma vez a força dos partidos políticos e a fragilidade dos movimentos políticos reivindicativos apartidários. Depois das eleições os jovens ditos revolucionários terão de redefinir a sua identidade, os seus propósitos ideológicos, optando por um partido político existente, criando eles próprios um partido político ou fundando uma associação da sociedade civil.. Sob pena da sociedade assimilá-los como meros arruaceiros.
Enfim, na sexta-feira (31 de Agosto) vou votar lá para o final do dia, pois só o poderei fazer depois da jornada de trabalho. Cá estarei para depois debitar umas quantas palavras sobre os resultados eleitorais.


KANDENGUES ONTEM, KOTAS HOJE


ISAQUIEL CORI
 
 

Envolvidos profundamente na aventura de viver, mergulhados no dia-a-dia, perdemos muitas vezes a noção da transcendência e do quanto o tempo que vivemos, repartido por minutos e horas, nos transforma. Mas chega finalmente o dia em que somos como que arrancados desse torpor e violentamente catapultados para a visão da nossa existência passageira.

Foi o que aconteceu comigo, num desses dias cinzentos e iguais. Caminhava eu para casa, depois de uma esgotante jornada de trabalho, quando um rapaz, de um grupo de quatro ou cinco em aceso debate inconclusivo, apontou para mim e disse vigorosamente: “Olha, ainda bem. Está aqui um kota da banda, vamos tirar as dúvidas com ele”.

Foi como se me tivessem acertado com um soco no peito. “Kota eu, desde quando!”, exclamei, quase a cambalear.

Pousei no chão o peso do dia, feito de rotina e tédio, e lancei um repentino e profundo olhar sobre a minha existência. Uma profusão de pensamentos e imagens tomou conta da minha cabeça e fui dominado por um sentimento misto de saudade, dor, perda e exaltação.

Submisso, entregue à vida com a vontade de a viver sem queixumes, não reparara que ela, aos poucos, de modo insidioso e silencioso, me foi corroendo a inocência e pondo calos na minha alma. A anteriormente densa e enorme floresta em que cada árvore era um amigo, ou em que cada amigo era uma árvore, estava, via eu agora com uma nitidez estonteante, repleta de clareiras. E era mais difícil respirar.

 “Ainda ontem criança, hoje já sou um kota da banda? Como não me apercebi do passar do tempo, meu Deus?”, interroguei-me.

Lutando pela vida, a vida transcorrera em mim e até aqui não me apercebera do quanto o tempo me transformara. Sempre a viver na desportiva, com muito “fair play”, apesar de já ter constituído um lar, de ter sido sacudido por muitos embates da vida, de possuir a cabeça ornamentada por uns quantos cabelos brancos e ter sido prematuramente “premiado” com umas doenças típicas de mais velhos, jamais, verdadeiramente, me sentira “kota”.

Mas agora, ante a solicitude confiante e infantil do rapaz, da candura com que se dirigiu a mim, abriu-se-me uma nova perspectiva e, como nunca antes, assumi, na intimidade e em toda a plenitude, a minha condição de mais velho. Afinal, o tempo não perdoa. A vida chamava-me à responsabilidade.

 “Qual é a vossa dúvida, kandengues”, perguntei, já no papel de “kota da banda”.

 

 

Kota da banda – Mais velho do bairro

Kandengue da banda – Miúdo do bairro

PS: Esta crónica está publicada algures neste blog. Acabo de revê-la com algumas alterações.

terça-feira, 26 de junho de 2012

MENDES DE CARVALHO / UANHENGA XITU: "SINTO QUE PODIA TER FEITO MAIS"

O veterano político e escritor, Doutor Honoris Causa pela Universidade Metodista de Angola, insiste que é um mero contador de estórias




Isaquiel Cori


O veterano escritor e político reformado Mendes de Carvalho “Uanhenga Xitu”, foi distinguido com o título de Doutor Honoris Causa pela Universidade Metodista de Angola (UMA), no passado dia 25 de Maio. Foi a primeira vez que uma instituição de ensino universitário no país atribuiu tal título. Na Carta Doutoral, assinada pela reitora Teresa José Adelina da Silva Neto, a UMA refere que a homenagem leva em conta “a dedicação de toda uma vida, pela via da sua profissão, enquanto enfermeiro, pela via da sua dedicação às artes, e à cultura em geral, enquanto escritor, e pela via da sua intervenção política comprometida, primeiro como opositor ao governo colonial português, depois como governante e como deputado, à construção de uma Angola livre e independente e à ilustração e bem estar do seu povo”.
O jornal Cultura aproveitou a oportunidade para colher algumas palavras do escritor, que, apesar da força da idade (quase 88 anos) ainda conserva a lucidez do discurso.

Jornal Cultura - Qual é o seu sentimento, depois de ter recebido o título de Doutor Honoris Causa pela Universidade Metodista de Angola?
Mendes de Carvalho/Uanhenga Xitu – Recebi muitos elogios, não sei se merecidos. Diante da minha biografia e dos elogios sinto que podia ter feito muito mais.
JC – Continua a escrever?
MC/UX – Já não escrevo.
JC – Há quanto tempo não escreve?
MC/UX – Há uns anos. Quase perdi a vista e ouço muito pouco. Tentei ditar aos meus sobrinhos, mas a coisa não é a mesma. Acabei mesmo por deixar de escrever.
JC – Não sente a falta do exercício da escrita?  
MC/UX – Leio um pouco os jornais e tenho uma filha que me lê alguns livros. Por exemplo eu nunca tinha lido os meus livros. Quando a minha filha me leu “O Ministro” dei-me conta que é um livro que continua muito actual.
JC – Até que ponto as suas obras são ficção ou realidade?
MC/UX - Nos meus livros a ficção e a realidade se entrelaçam.
JC – A trama da maioria das suas obras se desenvolve no meio rural. O ambiente urbano nunca o cativou?
MC/UX – Nasci e cresci no meio rural. Lá as coisas são mais vivas mas sei que o meu “mato” não é necessariamente o “mato” de hoje. Muita coisa mudou e as pessoas também mudaram de comportamento. Deixo as coisas do meio urbano para os que sabem escrever. Os meus livros não têm literatura, não sou capaz de fazer redacções literárias. Eu penso em kimbundo e traduzo para o português. As minhas memórias da infância e da juventude tenho-as em kimbundo e elas é que serviram de material para os meus livros.
JC – O que é que mais o preocupa quando pensa na literatura angolana?
MC/UX – Alguns jovens já estão a dizer muitas das coisas que eu esperava.
JC – O que é que esperava?  
MC/UX – O retrato da vida do povo, a sua miséria, o seu estar, a realidade actual.
JC – Nunca pensou em passar para o papel a sua trajectória de vida, as suas memórias?
MC/UX – As minhas memórias estão nos livros que publiquei. Considero o livro “O Ministro” uma relíquia.
JC – Considera este livro o mais importante que escreveu?
MC/UX – Um dos mais importantes. Todos eles são meus filhos. O “Mestre Tamoda” tem as suas características próprias. Em “Manana” fui longe demais, mergulhei fundo na tradição, na vida dos mais velhos, no conhecimento do feitiço, do xinguiladores…
JC – Começou a escrever na cadeia, no Tarrafal, em Cabo Verde. Como era possível?  
MC/UX – Escrevíamos nuns papéis de embrulho, que vinham da loja. Era animado por rapazes como o António Jacinto, o António Cardoso e o Luandino Vieira. Quase todos os meus livros foram escritos na cadeia. Lá eu tinha tempo, sonhava. Escrever era um passatempo.
JC – Além do poema “Eu sou pueta de Kimbundu”, que está no livro “O Ministro”, não se lhe conhecem outros poemas. A poesia nunca o cativou?
MC/UX – Não sou poeta. Não tenho jeito para escrever poesia. Mas gosto de boa poesia.
JC – Quais os escritores que mais respeita e admira?
MC/UX – O Luandino Vieira, o Pepetela, os cabo-verdianos Baltasar Lopes, autor do romance “Chiquinho”, e Manuel Lopes, que escreveu “Chuva Braba”.  
JC – Ainda é muito procurado por jovens aspirantes a escritores?
MC/UX – Continuam a procurar-me. Perguntam-me se os meus livros são ficção ou realidade e querem que eu os ensine a escrever. Eu digo que a ficção também é realidade.
JC – Continua a insistir que não é um escritor mas um simples contador de estórias. Isso não é excesso de modéstia?
MC/UX – O que é um escritor? É um homem que escreve livros com preocupações de linguagem. Os camaradas é que me dizem que sou escritor. A forma nunca me preocupou. O importante era escrever. Não me gabo como escritor porque sei que cometi muitos erros. Não é modéstia a mais.
JC – Disse que continua a pensar em kimbundo. Os jovens parecem cada vez mais longe do aprendizado das línguas nacionais…
MC/UX – Não falo tão bem, mas ouço muito bem. Dos nossos pais recebemos o erro, por influência do colonialismo português, de que as nossas línguas eram língua de cão.
JC – Que conselhos dá aos mais novos, aos jovens?
MC/UX – Aconselho-os a estudar, a ler muito, a confiar no trabalho que o Presidente da República está a fazer. Hoje há mais casas, mais estradas, o caminho-de-ferro está a funcionar. Neste últimos anos foi feito muito trabalho. Por isso há esperança de que o futuro será muito melhor.


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Agostinho André Mendes de Carvalho, de pseudónimo literário Uanhenga Xitu, (n. 29/08/1924), dentre as várias funções que exerceu foi ministro, embaixador e deputado pela bancada do MPLA. Escreveu os livros: “Meu Discurso” (1974), “Mestre Tamoda” (1974), “Bola com Feitiço”, (1974), “Manana” (1974), “Vozes na Sanzala – Kahitu” (1976), “Os Sobreviventes da Máquina Colonial Depõem” (1980), “Os Discursos de Mestre Tamoda” (1984), “O Ministro” (1989) e “Cultos Especiais”, (1997).
A editora Mayamba reeditou este ano os livros “O Ministro”, "Manana" e "Bola com feitiço - Kahitu".


MOÇAMBICANOS FALAM DE AGOSTINHO NETO

DVD reúne depoimentos sobre o primeiro presidente da República de Angola

Isaquiel Cori

O DVD produzido pela Fundação Agostinho Neto, com depoimentos de 13 personalidades moçambicanas sobre Agostinho Neto, o primeiro presidente da República de Angola, é digno de merecer a maior divulgação possível. Lançado em Janeiro  na província do Bié, no quadro dos festejos do Dia da Cultura Nacional, a obra, até aqui, teve escassa repercussão em Angola, ao contrário do que aconteceu em Moçambique, onde foi posta a público no dia 25 de Maio num acto bastante mediatizado que contou com a presença do Presidente Armando Guebuza.
Os depoimentos abarcam um longo lapso de tempo da vida de Neto, desde os tempos de estudante em Portugal, nos anos 1940/50, até 1979, o ano da sua morte. A trajectória de Agostinho Neto é narrada, através das memórias das personalidades moçambicanas, na sua dimensão de estudante consciente da importância da libertação do país do jugo colonial, de líder do Movimento Popular de Libertação de Angola (MPLA), de homem de cultura e de estadista. A permear todas essas dimensões ressalta sempre uma constante: a do homem simples, humilde e camarada, não obstante a sua enorme estatura intelectual e simbólica. “Era um indivíduo que falava pouco mas pensava muito. E quando falava só dizia as coisas muito acertadas” (Joaquim Chissano). “Ele tinha uma conversa para todos” (Mariano Matsinha).
As relações estreitas entre o MPLA e a FRELIMO, o contexto em que as mesmas se desenrolaram, as amizades – cumplicidades - entre os dirigentes de ambos os países, alicerçadas e edificadas ao longo da luta de libertação nacional, são evocadas pelos depoentes, cada um, naturalmente, à sua maneira.
Segundo Mariano Matsinha, fundador da FRELIMO, “havia troca de informação institucionalizada, organizada e informal sobre o que acontecia em Angola e em Moçambique”.
Joaquim Chissano, ex-presidente de Moçambique, e ao longo de muitos anos ministro dos Negócios Estrangeiros, afirma que conheceu pessoalmente Agostinho Neto em Dar-es-Salam (Tanzânia) em 1965, num encontro de movimentos de libertação das então colónias portuguesas, em que “ele (Neto) tomou posições muito construtivas”.
O escritor Mia Couto, que foi repórter presidencial ao tempo de Samora Machel, e nessa qualidade esteve muito próximo de Agostinho Neto, centra o seu depoimento na vertente cultural, fala da “dimensão mitológica” e exalta as qualidades do poeta. Para ele, a poesia de Agostinho Neto é de “um africano que bebeu a cultura do mundo e que era um homem universal”: na sua poesia não há “uma proposta de um nacionalismo estreito, que nega as contribuições dos outros”. Mia Couto cita particularmente o poema “Depressa”, contido no livro “Sagrada Esperança”, como um exemplo de “poesia pura”, com “uma mensagem intemporal que deve ser ensinada nas escolas, porque ensina os jovens a terem uma atitude”.
Outro depoimento de grande impacto, sem desprimor para os outros, é o de Sérgio Vieira, que foi director do gabinete do presidente Samora Machel. Algumas das suas informações são autênticas revelações, verdadeiras pérolas de memória histórica. Por exemplo, o facto da FRELIMO ter fornecido armas, incluindo morteiros BM-21, ao MPLA, usadas na crucial batalha de Kifangondo, em 1975; a criação, no dia 12 de Novembro de 1975, de um “banco de solidariedade” com as contribuições de um dia de salário dos funcionários moçambicanos, que arrecadou mais de um milhão de dólares que foram entregues ao jovem governo angolano.
Sérgio Vieira dá igualmente a conhecer que pouco antes da independência de Angola, diante da situação de incerteza que se vivia, o MPLA transferiu “todos os haveres” do Banco de Angola para o Banco de Moçambique. Tais “haveres” foram devolvidos ao Banco de Angola logo depois de proclamada a independência. Outra revelação: Agostinho Neto celebrou o seu último aniversário natalício, em 1978, em Moçambique.
Um dos momentos de maior tensão dramática, do conjunto de depoimentos, é aquele em que o mesmo Sérgio Vieira fala dos acontecimentos e das consequências do 27 de Maio de 1977 em Angola. “Houve descarrilamentos, à margem dos órgãos próprios. Esses descarrilamentos, em particular, feriram o presidente Neto. Ele ficou extremamente magoado, porque era um homem de grande sensibilidade e humanismo”.
Malangatana Ngwenya, essa personalidade irradiante da cultura moçambicana, que faleceu pouco depois de ser entrevistado, fala da poesia de Neto e de como ela terá enriquecido a sua visão estética. Outros depoentes são Marcelino dos Santos, Raimundo Pachinuapa, Bonifácio Massamba, Alberto Chipande, Roque Félix, Abdul Bulamusein, Aiuba Cuereneia e Frederico Alberto.
Os depoimentos do DVD “Moçambicanos Falam de Agostinho Neto” foram recolhidos pelos jornalistas Altino Matos e Horácio Pedro, sob coordenação de Amarildo da Conceição. As filmagens foram feitas pela Dread Locks. A Fundação Agostinho Neto, que concebeu, produziu e realizou o projecto, teve o apoio dos bancos BAI e BPC.

Lançamento concorrido
O lançamento do DVD em Maputo aconteceu a 13 de Junho, no Centro Cultural Joaquim Chissano, na presença do chefe de Estado moçambicano, Armando Guebuza, da presidente da Fundação António Agostinho Neto (FAAN), Maria Eugénia Neto, de centenas de personalidades influentes da sociedade daquele país e do corpo diplomático.
O Presidente da República de Moçambique, a quem foi outorgado o título de  membro honorário da FAAN, considerou Agostinho Neto um “intelectual de primeira água”, com alta perspicácia política e uma personalidade humanística contagiante. Sublinhou que a voz de Agostinho Neto não era apenas ouvida, mas sobretudo respeitada internacionalmente.
Armando Guebuza referiu que Neto colocou toda a sua estatura ao serviço do povo angolano e do alcance da independência nacional.  
Maria Eugénia Neto afirmou que o DVD foi produzido para que não se percam as memórias dos camaradas moçambicanos que conviveram com Agostinho Neto, antes e depois da independência, e para que também “não se adultere a verdadeira história de Angola e do MPLA”.
Na mesma cerimónia a FAAN fez a doação de valores monetários, um total de dez mil dólares, a duas escolas primárias, uma da cidade da Beira, província de Sofala, e outra do bairro Kumbeza, no distrito de Marracuene, na província de Maputo.  Maria Eugénia Neto entregou, igualmente, ao Presidente da República de Moçambique, um poema seu, emoldurado, em homenagem ao primeiro presidente daquele país, Samora Machel.
Amarildo da Conceição, alto funcionário da FAAN, disse ao jornal Cultura que ainda este ano vai ser lançado o DVD com depoimentos de personalidades de Cabo Verde que conviveram com Agostinho Neto. Referiu que a Fundação já procedeu à recolha de depoimentos do mesmo cariz em Angola, Argélia, Cuba, Namíbia, Congo Brazzavile, RDC e Tanzânia, que em devido tempo também serão publicados.