terça-feira, 15 de outubro de 2013

"São falsos puristas os que acham que em Angola se deve falar o português como em Portugal"

Entrevista a Linguista Amélia Mingas


Isaquiel Cori

O modo de estar dos angolanos no seio da língua portuguesa, o seu contributo para o enriquecimento dessa língua e o futuro da mesma em Angola, foram assuntos abordados ao longo da entrevista que a linguista Amélia Mingas, decana da Faculdade de Letras da Universidade Agostinho Neto, concedeu ao jornal Cultura. O Novo Acordo Ortográfico   preencheu um largo espaço da conversa que decorreu no gabinete da entrevistada. "Como é que o vamos assinar quando a nossa variação não está lá dentro?", argumenta Amélia Mingas, defendendo a sua não ratificação pelo país.

Jornal Cultura - Como é que a senhora se auto-define? Como é que a Dra. Amélia Mingas avalia a Dra. Amélia Mingas? 

Amélia Mingas - Como alguém que se preocupa com a problemática linguística do país, até por inerência de formação, porque sou linguista. Para além disso tive uma vivência que criou condições para que me conformasse não só a essa problemática linguística mas ao país no seu todo.
JC - Em termos de  formação como é que vai para a área da linguística?
AM - Isto começou em Lisboa, onde fiz a licenciatura em filologia germânica. Tive acesso à linguística geral, à linguística portuguesa e, acima de tudo, à linguística inglesa e alemã. Ao  estudar os períodos antigo, moderno e contemporâneo dessas línguas, fiquei muito sensibilizada, sobretudo ao nível do alemão, porque eu lia alguns sons que me lembravam o kimbundo. Em função disso coloquei-me a questão: se é possível estudar essas línguas nesses séculos todos, certamente as nossas línguas também podem ser estudadas. Essa preocupação ficou para sempre em mim. Entretanto, fui levada pela conjuntura própria do ambiente que se vivia em Lisboa e em Angola, já que o meu pai foi preso político tal como outros familiares e amigos meus. Aliás eu já havia iniciado uma actividade política na clandestinidade, em que estive integrada no grupo de Santa Cecília, com o padre Vicente (não me recordo do seu apelido).
JC - Esse grupo praticamente não é mencionado no historial da luta clandestina anti-colonial...
AM - Mas é um grupo interessante. Tínhamos reuniões na Liga Nacional Africana. O padre Vicente, que já é falecido, era um jovem muito comprometido com a revolução e criou um grupo de jovens, mais jovens do que ele, de que eu fazia parte bem como uma série de amigas e colegas como, por exemplo, as irmãs Irene e Engrácia Cohen, Thalita e Sílvia Belo e Olga Lima. Nós ajudávamos à missa e logo a seguir recebíamos formação política. Partíamos para os bairros onde contactávamos as pessoas e as sensibilizávamos para a causa da independência. O escritor Arnaldo Santos também fazia parte do grupo. Lembro-me que na altura ainda se ia à Chicala de barco. Tudo isso foi nos anos 1960.
JC - Uma das conclusões a que chegou, nas suas pesquisas, é que a variante angolana do português é determinada pela interferência das línguas nacionais?  
AM -  Sim. Não se compreende uma variante que não tenha uma componente nacional. É uma maneira própria de estar na língua portuguesa que é dos angolanos. E ela reflecte-se não só no léxico, com termos ligados à nossa realidade, mas também no modo como transformamos a estrutura do desenvolvimento de frases da língua portuguesa. Isso acontece com todos os povos. Há uma contribuição dos angolanos para o enriquecimento da língua portuguesa, que a torna adaptada à nossa realidade. São novos termos que se introduzem e que fazem parte da nossa maneira de estar no mundo mas que também entram na língua portuguesa.
JC - A variante do português angolano está muito patente no linguajar popular e na literatura mas no ensino predomina a norma de Portugal. Aí, a variante angolana é combatida e tida como erro...
AM - Este é um problema que já há algum tempo enfrentei no ISCED, onde então eu era responsável pelo departamento de Língua Portuguesa. Reunimos os professores ligados à área de língua portuguesa e chegamos a uma conclusão: enquanto formadores temos de nos apoiar em documentos e orientações que conformem a nossa actividade. E porque não existe nenhuma norma do português falado em Angola, existe a necessidade, cada vez mais premente, dos angolanos formados em linguística se reunirem e verem as características da língua portuguesa falada em Angola.
JC - Aí a Faculdade de Letras teria um papel importante a desempenhar?
AM - Sem dúvida alguma. Mas, de modo geral, todos os docentes. A Faculdade pode fazer e apresentar uma investigação, mas dentro de uma estrutura específica. De momento o país não tem um centro de línguas nem uma associação dos linguistas. Deveríamos juntarmo-nos para vermos qual é a especificidade da nossa língua e definir o que é ou deveria ser ou não erro na língua portuguesa.
JC - Como é que a norma seria fixada? Pela elaboração de uma gramática do português angolano, por exemplo?
AM - Sim. E através do estudo dos casos que se notam a nível do português angolano. Por exemplo, há uma tendência extraordinária dos angolanos, a nível da regência verbal, para a anulação da preposição "a" pela "em". Dizemos "ir em" em vez de "ir a": "ir na escola", "ir no hospital", "ir no enterro", ao invés de "ir à escola"; "ir ao hospital", "ir ao enterro". Nas nossas línguas quando se vai para um espaço determinado, por exemplo o mercado, a escola ou o hospital usa-se sempre "mu", isto é, "dentro". Isso deve ter se imposto no nosso falar de tal modo que está vulgarizado. Pela norma, adquire-se ou introduz-se como orientação determinado fenómeno quando ele se impõe pelo número de falantes. A verdade é que ao nível da norma angolana temos de ter essa sensibilidade.
JC - Tornar norma esses modos de dizer não levantaria objecções por parte da elite "bem falante" da língua portuguesa?
AM - Toda a minha experiência de formação, da primária à Universidade, foi feita com professores portugueses. Só mais tarde fui estudar a França. Os professores portugueses corrigiram-me sempre e logicamente eu não digo "ir na escola". Mas isso já sai naturalmente nos nossos jovens, o que tem de ser respeitado. 
JC - Numa recente entrevista à Rádio Nacional a senhora defendeu a posição do Executivo de não ratificar o novo acordo ortográfico da língua portuguesa porque, segundo disse, não incorpora a variante angolana. Não é um contrasenso, tendo em conta que a variante angolana do português nem sequer é legitimada institucionalmente no ensino e, de modo geral, na comunicação social em Angola?
AM - O caso é diferente. O acordo tem em conta as variações, alterações da língua. Como é que o vamos assinar quando a nossa variação não está lá dentro? A minha defesa não é ir à língua portuguesa, que é património comum de todos nós, e alterá-la. Por exemplo, como é que se escreve "Mbanza Congo"? O português, porque não tinha "Mb" registou "Banza". Mas o termo não é português! Quando alguém que conhece uma língua bantu como nós vê "Banza" não vai poder pensar que é "Mbanza" e aí a comunicação terá problemas. Mais ao norte, em Cabinda, temos "Mbuco Nzau", onde "Nzau" significa elefante, mas o português registou "Buco Zau". Portanto, "Zau" não significa elefante na língua de origem. Quer dizer que se o termo é kikongo, kimbundo ou umbundo e temos que utilizá-lo porque faz parte do nosso património cultural temos que usá-lo na língua de origem, porque senão estamos a descaracterizar a estrutura dessa língua.
JC - Terá havido então um défice negocial aquando da discussão do acordo ortográfico?
AM - Houve. A Dra. Luísa Dolbeth e Costa, que fez parte da comissão, insurgiu-se dizendo que não podia assinar o acordo sem que o mesmo fosse discutido a nível do país. Como digo, o Acordo Ortográfico é um problema essencialmente político, que não tem a base científica. Mais tarde arranjou-se alguém para ir assinar o acordo.
JC - Arranjou-se alguém?
AM - Sim, indigitaram outra pessoa para assinar por Angola. Mas a verdade é que o acordo não foi avante, não foi implementado. O último Acordo foi mais agressivo, porque, a nível da reunião da CPLP na Guiné Bissau, os presidentes decidiram que num conjunto de sete países (Timor Leste ainda não fazia parte da CPLP) desde que três (que nem sequer era cinquenta por cento) o ratificassem, o Acordo entraria imediatamente em vigor. Por aí vê-se a base política do Acordo. E quem o ratificou? Brasil, Cabo Verde e São Tomé e Príncipe. Não tenho nenhuma crítica a fazer aos países que o ratificaram com o Brasil. Hoje em dia diz-se que o Brasil tem 200 milhões de habitantes e, portanto, pode. Não posso estar de acordo com isso. Se formos pelo argumento de que os milhões podem decidir então não vamos só pela língua, pode ser mais alguma coisa qualquer. A língua é património comum e temos todos o mesmo direito a ela. Enquanto património comum que se vai alterar, quanto a mim, devemos nos perguntar, por exemplo, como é que nós que escrevemos a língua portuguesa vamos escrever "Mbanza Congo" sem prejudicar o étimo africano, a palavra na sua origem, e também sem ferir a fonologia e a ortografia portuguesa. Acho que a base da discussão do Acordo é que está errada.
JC – Há quem argumente que independentemente de Angola ratificar ou não o Acordo ele entra-nos porta a dentro seja pela influência das televisões de Portugal e do Brasil ou pela tecnologia, com os programas de correcção automática do português nos computadores. Quer comentar?
AM - Por esse andar Portugal, enquanto país da União Europeia, também deixaria de falar português, já que os portugueses são obrigados a falar outras línguas que não o português na UE. Quando o meu computador tenta corrigir o que escrevo, eu digo "adicionar o dicionário" e escrevo normalmente. Estive no Brasil, na Universidade da Bahia, em representação do Reitor [da Universidade Agostinho Neto] para a assinatura de um protocolo e eles apresentaram-me o documento escrito no português brasileiro. Recusei-me a assinar o documento tal como estava escrito porque o Estado angolano ainda não ratificou o Acordo Ortográfico. Eles desculparam-se e o Dr. [Carlos] Lamartine pôs o documento na língua tal como a gente escreve e então as duas versões do documento foram assinadas. Isso faz-se. Mas é preciso que saibamos o que queremos.
JC - E nós sabemos o que queremos?
AM - Eu pelo menos sei.
JC - Referia-me do ponto de vista institucional.
AM - A nível da língua não há tanto essa ideia mas por um certo posicionamento verificamos que os angolanos sabem o que querem. Querem ser respeitados como seres pensantes e como seres capazes também de contribuir para um saber geral. Mas é preciso que quando se vai a áreas específicas haja lá gente capaz de defender aquilo que os angolanos querem. E também é preciso alguma discussão. Há termos que são nossos e que entram para a língua portuguesa. Temos de os escrever de modo a que os portugueses os consigam ler mas também de modo a que a nossa origem, a nossa marca, não se perca.
JC - Retenho a expressão "termos que entram para a língua portuguesa". Isso implica uma instância homologadora, de legitimação, que não está situada em Angola. O que diz em relação a isso?
AM - Não está porque não temos uma norma definida, como acontece com o Brasil. Mas há quantos anos o Brasil existe como um país independente? Nós ainda no último quartel do século passado estávamos sob dependência portuguesa! Estamos num momento difícil, com problemas tremendos, que é o da construção da nossa Nação. Ainda estamos a nos constituir como Nação pluriétnica, plurilinguística e pluricultural. Muitos de nós ainda pensam em função do grupo etnolinguístico a que pertencem e não em termos de todo o país. Muitas vezes eu digo aos meus colegas: "eu já saí do kimbo há muito tempo".
JC -  Para onde nos levará a dinâmica do português em Angola no quadro do processo da criação e consolidação da Nação angolana e da procura de um modo próprio de estar na língua portuguesa "sob pressão das línguas nacionais"? Poderá eventualmente haver uma evolução tão radical que os angolanos de hoje não serão percebidos pelos angolanos de daqui à cem anos?
AM - Não. Uma coisa é falar kimbundo, umbundo ou kikongo e outra é falar português sabendo kimbundo, umbundo ou kikongo. A interferência na língua portuguesa cria-se como? Quando a gente quer definir algo que faz parte da nossa vivência como africanos que não existe na sociedade portuguesa. Por exemplo, o funge, a kizomba, a kifufutila, o bombó, são criações africanas, são parte da nossa vida, da nossa maneira de estar no mundo e, logicamente, entram na língua que nós utilizamos para interagir com os outros, que são angolanos. Mas como é que entram? Cabe a nós angolanos definir.  O problema é que somos muito poucos linguistas, concentrados  e preocupados com essa situação. Mas já fomos menos do que somos agora. Agora temos muitos jovens a trabalhar connosco nesse sentido. Os estudantes que estamos a preparar [na Faculdade de Letras] devem ser integrados, por exemplo, como assessores dos administradores e outros dirigentes nos seus contactos com as populações nos kimbos. 
JC - O que está a ser feito na Faculdade de Letras em termos de pesquisa linguística?
AM - Temos um grupo de docentes e discentes que está  a fazer investigação nas províncias sobre as línguas que ensinamos aqui: kimbundo, umbundo, cokwe e kikongo. Estamos a elaborar livros de leitura e de exercícios nessas línguas. No ano passado, em Fevereiro, fizemos recolhas em vários municípios do Uíge, e, ainda no mesmo mês, estivemos no Huambo. Este ano já estivemos em Malange e na Lunda-Sul. Falamos com sobas e mais velhos, recolhemos dados. 
JC - Quando é que vão surgir as primeiras publicações baseadas nesses estudos?
AM - O material sobre o kikongo está na gráfica e o sobre o umbundo já está feito.
JC - As publicações vão circular apenas no âmbito interno da Faculdade ou serão também acessíveis aos grande público?
AM - As pessoas que quiserem poderão ter acesso. Mais tarde faremos edições bilingues kimbundu/português, umbundo/português, kikongo/português e cokwe/português. Outra das preocupações que temos é a tradução de obras importantes para a formação dos nossos estudantes, inexistentes em português, como é o caso de "A Filosofia Bantu", [de R. P. Placide Tempels].
JC - Qual é o enquadramento que a Faculdade de Letras faz à literatura angolana?
AM - A literatura angolana está integrada em duas áreas: no curso de Língua Portuguesa e Literaturas em Língua Portuguesa e no curso de Línguas Angolanas e Literaturas Angolanas.
JC -  Voltando à problemática da língua: não estará a fazer falta uma Academia Angolana de Letras?
AM - Faz falta. Há tempos estive no Brasil e coloquei junto de colegas das academias brasileiras a possibilidade de alguém lá ir fazer um estágio de um ou dois meses para estudar a estrutura de uma academia. O que é que faz a academia? Ela segue as evoluções e fixa aquilo que se impõe na prática. Por exemplo, a Academia Angolana de Letras teria que fixar que aqui em Angola tanto "ir a" como "ir em" é certo e não errado. Mas a essa posição já chegaram os professores da língua portuguesa no ISCED, na altura em que eu era responsável do departamento de língua portuguesa. Como não há a definição de uma norma angolana nós pedíamos que os professores ensinassem a norma portuguesa, só que tinha de haver sensibilidade, de modo a que quando o aluno dissesse "fui no hospital" não devia ser marcado como erro. A esse nível o problema estava superado. Quando o aluno diz "comeu o meu dinheiro" em vez de "roubou o meu dinheiro", a gente não deve considerar erro, porque trata-se de uma criatividade que nós definimos em linguística como expansão semântica, isto é, a nível do significado.
JC - Expressões como "ir no hospital" estampadas num jornal de referência não cairiam muito mal?
AM - Cairiam mal aos falsos puristas e que não estão a ver a realidade angolana como capaz também de criar condições e de viabilizar algo que já começa a ser uma regra na língua.
JC - Quem são os que a Dra. Amélia Mingas considera "falsos puristas"?
AM - São falsos puristas os que acham que o português que se deve falar em Angola é o português que se fala em Portugal. Enquanto angolanos eles deviam pensar na realidade angolana. 
JC - Convenhamos que a realidade linguística angolana é bastante complexa?
AM - Tudo é complexo e a língua cria sempre muitos problemas. O que acontece é que a língua portuguesa foi aqui imposta pelo processo colonial mas é uma língua completamente distinta da nossa. O português que a gente fala é nosso. Foi-nos imposto e o adoptamos com a nossa marca. O nosso som está lá todo. A vogal que o português fecha nós abrimos. No aspecto da língua estamos muito mais próximos dos brasileiros porque muitos dos nossos antepassados para lá foram e deixaram a sua marca na língua. A língua evolui com a comunidade que a fala. 
JC - Como é que avalia o contributo da literatura angolana para o enriquecimento da língua portuguesa?
AM - No fundo os nossos autores tentam seguir a evolução da língua portuguesa em Angola. Os escritores reflectem a realidade que vivem. O meu amigo Luandino [Vieira] a partir de uma determinada altura estava a inventar uma língua que era já só dele. Mas no [livro] "Luuanda" a gente via realmente o nosso povo  a movimentar-se, a falar, a viver. O escritor é um criador, também inventa mundos.

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Amélia Arlete Dias Rodrigues Mingas (1946, Ingombota, Luanda) é licenciada em Filologia Germânica pela Faculdade de Letras da Universidade de Lisboa e doutorada em Linguística Geral e Aplicada pela Universidade René Descartes, de Paris. Foi coordenadora do Departamento de Língua Portuguesa do Instituto Superior de Ciências da Educação de Luanda (ISCED) e directora do Instituto de Línguas Nacionais do Ministério da Cultura. Foi igualmente directora do Instituto Internacional de Língua Portuguesa, sediado na Cidade da Praia, Cabo Verde.
Publicou o livro "Interferência do Kimbundu no Português Falado em Lwanda" e tem no prelo outros trabalhos de investigação linguística. Actualmente é docente e Decana da Faculdade de Letras da Universidade Agostinho Neto.

Entrevista originariamente publicada na edição nº 41, de 14 a 27 de Outubro do jornal angolano Cultura, do grupo empresarial público Edições Novembro.


quinta-feira, 25 de julho de 2013

O lado obscuro e a vertigem das redes sociais

A Internet e as suas várias dimensões






Isaquiel Cori

É um facto que as redes sociais, actualmente, são o "carro chefe" da Internet, isto é, constituem o motivo principal dos usuários acederem à Web. Antes já o foram os motores de busca com a sua quantidade quase infinita de informação sobre praticamente todos os tópicos e assuntos.
Os internautas, vezes sem conta, perdiam-se [perdem-se] no meio de tanta informação, incapazes de fazer as devidas conexões e dar um rumo a tanto saber. E havia ainda [há] o aspecto da impessoalidade: ao accionar o browser estamos claramente a lidar com a máquina não apenas como meio mas também como fonte de informação.
É o contrário do que acontece com as redes sociais, onde o internauta lida com pessoas [virtuais], interagindo com elas, colocando questões e obtendo respostas a mais das vezes em tempo real. As redes sociais são assim o lado mais humano e humanizante da Internet, na medida em que a principal característica do ser humano é precisamente a socialização.
Mas aqui é pertinente colocar as questões: as pessoas com quem lidamos nas redes sociais são verdadeiramente reais? São mesmo autênticas?
Ou são máscaras, projecções idealizadas de eus solitários diante do computador? De gente que sonha e vive contente, amando, sofrendo, lutando, perdendo, ganhando, caindo, soerguendo-se, gritando, calando, batendo, apanhando, e projecta os seus sonhos, através do teclado do computador, tablet ou smartphone para a rede social de que faz parte?
Para mim, confesso, esse é o lado obscuro das redes sociais e que, não poucas vezes, me provoca vertigem. Gosto de falar com pessoas de carne e osso, olhá-las nos olhos, sentir as palavras a saírem-lhes literalmente da boca, acompanhar os seus gestos ou, pelo menos, se ao telefone, captar as nuances da sua voz.
Quando leio um post no facebook ou noutra rede social é como se estivesse a ler um romance: mais do que o autor, visualizo um narrador, um contador de estórias.  

terça-feira, 16 de abril de 2013

A Opinião do Escritor João Tala

Processo eleitoral na União dos Escritores Angolanos

Isaquiel Cori
 
Três perguntas ao escritor João Tala, a propósito do processo para eleição dos novos corpos sociais da União dos Escritores Angolanos. Tala é um dos inspiradores da candidatura da Lista B, liderada por António Gonçalves.
  
Tem alguma razão de queixa em relação à forma como está a decorrer o processo eleitoral?

Está uma campanha bastante desigual e a imprensa não equilibra a vontade das duas listas do mesmo modo. Por exemplo, determinado semanário, muito conhecido no país e não só, fez campanha a favor da Lista A por três semanas consecutivas. Sabemos como isso se processa com negociatas «debaixo da mesa». Mas isso reflete apenas a atitude de uns quantos escritores sempre envolvidos de pensamentos mercantilistas para benefícios próprios e de alguns jornalistas ávidos da "massa". Estou hoje nada fascinado com a mesquinhice que reina na UEA. Muitos confrades consentem miséria ideológica, desunião, clientelismo, a exclusão etc., para que possam acontecer coisas desse género. A campanha da Lista A começou muito antes da realização da Assembleia que fixaria o início a 01 de Abril e isso já me deixa intrigado. Há também o facto autoconsumista, com dispêndio de fundos da UEA à campanha própria por parte da actual direcção, cedendo apenas valor irrisório à lista oponente.

O que tem a acrescentar ao programa eleitoral da lista B em circulação?

A Lista B parte de uma experiência que é o trabalho com o escritor, é a valorização da escrita literária como contributo ao património cultural. Fóruns como o I Encontro Internacional de Literatura Angolana, realizado em 1987, a instituição de prémios literários como o "Prémio pelo Conjunto da Obra" e outros, a promoção de tertúlias na casa dos escritores estariam acima do mercantilismo aproveitacionista, devolvendo-nos o conforto das Ideias, curtindo a nata do pensamento que faz o escol em Angola.

Tem a convicção de que a vitória da lista B está garantida?

Não me falta a convicção de que a UEA deve mudar uma série de aspectos. Apesar da surpresa que constitui a quebra rotineira das unanimidades, as duas listas estão em condições de ganhar ou não. Não antecipo nada para ninguém porque até ainda estou gratamente em campaha pela Lista B e os outros também estarão a fazer a sua.

Tudo a postos para o pleito eleitoral na UEA


Amélia Dalomba, presidente da Comissão Eleitoral

 
Isaquiel Cori

 
A eleição dos novos corpos sociais da União dos Escritores Angolanos (UEA) acontece a 20 de Abril, na sua sede, em Luanda, com a apresentação de duas listas. A lista A é liderada pelo actual secretário-geral, Carmo Neto, e a B por António Gonçalves.
Até ao dia 18 decorre a campanha eleitoral, com os candidatos a movimentarem-se e a divulgarem os respectivos programas.
Amélia Dalomba, presidente da Comissão Eleitoral, disse que todo o processo está a decorrer “com imensa tranquilidade”.
“O nosso trabalho é estabelecer consensos e equilíbrios e estamos a encontrar bastante colaboração entre os candidatos. Não temos nenhuma situação que lese os estatutos”, referiu.
A escritora garantiu que “os preceitos democráticos e estatutários estão presentes no processo e estarão presentes no pleito eleitoral”.
Disse esperar que a campanha eleitoral continue a decorrer com transparência e civismo e que cada um dos concorrentes “cuide do respeito pelo prestígio e a memória da instituição”.  
Deu a conhecer que está previsto pelo menos um debate entre os cabeça de lista, em data por acertar, na Rádio Nacional.
Fazem igualmente parte da Comissão Eleitoral os poetas António Panguila e Nok Nogueira e um representante de cada uma das listas concorrentes. O resultado da eleição é conhecido no dia 20 e os órgãos eleitos tomam posse no dia 28.
A UEA, fundada a 10 de Dezembro de 1975, congrega a grande maioria dos escritores angolanos. As suas acções estendem-se pelas vertentes associativa e editorial. O incentivo à escrita e a promoção do livro, da literatura e da leitura são as suas principais actividades.

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Programa da Lista A 
Trazer a público novos talentos literários
O programa da Lista A, onde pontificam Carmo Neto, candidato a secretário-geral, e Adriano Botelho de Vasconcelos, presidente da mesa da Assembleia Geral, manifesta a intenção de promover e divulgar cada vez mais a literatura angolana e trazer a público novos talentos no quadro do princípio da continuidade. Segundo os seus mentores, está voltado para a elevação da imagem dos escritores angolanos, o aumento das publicações e o reforço do papel da instituição como uma referência nacional e internacional na literatura, contribuindo na promoção, divulgação, construção e conservação da história de Angola no domínio cultural.
O programa prevê fortalecer as capacidades internas, para melhor responder e servir os seus membros e a sociedade.  Estabelece como linhas estratégicas para os próximos três anos o reforço da capacidade, imagem e relações institucionais; a promoção e divulgação da literatura angolana e a identificação e promoção de novos talentos.
O secretariado executivo, refere o documento, levará a cabo acções de capacitação dos quadros internos sobre estratégias de realização e produção de programas culturais e estabelecimento de protocolos de parceria com diversas instituições (internas e externas).  
É garantido que a comissão directiva procurará mobilizar e proporcionar espaços e meios para divulgação das obras dos membros dentro e fora do país e trabalhar-se-á na descoberta de novos talentos, tornando-os públicos com vista a incentivar a juventude ao gosto pela escrita e leitura.
A Lista A impõe-se como missão assegurar a promoção e divulgação da literatura angolana dentro e fora do país; defender os interesses dos membros da UEA e trazer a público os novos talentos da literatura angolana.
A meta é tornar cada vez mais a UEA uma referência incontornável na literatura angolana, contribuindo na promoção, divulgação e conservação da história angolana, sobretudo no domínio cultural. É igualmente fazer da UEA um espaço de partilha entre escritores, baseados nos princípios da solidariedade, transparência, unidade e responsabilidade social.
De modo específico, os candidatos da Lista A pretendem aumentar os níveis de produção e venda de títulos (livros) durante os próximos três anos; proporcionar  mais espaços de debate, troca de experiências e divulgação das obras dos membros da UEA dentro e fora do país; e reforçar e criar novas parcerias com instituições nacionais e internacionais, estabelecendo protocolos de parceria nos vários domínios da promoção e divulgação da literatura angolana.
Pretendem também incentivar o gosto pela leitura e a escrita no seio dos jovens e melhorar a capacidade de prestação de contas e as condições da UEA para prestar  serviços públicos.
O documento refere que, a ser eleita, a Lista A vai bater-se pela mobilização de meios para a produção de mais de 60 títulos dos membros da UEA a nível interno e externo, o estabelecimento de protocolos de parceria com Universidades e livrarias e por uma maior tradução da literatura angolana nas línguas estrangeiras mais influentes (inglês, francês, espanhol, italiano e alemão).
Vai realizar a Feira Internacional do Livro da UEA, com periodicidade anual, o Grande Prémio de Literatura da UEA, com carácter bianual, lançar o  Prémio António de Assis Júnior, revitalizar o Prémio Quem Me Dera Ser Onda e institucionalizar os prémios Alda Lara e Eugénio Ferreira, este especificamente no campo da crítica literária.
Com a Lista A, é prometido no seu programa, a literatura angolana passará a estar representada nos eventos literários internacionais, serão levadas “biblioteca e leitura” às principais unidades prisionais do país e publicitadas as obras literárias nos meios de transportes públicos e privados.
Serão feitas parcerias com a comunicação social para a promoção e divulgação da literatura angolana, realizados eventos culturais tais como a comemoração dos 50 anos de lançamento do livro “Luuanda”, do escritor Luandino Vieira, e a Semana Africana na Universidade de Coimbra, em Portugal.
Do programa consta igualmente a realização de um Seminário Internacional de Literatura sobre Guerra e Paz, um encontro nacional de escritores, a participação em feiras internacionais do livro e encontros de confraternização durante os aniversários da UEA.
O projecto de liderança de Carmo Neto para os próximos três anos inclui a recolha e selecção de novos potenciais parceiros para apoiar a promoção e divulgação da literatura angolana, a promoção de bibliotecas junto dos estabelecimentos escolares, formação e debate sobre crítica literária e o estabelecimento de protocolos com o Ministério da Educação para que nas escolas, a todos os níveis, seja obrigatório o estudo da literatura angolana e a divulgação dos escritores angolanos.
É prometida a avaliação interna e externa das contas da UEA e garantido o apoio à assistência médica e medicamentosa dos membros da UEA e pessoal administrativo.
O lema da campanha da Lista A é: “Unidos na União”.
 
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Programa da Lista B
Influenciar linhas de pesquisa universitárias


O programa da Lista B, segundo os seus mentores liderados pelo escritor António Gonçalves, é “inspirado nos grandes ideais que nortearam o surgimento da Geração da Mensagem (1948) e dos intelectuais precedentes, imortalizados no livro ‘Voz de Angola clamando no deserto’ (1801), primeiros pensadores angolanos e fundadores da nossa Literatura nacional”. 

A intenção da Lista B, segundo o preâmbulo do seu programa, é “colmatar inúmeras lacunas existentes no funcionamento actual da maior e mais antiga associação de escritores em Angola”.
Noutra vertente, é referido que se pretende “reclamar a maior adaptação da UEA aos novos tempos, projectar um futuro rico em inovações, mas sem esquecer a história do Povo Angolano e dos seus Heróis”. É igualmente projectado “recuperar o protagonismo perdido pela UEA como elemento ‘chave’ da sociedade civil e restaurar o orgulho de ser escritor-membro desta prestigiada associação”.
Concretamente, o programa da Lista B consiste em negociar um seguro para todos os escritores necessitados, organizar, em 2014, um colóquio em homenagem ao 90º aniversário natalício de António Jacinto (28 de setembro de 1924 — 23 de Junho de 1991), membro fundador da UEA e um dos grandes da literatura nacional e apoiar, em 2014, a segunda Edição da Bienal Internacional de Poesia de Luanda.
É pleiteada a organização, em 2015, da segunda edição do Encontro Internacional sobre Literatura Angolana, a consolidação do projecto editorial da UEA e o fortalecimento, de forma contínua, da publicação e divulgação de livros.
É referida a intenção de retomar a divulgação do Concurso Primeiro Livro, para os novos autores em todo o território nacional, a criação do Prémio UEA para o conjunto da obra de um escritor angolano, a ser entregue no dia 10 de Dezembro, em conjunto com o Prémio Primeiro Livro.  
É proposta a criação de uma comissão para pesquisar e sugerir a instituição do Dia do Escritor Angolano, a publicação da gazeta Lavra & Oficina, com periodicidade mensal, e a promoção de encontros nacionais de escritores, com cada edição numa província e o apoio do executivo local.
A liderança de António Gonçalves propõe-se a organizar, em cada dois anos ou sempre que as condições permitirem, um festival internacional de poesia de Angola com a presença de poetas do mundo, “com destaque aos nossos irmãos africanos”,  revitalizar os acordos já assinados pela UEA e reforçar os laços privilegiados com as diferentes associações de escritores da CPLP e de países como África do Sul, Congos, Zâmbia, Namíbia e da América Latina.
A Lista B promete criar programas de Oficinas de Escrita Criativa dirigidos especialmente a jovens, com a colaboração de especialistas de Angola, Cuba, Portugal e Brasil, proporcionar condições para a construção da Casa do Escritor, que, com os devidos apetrechamentos, servirá também para albergar personalidades estrangeiras convidadas pela UEA.
No seu projecto de gestão António Gonçalves, que se faz acompanhar pelo poeta João Maimona, proposto a presidente da mesa da Assembleia Geral, inscreve a produção de um programa, em formato televisivo e adequado ao radiofónico, para a divulgação e discussão da literatura e suas implicações na sociedade e o desenvolvimento de um projecto que permita manter convénios com instituições do ensino superior vocacionadas para o ensino de literatura, estimulando e influenciando as suas linhas de pesquisa.
É também referida a ideia de revitalizar os concursos infanto-juvenis e a sua extensão a escolas em todas as províncias.
Nas províncias onde as condições o permitam deverão ser criados  núcleos provinciais da UEA, com o apoio do Executivo local através da direcção provincial da Cultura.
Serão organizados encontros de confraternização entre escritores, para estimular as tertúlias, tendo como convidadas personalidades de destaque da vida sócio-cultural do país, bem como visitas turísticas a locais históricos e culturais espalhados pelo país, em companhia de personalidades nacionais e estrangeiras.
Finalmente, o programa da Lista B promete redefinir os critérios de atribuição da bolsa de criação literária, estabelecer um acordo com a coordenação das Mediatecas, de modo a ter-se em conta a divulgação e promoção dos livros dos escritores angolanos e estabelecer acordos com instituições culturais sediadas no país e no exterior.
“Competência, Responsabilidade e Solidariedade. Por uma União ao Serviço dos Escritores, da Cultura e da Nação” é o lema adoptado pela campanha de António Gonçalves.
 
 
 

 

domingo, 31 de março de 2013

As nuances do 1 de Abril, o Dia das Mentiras

Onde se fala de mentiras “inocentes” e “sérias
 
 
Isaquiel Cori


Sim e não. Branco e preto. Grande e pequeno. Bom e mau. Alto e baixo. Verdade e mentira... É assim que, na generalidade, o senso comum tende a pintar o mundo, como se a vida fosse uma pobre moeda de duas faces. Pepetela, no seu celebrado romance, “Mayombe”, introduz, entre o sim e o não, a questão do talvez. E entre a verdade e a mentira?

Crescemos a ouvir, e agora dizemos aos nossos filhos, que mentir é muito feio. E que mais vale dizer a verdade, seja em que circunstância for. Mas, como na história bíblica, por analogia, diante da pecadora, quem nunca mentiu, que atire a primeira pedra.
“De quando em vez, uso umas mentirinhas. Por exemplo, às vezes digo aos meus filhos que vamos passear a um determinado lugar e acabamos por não ir”. Tratam-se de mentiras “inocentes”, “sem consequências de maior”, na óptica de Rosa Gracieth, 39 anos. Para lá desse tipo de mentira, ela distingue outro, “mais sério”: “Há aquela mentira que chega a ser um roubo. Por exemplo, alguém vende-te um produto por dois mil kwanzas, quando o seu preço verdadeiro é mil. Mais do que mentira, isso é um roubo”.
Leonilda Damião, 32 anos, é igualmente de opinião que existem mentiras “inocentes”, “toleráveis”: “De quando em vez, quando quero uma coisa do meu esposo, minto, e, ao fim e ao cabo, descubro certas verdades. Quando a mentira não é destrutiva mas saudável, ela contribui para uma boa relação”.
Mentiras afectivas?, interrogamo-nos nós.
Definitivamente, há gradações no mentir. Mentiras “inocentes”. Mentiras “sérias”. Se aquelas são parte íntima do jogo saudável das relações humanas (nesta acepção, podem ser expressas pelos verbos “estigar”, reinar, caçoar, brincar) já estas podem ter efeitos danosos. “Quando alguém me mente sinto-me muito zangada. É triste e frustrante. Perco logo a confiança nessa pessoa”, exclama Leonilda Damião.
“Sinto-me decepcionado, sobretudo se o mentiroso for alguém que convive comigo. Encaro essa mentira como um acto de traição”, acrescenta Adriano Makuéria, 38 anos.
“A mentira, para ser saudável, tem de ter limite. A pessoa que mente tem de saber que não vai prejudicar ninguém”, opina Gina Lopes (não quis dizer a idade), sub-directora pedagógica da escola primária 6.014. “Num desses 1 de Abril, alguém ligou-me a dizer que um amigo morreu. A notícia espalhou-se e até chegou a formar-se óbito, quando na verdade o tal amigo estava bem vivo e a dar as suas voltas. Senti-me muito transtornada e ofendida”, revela.
Gina Lopes acrescenta o fenómeno da mentira aos males que vêem sendo observados e recenseados na sociedade angolana. “Em Angola mente-se muito, tanto a nível das figuras públicas como das outras. Tendem a dizer que podem, quando na verdade não podem. Muitos jovens, quando querem conquistar uma rapariga, fruto da pobreza em que vivem, fazem-se passar por alguém que não são. E agora, com o uso generalizado dos telemóveis, as pessoas tornaram-se muito mais mentirosas”.
Porventura também mente-se por caridade? Por amor?
“Sim”, afirma Leonilda Damião. “Há quem, diante de um defeito do companheiro, para não magoá-lo, prefere mentir”.
Entre homens e mulheres, em Angola, quem mais tende a mentir? À falta de estatísticas, que nos dariam um quadro objectivo do problema, contentamo-nos a colher a opinião dos nossos interlocutores. “Acredito que haja um equilíbrio. Todo o ser humano está sujeito a mentir”, diz Gina Lopes.
Adriano Makuéria é mais contudente: “As mulheres mentem mais. Veja que raramente elas aceitam dizer a sua idade ou, se trabalham, o salário que auferem”.
“Os homens mentem muito mais. Vejo mais seriedade nas mulheres”, defende Casimiro Morais, 40 anos.
Na escala de graduação da mentira há que mencionar aquela que está associada ao maravilhoso, à fábula, ao sonho. Este é o mundo, por excelência, da literatura, da ficção. “O escritor mente para fazer passar a sua mensagem. Ele é um educador, já que tenta criar uma mentalidade nova. O escritor pode recorrer a personagens fictícias para, digamos assim, salvar a sociedade”, refere Timóteo Ulika (pseudónimo literário do historiador Cornélio Caley).

A perspectiva jurídica

Segundo Lazarino Poulson, advogado, não existe mentira legítima. “A mentira é sempre um engano”, afirma. “Eventualmente, a mentira pode ser admissível no âmbito do trato, da cortesia, mas nunca na esfera jurídica. Aliás, há crimes que têm na sua base a mentira. São os casos dos crimes de burla, de peculato, de abuso de confiança e de falsificação”.
Na óptica do advogado, nem mesmo o Dia das Mentiras pode servir de desculpa para mentiras danosas. “Imagine que no dia 1 de Abril alguém desperte um alarme de bomba num aeroporto. Isso pode provocar pânico e daí danos materiais e outros. A esse indivíduo deverão ser imputadas responsabilidades civis e criminais. Quando a mentira provoca danos ou afecta os nossos direitos, ela é muito perniciosa”.
A classe profissional que mais mente, na percepção de Lazarino Poulson, é a das secretárias. Seguem-se-lhe, por esta ordem, a dos políticos, dos advogados e dos jornalistas.
O jurista Noé Filho esclarece que, juridicamente, uma mentira pode redundar num falso testemunho, quando “um indivíduo faz um depoimento contrário à verdade por ele conhecida”. Noé Filho menciona também a figura da simulação, no âmbito do direito civil, “quando alguém pretende realizar um negócio mas age de forma diferente, como se o não quisesse realizar”.
O jurista elucida que, em Direito, a acção consiste em fazer ou em não fazer. “Logo, também pode-se mentir por omissão”.
Ele reconhece que, por razões profissionais, os advogados podem ser obrigados a mentir... por omissão. “Pelo sigilo profissional, os advogados não têm a obrigação de narrar certos factos concernentes à situação dos seus clientes. Eles não podem, no tribunal, dizer algo que possa prejudicar os seus clientes”.
Noé Filho admite que se possa mentir no dia 1 de Abril. “Há mentiras grosseiras, aquelas que, pelo modo como são ditas, não têm a possibilidade de encontrar qualquer crédito. Essas são as mentiras toleráveis no Dia das Mentiras. Já as mentiras mais refinadas, aquelas que são ditas no sentido de produzir um efeito contrário à realidade ou para conseguir um proveito ou para que as pessoas tenham um determinado comportamento, não são, de modo nenhum, toleráveis”.

 

NA – Este texto foi originariamente publicado aqui em 23 de Agosto de 2009. Republico-o por achá-lo perfeitamente actual.

 

domingo, 24 de março de 2013

MULHERES: ESSAS DESCONHECIDAS...

Isaquiel Cori
 
 
Já em 1858, um eminente pensador, M. De Ponsan, no seu livro “História Filosófica e Médica da Mulher”, escrevia: a mulher “é um ser multiforme; autêntica Proteia, muda de aspecto sob os nossos olhos, segundo as paixões que nos animam: é o céu, é o inferno, é um anjo, um demónio, o dia, a noite, a paz, a guerra, o amor, o ódio, a beleza, a feieza, uma graça, uma fúria; é sempre ela, sempre a mesma, sempre una e sempre múltipla: una em relação a ela, múltipla em relação a nós, cujas paixões são várias. E como é feita para as nossas paixões, se a quisermos julgar sem paixão escapa-nos, nunca mais a encontramos”.

Trata-se evidentemente de um olhar e de um discurso masculino sobre a mulher.

Hoje, em pleno século XXI, a mulher continua a concitar a admiração dos homens, ao mesmo tempo que continua por eles incompreendida. Ela é um mistério nunca desvendado, uma fruta saborosa de que se desfruta mas que nunca é verdadeiramente possuída…

… Cá estamos nós, também, a incorrer nos estereótipos do discurso masculino sobre a mulher...

Décadas de luta e de conquista dos seus direitos cívicos, políticos, económicos e sociais, transformaram a mulher hoje num ser dotado de uma visão e de um discurso próprios.

Cantada na música e na poesia, exaltada nas artes, ela hoje não só canta-se e exalta-se a si própria, mas também estende o seu olhar em redor e dá corpo a uma visão própria do mundo, da vida, e até mesmo do homem, a partir de uma sensibilidade ‘diferente’.

De tal modo que alguns estudiosos da cultura chegam a falar numa música, numa poesia e numa arte, em geral, ‘feminina’.

A noção de ‘sexo fraco’ há muito deixou de fazer sentido, tal como a noção implícita de ‘sexo forte’: descobertas científicas atestam realmente a existência de algumas diferenças fisiológicas e ao nível do funcionamento do cérebro, entre homens e mulheres, mas nada que aponte para uma pretensa superioridade de um sexo sobre outro. No fundo essas diferenças resultam tão somente em sensibilidades e percepções específicas, que definem, afinal, o homem e a mulher.

Entretanto, a afirmação integral da mulher, em todo o mundo, ainda é uma meta por alcançar. Apesar de já existir uma numerosa élite de mulheres competentes, bem formadas técnica e academicamente, elas continuam essencialmente à margem dos centros de poder e de decisão.

Aqui não se trata já, tão somente, de uma questão de discriminação das mulheres, mas de uma questão mais global de défice dos direitos humanos, pois as mulheres constituem mais de 50 por cento da população mundial. E em se tratando de desenvolvimento humano, nas suas componentes política, económica, social e cultural, a marginalização das mulheres revela-se absurda e um factor de entrave para esse mesmo desenvolvimento.

À medida em que mais e mais contingentes de mulheres acederem a níveis de educação cada vez mais elevados e livrarem-se da pobreza, e à medida, também, em que mais e mais homens libertarem-se das amarras do preconceito, estamos certos, a igualdade de género, que será sempre uma meta e nunca um fim em si mesmo, uma igualdade baseada no justo reconhecimento do mérito e não obtida à força de discriminação, positiva ou negativa, será uma realidade.

 

terça-feira, 8 de janeiro de 2013

A força e o poder da fé erguem um novo templo

- Igreja Metodista Unida de António Rocha

Isaquiel Cori      Google+
 
A convite de Joca da Costa, presidente da junta administrativa, estive, num domingo recente, no culto da Igreja Metodista de António Rocha, no bairro Golfe 1. Foi a segunda vez que lá estive.
A primeira foi há cerca de dez anos e encontrei então uma igreja a funcionar numas instalações precárias de pau-a-pique. Algumas paredes pareciam ir cair a qualquer momento. Os crentes amontoavam-se num espaço pequeno com pouca circulação de ar e ao longo de todo o culto jamais largavam os lenços com que tentavam enxugar o calor do rosto.
A igreja de António Rocha serve uma comunidade que se estende do Golfe ao bairro Popular, maioritariamente de origem camponesa. Como em todas as igrejas angolanas, as mulheres são o motor da igreja, são elas que dinamizam as principais actividades. Ao longo da semana, pude informar-me então, elas iam às suas lavras nos arredores de Luanda, para regressarem à sexta-feira e então irem ao domingo assistir ao culto. Os seus filhos compunham a sociedade de jovens e davam as suas vozes ao grupo coral da igreja. Muitos desses jovens acabavam por namorar e casar com companheiros da igreja.
No domingo recente em que estive na Igreja de António Rocha constatei, diria incrédulo se não estivesse no interior da igreja, que a junta administrativa da igreja, agora composta em grande parte pelos filhos das mamãs camponesas, muitos dos quais  adquiriram a formação universitária, liderados pelo pastor Calenji, deitou abaixo o “edifício” de pau-a-pique e ergueu uma igreja digna desse nome, toda ela em cimento armado, com assentos no rés do chão e no primeiro andar. A arte decorativa no interior, ainda inacabado, em nada fica a dever aos lugares de culto situados em comunidades mais abastadas.
Há dez anos a igreja, em termos arquitectónicos, estava perfeitamente inserida no seu meio: a maioria das casas em redor era de pau-a-pique ou madeira, com quintais de chapas de zinco. Com o tempo as casas em redor passaram a ser de blocos de cimento, tal como os quintais: nesse cenário, a igreja de pau-a-pique parecia uma relíquia. Hoje, com o seu magnificente edifício, a Igreja de António Rocha sobressai no bairro, onde é o seu “farol” arquitectónico, a referência das referências.
Ao longo do culto pude aperceber-me que o mosaico  sociológico da comunidade de António Rocha é basicamente o mesmo de há dez anos, mas com uma franja mais alargada e activa de jovens conscientes do seu papel de baluartes da igreja. As mamãs e os papás camponeses estão cansados e muitos deles desiludidos com as desapropriações das suas lavras que deram lugar à construção de bairros residenciais, fábricas, o novo aeroporto e outros empreendimentos. Alguns dos papás e mamãs que eu há dez anos vira cheios de vigor e saúde a cantar e a dançar hoje ainda cantam e dançam mas estão visivelmente velhos, cansados e até mesmo doentes. Todavia, é visível nos seus olhos o brilho aceso pela fé  e o orgulho de terem participado da obra de construção do novo templo. E pelo facto de verem os filhos a erguer o testemunho da igreja.
Durante muito tempo reflecti sobre a força da fé e da igreja e do quanto as pessoas podem ser levadas a fazer boas obras em prol da comunidade, independentemente da sua condição social. A obra monumental da nova igreja de António Rocha foi feita com dinheiro arrecadado nos cultos. Tostão a tostão, kwanza a kwanza, as contribuições de cada um dos crentes e eventuais visitantes permitiram a concretização do sonho: uma igreja nova, moderna, digna dos crentes mas, sobretudo, do próprio Deus que eles adoram.
Ao sair daquele culto dominical renovei a minha fé em Deus e na capacidade que Ele tem de inspirar os homens a juntos fazerem coisas boas.

quarta-feira, 29 de agosto de 2012

ELEIÇÕES GERAIS EM ANGOLA 2012

Campanha eleitoral de "quase quase"

 
Isaquiel Cori

A campanha para as eleições presidenciais e legislativas de 31 de Agosto, para mim, deixou uma sensação de “quase quase”, de algo incompleto, inacabado. Nesse período, os políticos esgrimem os seus mais profundos argumentos para aliciamento do eleitorado, chegando ao extremar das posições. Em todo o mundo é nas campanhas eleitorais que se revelam os instintos mais básicos dos políticos e em que os seus discursos não escondem ao que vêem e põem mais claramente a nu o seu destino e vocação: a manutenção ou a conquista do poder.
A campanha eleitoral, se não chegou a ser ruim, foi morna. Num previsível crescendo, vieram ao de cima algumas questões que, fora desse período, o bom senso convencionou não abordar, por ferirem a ainda tão frágil reconciliação nacional. A memória da guerra, que vem sendo fixada, num meritório esforço de exorcismo, através de livros de vários autores/actores preocupados em fornecer subsídios aos historiadores, foi lançada na agenda da campanha por várias formações políticas. Eu, que julgava que a guerra, não devendo jamais ser esquecida, transformara-se em mero registo da história e reminiscência tênue na memória de uma ou duas gerações que os tempos acelerados prematuramente envelheceram, fiquei assustado. É que na boca dos políticos o tema da guerra  tem um enorme potencial de deitar por terra o edifício reconciliatório que a nação conseguiu construir ao longo dos anos de paz. Tenho dito aos amigos que têm a paciência de me escutar que a temática da guerra deve ser entregue aos sociólogos, historiadores, antropólogos, psicólogos, filósofos e outros académicos, para a dissecarem da mesma forma como os biólogos matam o seu objecto de estudo para descortinarem o seu modo de funcionamento interno e assim chegarem a verdades mais gerais. Não mencionei os escritores e os poetas porque estes há muito mergulharam no interior da guerra e os seus livros estão aí a  interpelar as nossas consciências e a mostrar a dimensão da loucura colectiva.
Voltando à vaca fria. Ainda não foi desta que a campanha eleitoral serviu para unir os angolanos. Os partidos políticos, apesar de se dizerem interessados no voto de todos os angolanos, na prática mostraram-se fundamentalmente sectários, quase inteiramente voltados para os seus militantes e apoiantes. Por exemplo, os actos políticos de massas, sendo uma exibição da força interna e organizada do partido, ao mesmo tempo constituem um momento de separação entre o “nós” e os “outros”.
Os tempos de antena na televisão e na rádio foram um maçante desfiar de monólogos, de discursos unidireccionais e arrogantes.
De repente, os serviços noticiosos mais nobres da TPA e da RNA, invadidos com notícias redundantes, tornaram-se intragáveis, obrigando os consumidores mais lúcidos a exercerem o direito de mudar de canal. O MPLA, naturalmente, aproveitando o vazio legal, e estando-se no período do “tudo ou nada”, em que em causa está acima de tudo a continuidade no poder,  tirou o maior proveito possível da comunicação social pública. Esse facto traz a tona a necessidade imperiosa de se legislar e regulamentar a respeito de todos os aspectos da campanha eleitoral, ao invés de os deixar à deriva da ética e do bom senso. Traz igualmente à ribalta a questão das relações entre o jornalismo e a política e do quanto entre nós o jornalismo está profundamente inquinado pela política. É ainda sintoma de que o jornalismo angolano hoje ainda não se emancipou para ganhar o estatuto de consciência moral da sociedade e almejar um lugar de respeito na história.
Do lado da UNITA vieram os maiores motivos para calafrios. A bandeira da fraude antecipada, da desconfiança visceral nas instituições, o nacionalismo fundamentalista com alardes racistas, tribalistas e regionalistas, que se julgava superado com o choque cultural e científico da modernidade, revelaram uma UNITA acossada nos seus medos, presa a questões atávicas de identidade.
A CASA-CE, que alguns apontaram como a terceira via, revelou-se uma força política inteiramente tributária do carisma do seu líder, que lhe confere a aparente unidade e capitaliza e canaliza algumas frustrações oriundas do MPLA e da UNITA. Ora, até aonde irá uma formação política essencialmente reactiva, assente em bases tão precárias?
A campanha eleitoral permitiu enxergar melhor aquela franja de jovens que se autodenominam revolucionários e que, há alguns meses, protagonizaram manifestações de rua contra o regime instituído. De tendência confusamente libertária e anarquista, essa franja de jovens viu-se órfã com a exclusão do Bloco Democrático do processo eleitoral. O BD era a formação política que mais se esforçava por enquadrá-los politicamente, juntando-se invariavelmente às suas manifestações de rua.
A campanha eleitoral revelou mais uma vez a força dos partidos políticos e a fragilidade dos movimentos políticos reivindicativos apartidários. Depois das eleições os jovens ditos revolucionários terão de redefinir a sua identidade, os seus propósitos ideológicos, optando por um partido político existente, criando eles próprios um partido político ou fundando uma associação da sociedade civil.. Sob pena da sociedade assimilá-los como meros arruaceiros.
Enfim, na sexta-feira (31 de Agosto) vou votar lá para o final do dia, pois só o poderei fazer depois da jornada de trabalho. Cá estarei para depois debitar umas quantas palavras sobre os resultados eleitorais.


KANDENGUES ONTEM, KOTAS HOJE


ISAQUIEL CORI
 
 

Envolvidos profundamente na aventura de viver, mergulhados no dia-a-dia, perdemos muitas vezes a noção da transcendência e do quanto o tempo que vivemos, repartido por minutos e horas, nos transforma. Mas chega finalmente o dia em que somos como que arrancados desse torpor e violentamente catapultados para a visão da nossa existência passageira.

Foi o que aconteceu comigo, num desses dias cinzentos e iguais. Caminhava eu para casa, depois de uma esgotante jornada de trabalho, quando um rapaz, de um grupo de quatro ou cinco em aceso debate inconclusivo, apontou para mim e disse vigorosamente: “Olha, ainda bem. Está aqui um kota da banda, vamos tirar as dúvidas com ele”.

Foi como se me tivessem acertado com um soco no peito. “Kota eu, desde quando!”, exclamei, quase a cambalear.

Pousei no chão o peso do dia, feito de rotina e tédio, e lancei um repentino e profundo olhar sobre a minha existência. Uma profusão de pensamentos e imagens tomou conta da minha cabeça e fui dominado por um sentimento misto de saudade, dor, perda e exaltação.

Submisso, entregue à vida com a vontade de a viver sem queixumes, não reparara que ela, aos poucos, de modo insidioso e silencioso, me foi corroendo a inocência e pondo calos na minha alma. A anteriormente densa e enorme floresta em que cada árvore era um amigo, ou em que cada amigo era uma árvore, estava, via eu agora com uma nitidez estonteante, repleta de clareiras. E era mais difícil respirar.

 “Ainda ontem criança, hoje já sou um kota da banda? Como não me apercebi do passar do tempo, meu Deus?”, interroguei-me.

Lutando pela vida, a vida transcorrera em mim e até aqui não me apercebera do quanto o tempo me transformara. Sempre a viver na desportiva, com muito “fair play”, apesar de já ter constituído um lar, de ter sido sacudido por muitos embates da vida, de possuir a cabeça ornamentada por uns quantos cabelos brancos e ter sido prematuramente “premiado” com umas doenças típicas de mais velhos, jamais, verdadeiramente, me sentira “kota”.

Mas agora, ante a solicitude confiante e infantil do rapaz, da candura com que se dirigiu a mim, abriu-se-me uma nova perspectiva e, como nunca antes, assumi, na intimidade e em toda a plenitude, a minha condição de mais velho. Afinal, o tempo não perdoa. A vida chamava-me à responsabilidade.

 “Qual é a vossa dúvida, kandengues”, perguntei, já no papel de “kota da banda”.

 

 

Kota da banda – Mais velho do bairro

Kandengue da banda – Miúdo do bairro

PS: Esta crónica está publicada algures neste blog. Acabo de revê-la com algumas alterações.