terça-feira, 27 de abril de 2021

JÚLIO DE ALMEIDA “JUJÚ”: “É falso que Angola tenha começado com o Reino do Kongo e as suas relações com Portugal”




Escritor bissexto, Júlio de Almeida “Jujú” acaba de publicar, aos 80 anos, o seu segundo romance, “O incesto real”, sob a chancela da editora Kacimbo. O primeiro, “VAICOMDEUS”, foi publicado há 15 anos. Na entrevista que a seguir se publica, o escritor fala do seu novo livro e das questões que o mesmo suscita. Defende que Angola “como entidade territorial, tal como a temos hoje, é muito recente” e que “é falso que tenha começado com o Reino do Kongo e as suas relações com Portugal”. E explica os motivos que o levaram, em 2003, a abandonar a condição de deputado pelo MPLA, partido que, segundo disse, “tem vindo a perder o charme político e filosófico”  e a dar tiros nos pés com posicionamentos “a maior parte deles movidos pela táctica imediata e não baseados num ideário político consequente”  

 

Isaquiel Cori

 

Fale-nos, por favor, da génese deste livro. Como é que tudo começou, que inquietações ou motivações o levaram a escrevê-lo?

A génese deste livro foi determinada por duas vertentes: a primeira foi motivada pelo apregoado slogan de África ser o “berço da humanidade”. Se assim é, então somos todos primos uns dos outros e temos um antepassado comum, a Lucie (o mais antigo dos humanos conhecido) que, se fosse viva teria hoje 3,2 milhões de anos. A segunda vertente tem a ver com o demasiado desconhecimento que as actuais gerações têm da sua própria história. Fala-se (erradamente) em 500 anos de colonialismo, como se as relações entre os povos de Angola e Portugal fossem linearmente sempre iguais, tanto faz que se fale do ano 1500 ou do ano 2000.

 

O seu romance tem um grande suporte de pesquisa histórico-documental. Essa pesquisa foi feita em Angola e no exterior? Em quanto tempo?

As fontes para a escrita deste livro foram de duas ou três ordens: a primeira decorre de muitas leituras de fontes escritas existentes sobre as diferentes épocas que o texto cobre; a segunda sobre pesquisas feitas na Net; e a terceira sobre memórias e lembranças pessoais, que não são a mesma coisa, sendo que designo de memórias factos e situações por mim vividos, enquanto que lembranças são também factos e situações de que tive conhecimento, mas que aconteceram ou foram vividos por outros.

 

O Reino do Kongo continua a inspirar os escritores angolanos. No seu caso concreto, onde reside o poder de atracção do Reino do Kongo?

O Reino do Kongo, ou melhor o encontro deste Reino com parte dum mundo longínquo e tão diferente, representa um choque de civilizações, cujo estudo é sem dúvida aliciante. Se tivermos em conta a correspondência trocada pelo Rei do Kongo Mvemba a Nzinga com três sucessivos reis de Portugal, estaremos em presença, em primeira mão, da visão autóctone da história mútua daqueles dois reinos, história essa que habitualmente só é contada por uma das partes. Por essa razão é dado relevo especial ao conteúdo das cartas escritas pelo Reino do Kongo.

 

D. Pedro, o primo-irmão de D. Henrique, é uma figura que realmente existiu ou é fruto da imaginação do escritor?

O personagem D. Pedro faz parte da ficção do livro. O facto de ter sido pai de dois gémeos é pura invenção minha. Mas aconteceu mesmo que um primo-irmão de D. Henrique fez parte dos integrantes da comitiva do futuro bispo. Aproveito a oportunidade para declarar que, apesar das pesquisas por mim feitas, não encontrei relato algum em que se dissesse qual o nome original (kikongo) quer do primo, quer do próprio D. Henrique. E essa lacuna persegue-me desde que há 60 anos, pela primeira vez, tomei contacto com “histórias” sobre este Reino.

 

D. Henrique, o filho do Mani Kongo Mvemba a Nzinga (D. Afonso I), apesar de ordenado bispo, ao longo da sua vida não terá realizado actividades “em prol da organização eclesiástica” no Reino do Kongo. Terá sido então um prelado relutante?

A actividade eclesiástica de D. Henrique no Reino do Kongo, também não mereceu destaque na documentação histórica, salvo a que está ligada ao seu contacto com o Papa da altura e as condições em que foi ordenado padre e posteriormente nomeado como Bispo de Útica, mesmo sem bispado, como se refere no livro.

 

Ao ler o seu livro fiquei com a impressão de que, mais do que um romance, é na verdade um ensaio sobre as origens de Angola. É no Reino do Kongo, na dinâmica das suas relações com Portugal, que Angola começa?

Não me parece correcto, ou melhor, é falso que Angola tenha começado com o Reino do Kongo e as suas relações com Portugal. Angola, como entidade territorial, tal como a temos hoje, é muito recente e, nas suas origens e contactos com os mundos exteriores, é composta por muitas parcelas. Mas que a dinâmica das relações entre os diferentes reinos que hoje integram Angola e o mundo exterior contribuíram para o que hoje é Angola, é facto incontestável. E merecem outros livros, de história ou de ficção, que sem dúvida irão aparecer.

 

O seu livro vem colocar-se no centro de discussões muito actuais sobre identidade e nacionalidade. Esse tipo de discussão 45 anos depois da nossa independência o inquieta?

Claro que me inquieta, como ao longo de minha vida a condicionou em parte, estas questões de identidade e nacionalidade. Não há como escapar ao facto de ainda não  sermos “uma só Nação”, embora todos devemos ter idêntico Bilhete de Identidade. Pode-se contribuir positivamente na questão de termos a mesma identidade ou contribuir  negativamente. A primeira Lei Constitucional que representava a ideologia de quem organizou e participou na luta armada de libertação nacional defendia identidade de angolano baseada em dois vectores de per si: jus soli (nascido(a) em Angola é angolano(a); e jus sanguini (filho(a) de angolano(a) é angolano(a).

Esta representa uma contribuição abrangente na questão da identidade, o que é contrariado na actual Constituição que exclui o jus soli. Houve mesmo uma lei que determinou que o BI não fosse idêntico para todos, mas onde se legislou a diferenciação rácica dos cidadãos. Felizmente que acabou por ser revogada esta manifestação de racismo. Somos ou não todos descendentes da Lucie? Quem é racista ou tem preconceitos rácicos ainda não percebeu que também, ele próprio, é simplesmente humano. Talvez, com o Tempo (o personagem e narrador do meu livro) ele venha a aprender a ser humano.  O Incesto Real existiu ou não?

 

Quando diz que pessoalmente as questões de identidade e nacionalidade condicionaram em parte a sua vida, pode ser mais concreto?

Embora o MPLA sempre tenha demonstrado uma opção política humanista e universal, portanto anti-racista, e eu próprio tenha feito a licenciatura em Engenharia com uma bolsa de estudos (1962 a 1968) da UGEAN – União Geral dos Estudantes da África Negra sob dominação colonial portuguesa – que era uma organização afecta ao Movimento, de facto só a partir de 1968, na Conferência da Frente Leste, foi instituído o princípio de indivíduos de “raça” branca poderem ser considerados angolanos e integrarem em plenitude o Movimento. Tal aconteceu pela primeira vez, com o médico Tó Zé Miranda, em 1969, e eu próprio aguardei em Argel, desde fins de 1968 até fins de 1971, que me chamassem e fosse integrar os quadros da Frente Leste. É só um exemplo.

 

O seu livro não se fica pelo Reino do Kongo. A infância de Nzadi em Moçâmedes nos anos 1950 confunde-se com a do autor? São as suas memórias de infância?

A espira de tempo dedicada a Moçâmedes é, de certo modo, uma homenagem àquela região do nosso País. E socorri-me, como fica evidente, de memórias e lembranças desses meus tempos de menino e adolescente.

 

Nos capítulos (espiras) finais o comandante Jujú parece emergir com as suas memórias. Isso é sinal de que já não vai escrever a sua auto-biografia?

As espiras finais deste Incesto Real ocorrem de facto num espaço de tempo por mim vivido. Não são “as minhas” memórias, mas – com base no que realmente aconteceu – representam a ficção do autor sobre os mais recentes factos históricos. Os percursos dos personagens são minha ficção. Os factos são históricos e são mais importantes do que a minha biografia.

 

Volto a colocar a questão: tem em agenda a escrita da sua biografia, dada a sua qualidade de partícipe e testemunha importante de processos históricos decisivos na consolidação da independência do país?

Não pretendo escrever a minha biografia para além do que já foi dito e escrito em diversas entrevistas e o que de autobiográfico ressalta dos dois romances por mim escritos.

 

Assumiu cargos públicos de relevância mas a dada altura retirou-se da vida política. O que o fez tomar essa decisão?

Eu retirei-me da vida política em 2003, quando perfiz 63 anos de idade. Na altura era deputado e, por escrito, expliquei à direcção do Grupo Parlamentar, sem fazer grande alarde, que já não me revia nas opções políticas que eram seguidas pelo Movimento. E, deste modo, não participei no banquete a bar aberto que se estendeu pelos seguintes 14 anos que, diga-se, foi só para convidados.

 

O estado de coisas actual no seio do Movimento, estamos a falar do MPLA,  em matéria de opções políticas, ainda não é convidativo para um eventual regresso como militante? Quais são as opções estratégicas do MPLA de hoje que lhe desagradam particularmente?

O MPLA tem vindo a perder o charme político e filosófico que já teve e eu, aos 80 anos, também os perdi, o charme, a energia e a atracção do antigamente. O que mais me desagrada são “os tiros nos pés” que conformam vários posicionamentos do Movimento, a maior parte deles movidos pela táctica imediata e não baseados num ideário político consequente, apesar das muitas críticas, sugestões e propostas que vários ex-militantes vêm fazendo publicamente.

 

Já está a escrever um outro livro ou está ainda a viver a ressaca d’O incesto real?

O Incesto Real aparece vinte anos depois do lançamento do VAICOMDEUS. E só começou a “viver” agora, isto é, a ser lido. Não tenho a certeza se haverá um terceiro romance. Deixemos o Tempo aconselhar.

 

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Perfil

 

Júlio de Almeida “Jujú” nasceu na província do Namibe em 1940. Licenciado em Engenharia Mecânica (1962/1968), trabalhou de 1968 a 1971 como engenheiro em Argel, onde integrou a delegação local do MPLA e o Centro de Estudos Angolanos. Foi comissário político na Frente Leste entre 1971 e 1974. É co-signatário da Proclamação das FAPLA.

Tornou-se bastante conhecido entre os angolanos entre 1975 e 1976, na qualidade de porta-voz do Estado-Maior das FAPLA, quando diariamente comunicava à imprensa sobre a situação político-militar. Foi vice-ministro dos Transportes (1976/1983) e trabalhou na qualidade de engenheiro entre 1983 e 1992 como director de Estudos e Projectos. Entre 1984 e 2014 foi professor na Faculdade de Engenharia da Universidade Agostinho Neto. Foi ainda deputado à Assembleia Nacional pela bancada do MPLA, de 1992 a 2003. É membro fundador da Associação Tchiweka de Documentação.





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