Isaquiel
Cori
-
Senhor, é proibido. Aqui não se pode ler.
Levantei
os olhos do número atrasadíssimo da revista “Courrier Internacional”, que
trazia comigo, onde lia um artigo curiosíssimo sobre a chamada “História Alternativa”,
em que se teciam considerações sobre o que poderia ter acontecido ao seu país e
ao mundo se Martin Luther King não tivesse sido assassinado e se ele se tivesse
tornado Presidente dos Estados Unidos da América. Deparei-me com o rosto de um
indivíduo imberbe, a civil, mas que uma plaqueta à sua secretária elucidava,
além do nome que propositadamente omito, que se tratava de um agente de segunda
classe.
-
Hum!? É proibido o quê? – perguntei, sinceramente a não acreditar.
-
Não se pode ler aqui. É proibido – Reiterou o indivíduo, agora com impaciência
e duplicada autoridade na voz.
Ouvi
chamar o meu nome e fui a uma secretária na parede oposta, onde ficaria largos
minutos não só a concluir o que me levara àquela repartição, mas também a dar
os dados pessoais para criação de uma conta online de que nunca ouvira falar e
ninguém aí me conseguiria explicar devidamente. Com a agravante: pediram-me
para abrir o meu email no computador da repartição e “convidaram-me” logo a
ficar atrás do computador, pois “é proibido o utente ficar diante do écran”.
Diante
de tanta proibição burocrático-administrativa, e até “policialesca”, senti-me
na pele de Joseph K., o kafkiano personagem de ficção esmagado pelos absurdos
da máquina estatal. Mas, mais do que a invasão da minha privacidade,
representada pelo escancarar do meu email, chocou-me e choca-me até hoje o
facto de numa repartição pública do meu país, segundo aquele funcionário, ser
proibido ler. No caso, uma revista.
Desde
tenra idade adepto e cultor ferrenho da leitura, cedo descobri que esse hábito,
nas nossas famílias, na nossa sociedade, tem inimigos viscerais, arraigados e
cegos na convicção dos seus
preconceitos. Que lhes parecem muito certos e naturais. Recordemos
alguns.
O
filho adolescente está no quarto desde manhã, a ler. A mãe, que já o deixou a
ler, está de regresso da praça, onde vende peixe seco. “O quê, não saiu do
quarto e continua a ler?”
-
Meu filho, não faz isso, não te quero ver maluco a apanhar papel no lixo!
-
Cuidado filho, podes ficar cego. Quem lê muito fica com problema de visão!
-
Sai do quarto, vai brincar e conversar com os outros!
Três
preconceitos sobre a leitura, três estigmas sobre quem lê: a loucura, a
cegueira e o isolamento.
A
mamã quitandeira, que veio do mato para a cidade grande ainda menina, já viu ou
mais certamente, já ouviu falar, de filhos de outras que “liam muito e ficaram
malucos”.
Ademais,
numa cultura em que se privilegia a todo o momento a extroversão, a
convivência, a oralidade, o contar cenas, em que o indivíduo é, ou deve ser,
totalmente legível e previsível, é potencialmente perigoso alguém que no meio
de tanta gente, de tanta balbúrdia, se abstraia de tudo para ler. Pior ainda:
para pensar.
Para
agentes da autoridade como o aludido acima, tornados homens nessa cultura, o
indivíduo que lê, que lê muito, não importa o que leia, é assim uma espécie de
marginal e um suspeito por não se enquadrar nas normas comportamentais
vigentes, aceitáveis.
Todas
as campanhas de fomento e incentivo aos hábitos de leitura estarão condenadas
ao fracasso se, efectivamente, não tiverem em conta as nossas realidades e
virtualidades sociais e culturais, com forte impacto psicológico, que se erguem
como verdadeiras forças de bloqueio.
E
é preciso também dizer aos candidatos a escritores que antes de sonharem,
legitimamente, diga-se, com as luzes que iluminam as ‘celebridades’ nos
estúdios de televisão, têm de vencer não só os preconceitos contra a leitura,
reinantes a sua volta, mas ir mais além, assumir a loucura, o silêncio e a
solidão como condição indispensável para alicerçar a sua criação.
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