quarta-feira, 24 de outubro de 2007

Dos livros (II)

Havia um hábito saudável nas escolas secundárias de Luanda, e que terá perdurado até meados dos anos 80, que consistia na troca de livros entre estudantes. Os livros, geralmente romances e novelas, circulavam de mão em mão inicialmente num círculo informal de interessados, até que finalmente desapareciam e raramente retornavam, absorvidos por outros círculos de leitores.
Esse intercambiar de livros proporcionava uma boa variedade de leituras e ajudava a amortecer o custo elevado e a carência dos mesmos.
Hoje é constrangedor ver o que acontece na maioria das nossas escolas. Os professores queixam-se cada vez mais das crescentes dificuldades dos alunos assimilarem as matérias, o que é geralmente explicado pela também crescente incompetência linguística dos educandos. Ora, tudo isso, para além de outros factores que os estudiosos da coisa social saberão melhor explicar, deve-se obviamente ao enorme défice de hábitos de leitura.
Mas essa carência de hábitos de leitura não derivará igualmente de uma certa maneira elitizada como se vem encarando em Angola o fenómeno da produção de livros? Por que razão a produção de livros há-de ser apenas apanágio dos escritores e dos académicos?
Os livros que são editados, se não são “técnicos” ou “científicos” enquadram-se (em muitos casos pretensamente) na literatura entendida como arte. Mas esse leque de ofertas editoriais claramente não satisfaz nem cativa todos os potenciais leitores. O que aconteceria se por exemplo um ex-atleta como Jean-Jacques fosse encorajado a escrever (ou a mandar escrever) e publicar a sua biografia e as suas memórias de atleta de sucesso nacional e internacional? E, ainda, se viesse a público, em livro, uma grande reportagem sobre o fenómeno do feiticismo em Angola? Ou se um determinado músico popular contasse em livro a história das suas canções?
Está claro que mais contingentes de cidadãos seriam atraídos ao mundo da leitura.
Isaquiel Cori

Dos livros I

Face a emergência das chamadas novas tecnologias de informação, cogitou-se, pelo mundo fora, a possibilidade da morte do livro enquanto suporte de informação e conhecimento. A literatura, como arte, estaria igualmente em perigo, a não ser que se adaptasse ao novo contexto tecnológico.
Passam-se os anos e entretanto o livro, apesar da enorme concorrência que lhe faz a Internet, em todo o mundo continua a ser um meio incontornável de acesso aos vários saberes.
Mas o que particularmente fascina nos livros é a sua capacidade de retenção e difusão da cultura. O livro, aparentemente objecto, a partir do momento em que é folheado e lido passa a ser um sujeito activo de influência cultural. Assim, dezenas, centenas ou mesmo milhares de anos, épocas, sociedades e pessoas de cuja existência material talvez só reste mesmo como prova a referência contida no próprio livro, como num acto de magia voltam a ganhar vida através deste gesto tão simples, mas carregado de plena soberania e autodeterminação, que é o gesto da leitura.
Um gesto que propicia o prazer e uma melhor compreensão do mundo, da vida e de nós mesmos. E que, por outro lado, é um campo aberto aos afectos.
As pessoas que não sabem ler jamais saberão verdadeiramente o quanto perdem. Mas já é, no mínimo, paradoxal, haver pessoas que saibam ler e desperdicem a oportunidade que têm de entrar directa e pessoalmente em comunhão com uma fatia que seja da herança cultural humana e intemporal patente nos livros. E mais do que paradoxal já chega a ser mesmo uma atitude de irresponsabilidade quando tais pessoas vedam ou não fazem nada para que os seus filhos tenham acesso ao livro.
É que na verdade a formação integral dos cidadãos passa pelo acesso ao livro e pelo cultivo do gosto da leitura. E como já estamos na “antecâmara” da quadra festiva de fim de ano, talvez fosse bom pensarmos já em traduzir e concretizar a nossa afectividade uns para com os outros através da oferta de livros.
Isaquiel Cori

sábado, 13 de outubro de 2007

Similitudes entre o projecto "Andar o país" e o Movimento Vamos Descobrir Angola

O projecto de reportagem jornalística "Andar o país", idealizado pela Rádio LAC - Luanda Antena Comercial, e que visa calcorrear cerca de quinze províncias do país, tem um alcance de tal modo transcendente, que, certamente, ficará marcado nos anais do jornalismo angolano.
É uma tentativa de redescoberta do interior do país, da Angola Profunda, se quisermos, ao longo de dezenas de anos de guerra entregue à sua própria sorte. É também uma tentativa de tomar contacto com a visão das populações interioranas relativamente ao todo nacional e aos poderes centrais que as governam.
O projecto "Andar o país", pela sua concepção e alcance, apresenta ressonâncias e analogias com o ideário do Movimento Vamos Descobrir Angola, que, na década de 1950, levou alguns jovens intelectuais angolanos, entre os quais Agostinho Neto, Mário Pinto de Andrade, Viriato Cruz, e outros, a questionarem os valores que lhes eram impostos pela sociedade colonial e a orientarem-se na descoberta e promoção dos valores da terra, autóctones, dando assim um substracto teórico à angolanidade.
Seria bom que os profissionais envolvidos se imbuissem de uma perspectiva despreconceituosa e fizessem o seu trabalho com o sentimento de quem, verdadeiramente, está à descoberta de uma realidade desconhecida, que, entretanto, o pode enriquecer enquanto ser humano e, mais especificamente, angolano.
Pena é que, sem desprimor pelas qualidade profissionais dos jornalistas que fazem parte do projecto, a maioria dos órgãos de comunicação social integrantes da caravana não tenham enviado os seus melhores repórteres. O que revela uma miopia inicial, na forma como encaravam o projecto. Oxalá que os jornalistas consigam, também, elevar-se da visão instantânea, imediata, da realidade, e possam colher elementos e impressões de que possam resultar livros, seja de carácter jornalístico, literário ou, eventualmente, científico. Parabéns à LAC pela iniciativa e, aos profissionais envolvidos, que estejam à altura do desafio.
Isaquiel Cori

segunda-feira, 8 de outubro de 2007

Pré-Publicação: Extracto (brevíssimo) de um romance


O que a seguir podeis ler é um extracto de um romance meu, "O Último Recuo", que será publicado no primeiro semestre de 2008:
“João Segura tinha de comer. Levantou-se e pôs-se a caminhar pelos becos. Alcançou o que se poderia considerar uma rua: uma longa passagem de dois metros de largura que cortava o bairro todo e onde se localizavam, iluminadas pelas luzes tremulantes dos candeeiros a petróleo, as vendedoras de “pão-burro”, chouriço em fatias, milho assado na brasa, mabanga cozida e outras iguarias. Estava confiante que apesar de não ter dinheiro alguém conhecido lhe daria algo para comer. E tinha razão. Ajudado pela boa disposição, que até a ele próprio surpreendia, abraçou a Maricas, que vendia “pão-burro” de ontem.
- Minha comadre, como vai a vida? As crianças já melhoraram?
- A mais velha está mbora cada vez pior. O negócio não está a andar e já nem sei o que fazer. Só Deus é que sabe.
- Deus sabe mesmo. Todo o sofrimento acaba. É só ter paciência e continuar a trabalhar. Bumba só, minha kota, não dá muita confiança. A boa vida é já amanhã.
- Esse mano Segura também! Come então ainda um pão. É mbora de ontem, não faz reparo.
- Obrigado, minha mana.
Ela não sabia que o pão seria o seu jantar. O pão sabia a mofo, era como se estivesse a mastigar uma esponja suja de lavar a loiça. Mais do que comer tinha a sensação de que o pão lhe estava a lavar a boca, o esófago e o estómago. Até sentia o roçar irritante dos pedaços contra as paredes dos órgãos internos. Fez um esforço para não vomitar, pois não tinha a certeza de quando voltaria a meter qualquer coisa na boca. A fome era tanta que naquele momento comeria até mesmo uma pedra.
A noite escapava-se pelo seu olhar e tornava-se mais escura à medida que mastigava o pão. Via em redor, entre a escuridão debilmente rompida pela luz fumarenta dos candeeiros, muitos adolescentes e até mesmo crianças, à compra de pão e chouriço. Via também, por trás das filas das vendedoras, dezenas de adultos, homens e mulheres, sentados em cadeiras de plástico, que bebiam cerveja e vinho, petiscavam pincho de porco, falavam aos gritos e riam com toda a alegria das suas vidas. Envoltos que estavam na barulheira da pracinha, naquela atmosfera pesada de fumo que vinha dos candeeiros a petróleo e dos grelhados de pincho, aqueles bebedores nocturnos pareciam saídos directamente de um quadro de Gumbe: até o vórtice característico do estilo deste pintor parecia presente nas volutas de fumo branco e escuro que subiam para o céu.
- Não fala nada, mano Segura? Estás buamado com o ambiente?
- Às vezes me acontece. Fico a ver as coisas tipo não estou aqui. Ou então fico a ver as coisas tipo já vi essas coisas há bué de tempo...
- Fica com atenção, mano Segura. Muita gente então está a ficar maluco. Diminui ainda lá um pouco no quente.
- Por enquanto é o meu girabola. Cada um bebe como pode. Um dia vou subir de divisão.
- Já conseguiste trabalho de verdade?
- Nada, minha mana. Continuo mesmo a trabalhar de roboteiro nos “Transportes”.
- Quanto é o pão com chouriço? - A Maricas perdeu-o de vista, de repente rodeada por quatro clientes impacientes.
Ele afastou-se e penetrou num beco ainda mais estreito que o do mercado. Transpôs a porta de um quintal de chapas de zinco amachucadas, onde encontrou um grupo ruidoso de homens e mulheres a beberem kaporroto e kimbombo e a fumarem cigarros sem parar, sentados num longo banco corrido. No centro do quintal situava-se uma barraca de velhas chapas de zinco. Num dos cantos via-se um reduzido cubículo, que, pelo cheiro forte e nauseabundo a urina, vômitos e fezes, era certamente a casa de banho. Evitou a fossa, cuja tampa parecia render-se cada vez mais à força de gravidade do buraco, e avançou rapidamente para o centro do quintal, onde foi calorosamente cumprimentado por uma mulher.
A mulher era magra. Tinha o rosto atravessado por inumeráveis rugas entrecruzadas e uns lábios secos que quase desapareciam na boca. Cobrindo-lhe a cabeça tinha uma peruca castanha que, mal assente, descobria uma parte dos seus maltratados cabelos.
- Só agora, meu bem? Tenho estado à tua espera desde manhã”.
Isaquiel Cori


sexta-feira, 5 de outubro de 2007

A vertigem do Poder Judicial angolano


A liberdade, os direitos e garantias dos cidadãos, constitucionalmente garantidos, estão expostos, como nunca antes, ao escrutínio público, face a algumas sentenças exaradas por instâncias do poder judicial angolano. A condenação a quatro anos e meio de prisão de Fernando Miala, e, mais recentemente, a oito meses, do jornalista Graça Campos, director do Semanário Angolense, levanta a questão da independência do poder judicial e da impacialidade, ou não, da justiça em Angola. A credibilidade de todo o sistema judicial está a ser posta em causa.

Ora, a crise do sistema judicial angolano já começou há muito tempo. No sistema de Partido Único, que vigorou da Independência até 1991, os tribunais dependiam, nas suas decisões, do partido no poder. Os juízes só o eram porque pertenciam ao Partido. Com a mudança de regime ocorrida, constitucionalmente mudou-se o quadro, mas é claro que ainda existem sequelas de tutela político-partidária, se não formal, pelo menos emocional e sentimental: as pessoas não se reconvertem como as fábricas ou outra actividade económica. Esta é uma questão de fundo. Mesmo que não existam directivas explícitas, provindas do poder político, no sentido de influenciar este ou aquele juiz, estes, quando têm de decidir num julgamento com implicações políticas, naturalmente que, no âmago de si mesmos, prescrutam a respeito do que as instâncias políticas, de que foram formalmente membros durante vários anos, pensam, ou melhor, a respeito do que estas instâncias deles esperam.

Aí está a raiz da falta de independência e da questionável imparcialidade do sistema judicial angolano. Grande parte dos juízes acham-se tributários, pela sua história e por aquilo que são, do poder político. Ademais, Angola não tem uma tradição de liberdade plena.

A independência que a lei atribui aos juízes, tendo em conta a história do sistema judicial angolano, com muitos dos actuais magistrados judiciais detentores de um passado de militância activa no partido no poder, coloca estes cidadãos numa pesada situação de vertigem, num país em que a liberdade ainda é criança e está a dar os primeiros passos.

Isaquiel Cori

quarta-feira, 3 de outubro de 2007

Basta de ser testemunha


Eis-nos aqui, hoje, no nosso tempo. Estamos vivos. E queremos lançar a nossa pedra no edifício da época que nos compete viver. Basta de sermostestemunhas. Também nos queremos partícipes, feitores da nossa existência.

Nesta tribuna caberá de tudo um pouco. Gota a gota, ou em catadupa, de rompante ou por via de um parto lento e doloroso, as nossas ideias aqui estarão, sem auto-censuras, livres, mas honestas e responsáveis. Não nos impomos limites no tratamento das questões. Da literatura à política, da música às artes plásticas, do sério ao cómico, do sagrado ao profano, do real ao ficcional, os nossos textos terão como substracto Angola, o país e as suas gentes, o passado, o presente e o futuro desta realidade impossível de separar do nosso ser. Mas também não deixaremos de lançar um olhar acutilante ao que se passa no Mundo, pois, muito do que nos afecta, aqui, no nosso recanto, foi gerado nessa dimensão chamada Mundo.

Estaremos abertos à partilha de ideias e de pontos de vista. Queremos nos enriquecer com a experiência de quem divide connosco a existência neste Mundo de hoje, nesta época que nos coube viver. Simbolicamente, procuraremos estabelecer uma ponte com o passado e com aqueles que, não estando já vivos, deixaram um rasto de vida, um contributo perene para a continuidade física e espiritual da espécie humana.

Isaquiel Cori