quinta-feira, 13 de agosto de 2009

Adriano Mixinge, historiador e crítico de arte: "A crítica de arte é um exercício de rigor que começa no atelier do artista"


Adriano Mixinge (nascido em Luanda, em 1968), historiador e crítico de arte, lançou em Luanda o seu mais recente livro, “Made in Angola: Arte Contemporânea, Artistas e Debates”, com chancela da editora francesa L’Harmattan. Como o título indica, a obra é um conjunto de ensaios sobre a arte e os artistas angolanos, residentes no país ou na diáspora. É o seu segundo livro depois do romance “Tanda” (Chá de Caxinde, 2007). Aproveitamos a oportunidade do lançamento da nova obra de Adriano Mixinge, actualmente conselheiro cultural da embaixada angolana em França, para o abordar a respeito de questões atinentes à arte contemporânea angolana. Aproveitamos igualmente o ensejo para “mergulharmos” um pouco nas origens do próprio autor, na raiz do seu interesse pela arte.

Por: Isaquiel Cori

Sabemos que formou-se em Cuba, para onde foi muito novo. Que idade tinha na altura? Pode dizer-nos das circunstâncias em que foi parar a Cuba, em 1979?
Adriano Mixinge (AM)
- Eu tinha onze anos quando fui acompanhar a minha irmã São a uma das sedes da Organização dos Pioneiros Angolanos (O.P.A.), ali no bairro Miramar, porque ela tinha sido seleccionada para ir estudar a Cuba.
A minha irmã tinha na altura treze anos e tinha um certo ascendente sobre mim. Fomos entregar as suas fichas de inscrição e a Camarada Vivi – Vicência de Brito - ao ver-me todo atento àquela démarche da minha irmã perguntou-me se eu, todo pequeno, não estava interessado em ir, também. Eu aceitei logo, mas a Camarada Vivi disse que eu tinha que ter o consentimento dos meus pais, coisa que veio a acontecer pouco depois.
A minha mãe diz que no dia da viagem, era tanta a minha ansiedade em ir que saí de casa com parte da roupa, que entretanto ela tinha lavado na véspera, ainda húmida. Acompanhar a minha irmã naquele dia provocou a primeira grande viagem da minha vida.
Como era o ambiente na Ilha da Juventude? As preocupações dos estudantes resumiam-se aos estudos? Acompanhavam o desenrolar da vida em Angola, nomeadamente o curso da guerra?
AM -
Para um menino da minha idade, o ambiente da Ilha da Juventude era paradisíaco: viver, estudar e trabalhar naqueles internatos, em que os dormitórios, as salas de aulas e a biblioteca, bem como os campos de cultivos - cítricos, fundamentalmente, mas também mandioca ou mamão, por exemplo - estão num perímetro restrito e bem delimitado, deu-me a maior segurança que podia ter para conjugar o estudo e o trabalho, algo que sabíamos Che Guevara defendeu que estaria na base da formação do Homem Novo.
Unido aos estudos e ao trabalho, sempre estiveram também o desporto e a cultura. Nos primeiros anos, a dança popular e a literatura, ou mais concretamente, a poesia engagé. As danças populares a que me referido são mesmo as de salão, já que aos fins de semana podíamos organizá-las, no “Passeio Central”, que era a vitrina em que os melhores bailarinos exibiam-se prazenteiramente e onde surgiram casais, muitos dos quais ainda continuam juntos.
Em 1979, a Internet ainda não existia e/ou a era digital era uma invenção militar muito longe de massificar-se. Assim acompanhávamos pouco o desenrolar da vida em Angola e aos onze anos, e certamente pela distância, eu via a guerra como se fosse um fantasma igualzinho ao cambungú.
Acredito que para os adolescentes que ali estavam a percepção era diferente, mas para o menino de onze anos que eu era, a guerra era um assunto que não entrava dentro das preocupações imediatas: os meus amigos e eu, o que queríamos mesmo era ir procurar frutas das montanhas, para melhorar a nossa dieta alimentar que era quase franciscana.
Depois da Ilha da Juventude ingressou na Universidade de Havana, onde se formou em História da Arte. Mas o seu interesse pela arte é certamente anterior à sua ida para a Universidade. Chegou a praticar antes algum género artístico?
AM -
O meu interesse pela Arte não foi anterior a universidade. Eu nem queria estudar Arte: eu fiz os meus estudos pré-universitarios a pensar que iria estudar engenharia, mas vários incidentes na altura do encaminhamento provocaram que tal não acontecesse. Mas os Dários, o Dário Olavo e o Dário Van-Dunem, dois dos meus melhores amigos na época, eram leitores viciados e, então, com eles, comecei o meu primeiro ciclo de leituras, muito básicas – de Corín Tellado a Mário Puzo - como alguns meninos, eu também começaria a coleccionar selos.
Se antes mesmo de entrar da universidade, desinteressei-me por enriquecer aquele embrião de colecção filatélica, o mesmo não aconteceu com a leitura, esse é um hobby que viria a converter-se em profissão e acompanhar-me sempre: Thomas Mann, Marcel Proust, Milan Kundera, Vicente Huidobro, William Faulkner e Umberto Eco, entre outros, foram alimentando o fim da minha adolescência .
Excepto por um certo cuidado com a caligrafia, algo que vem do meu pai, não pratiquei nenhum género artístico até ter passado as provas de aptidão para a Faculdade de Educação Artística, do Instituto Superior Pedagógico “Enrique José Varona”, no bairro de Marianao, em Havana: os professores disseram-me que eu tinha possibilidade de desenvolverem-me, mas desenhar e pintar vieram a revelar que não eram mesmo o meu forte.
Qual é o panorama artístico que encontrou em Angola, após o seu regresso? Nessa altura quais foram os artistas que mais o impressionaram, tanto pela sua obra como pelo contacto pessoal?
AM -
Depois de terminar a Licenciatura, eu regressei a Luanda, a 8 de Maio de 1993. Dois dias depois, no dia 10 de Maio, o Viteix morreria. Mesmo sem o conhecer pessoalmente a sua morte abalou-me profundamente.
Mas, o panorama artístico era e em parte ainda continua a ser muito confuso, porque pelas reminiscências da ideologia totalitária dos anos em que travestimos à nossa maneira a ideologia marxista e fizemos fragmentários ensaios de socialismo. De uma maneira muito estendida, no país, as artes e a literatura costumam ser meios para atingir fins políticos e não o lugar em que a curiosidade e a inquietação criativa e intelectual se auto-satisfaz, produzindo uma ordem vital, comportamentos e uma moral tendencialmente elevada dos criadores e dos que interagem com as obras artísticas e literárias.
Datam daqueles anos os meus primeiros encontros pessoais com alguns escritores escritores já consagrados, Uanhenga Xitu e Pepetela, por exemplo. Outros na “bela flor da idade” como o Sílvio Peixoto, o José Luís Mendonça e o João Melo. Ou ainda aqueles que depois descolariam como o Fernando Kafukeno e a Amélia Dalomba.
Mas, naqueles anos, tiveram um efeito muito estimulante em mim a releitura de “Apuros de Vigília” de Luís Kandjimbo, a leitura de “Ana Manda, os filhos da rede”, o ensaio e tese de doutoramento de Ruy Duarte de Carvalho, e pouco depois, “O feitiço da Rama de Abóbora” de Tchikakata Mbalundu e o início da minha amizade com a Ana Maria Faria, que poria o tom inconformista e crítico, no embrião de sociedade civil, tudo isso no panorama literário e das ideias.
Especificamente, no âmbito das artes, e porque fui mostrar-lhe o capítulo da minha tese de licenciatura dedicado a obra dele dos anos 80, o António Ole ia preparando a sua exposição “Margem da Zona Limite”, que viria a acontecer em finais de 1994 e, apesar dessa coisa de (re)apropriar-se (ou imitar) modus de fazer de Jean-Michel Basquiat, o artista plástico Fernando Alvim ia animando os meios artísticos e foi por estes anos que tivemos o nosso primeiro contacto frente a galeria Humbihumbi, do Tirso de Amaral.
Já agora, quais são os traços identitários das artes plásticas angolanas?
AM -
As artes plásticas angolanas são um compêndio de múltiplos cânones estéticos que, falando de uma forma muito esquemática, situar-se-iam, por exemplo, nas pinturas rupestres de Tchitundo Hulo, Virei e noutras estações arqueológicas do Sudoeste de Angola, na estatuária e na escultura, na cerâmica ou no têxtil Kongo, Cokwé e Umbundu, entre outras culturas tradicionais de Angola. Estas seriam as bases constituintes de um cânone milenário, ancestral e pré-colonial.
A estética da arquitectura das fortalezas e das igrejas cristãs de Angola, construídas entre os séculos XVI/XIX, o urbanismo e a arquitectura das cidades, bem como as produções artísticas e literárias, incluindo a pintura paisagista, o desenho etnográfico e o artesanato surgido da implantação da herança ocidental, judaica e cristã em Angola e o seu imaginário, no período colonial, seriam segmentos do cânone colonial.
Enquanto que, por exemplo, a re-apropriação nas artes plásticas da história e das iconografias tradicionais, tanto a ancestral como a colonial, estariam na base do cânone moderno e contemporâneo pós-colonial, que ao contrário dos outros e pelas transformações tecnológicas dos últimos anos, tem uma componente universalista e global bem mais marcada e pode manifestar-se das mais múltiplas formas.
É na dinâmica entre estes diferentes tipos de cânone, nas suas condições de preservação, nos questionamentos a que foram e são constantemente submetidos, bem como nas estratégias de implosão e redefinição de uns e outros que situar-se-iam ou podem surgir, então, alguns dos elementos configuradores do particularismo transcendental da nova estética da Angolanidade.
Tem podido acompanhar a dinâmica actual das artes plásticas angolanas? O que nos pode dizer a respeito dessa dinâmica?
AM -
As manifestações da dinâmica actual das artes plásticas angolanas podem ser vistas, ao menos, em quatro contextos fundamentais: em Luanda, lugar em que as iniciativas privada, pública e estatal têm maior peso. Quanto ao que ocorre no interior do país sabemos muito pouco. Há o contexto das diferentes diásporas angolanas e, finalmente, das expressões da ubiquidade da Angolanidade, que podem manifestar-se ali e onde quer que haja um criador que trabalhe com base num substrato cultural colectivo e ou individual que identificaríamos como angolano.
Cada um destes contextos têm especificidades próprias que exigiriam uma análise detalhada, mas eu diria que em Luanda e apesar tanto dos meios financeiros disponíveis - que não são poucos - e do ruído mediático que provocam, as principais iniciativas artísticas privadas, nomeadamente as associadas à chamada Trienal de Arte de Luanda ou em redor do Etona são imaturas e têm sintomas de uma certa “elefantíase”, com toda a certeza por causa do autodidactismo dos primeiros e pela malformação artística dos segundos.
No sector público, refiro-me à intervenção e estímulo das empresas públicas e bancos às artes plásticas, com honrosas excepções e com as limitações que conhecemos, o trabalho de Jorge Gumbe e da ENSA-Seguros de Angola, é um bom exemplo. O que acontece é que não têm uma “política de aquisições” devidamente elaborada que permitiria estarem seguros da qualidade das obras que adquirem e padecem de uma certa tendência a um decorativismo básico e emocional.
Relativamente ao Estado e enquanto não houver um Museu de Arte Contemporânea, é ao Salão Internacional de Exposições que deveria recair a responsabilidade da promoção dos artistas plásticos e outros criadores em Angola e no estrangeiro, mas para tal haveria que independentizá-lo de uma vez por todas do Museu de História Natural, não só porque é assim como funcionava no tempo colonial, mas e sobretudo porque as implicações ideológicas e conceituais disso são melindrosas.
Do interior não falarei, mas da diáspora e dos actores e expressões da ubiquidade da Angolanidade sim, porque devemos reconhecer que pela qualidade do ensino artístico que muitos artistas angolanos adquiriram e adquirem fora do país, no geral, a qualidade formal tende a ser maioritariamente superior, mesmo que as reelaborações conceituais não tanto assim, pelo menos até agora.
Actualmente o movimento artístico, no que a exposições diz respeito, apresenta-se bastante fraco. Qual a causa disso?
AM -
Actualmente, o nosso calcanhar de Aquiles é a formação, no geral, e a formação artística em particular, e não é por acaso que o Ministério da Cultura estabeleceu a formação artística como uma das suas prioridades fundamentais. Sem deixar de apoiar e estimular a formação não-formal ou informal, uma educação artística formal, ultra-moderna e adaptada às realidades culturais angolanas é o segredo para que possamos reverter o actual estado das coisas.
Nos programas de estudo, uma atenção especial deve ser dada aos lugares dos discursos e às perspectivas de estudo e análise da história universal das artes, da história da arte africana, tradicional, moderna e contemporânea, de maneira a propiciar a subversão do eurocentrismo e estimular a legimitação das nossas visões endógena e universal, sempre dinâmicas e autocríticas, que obviamente deverão estar ancoradas no particularismo transcendental da Angolanidade.
As artes plásticas em Angola são apreciadas maioritariamente por estrangeiros e uma pequena, muito pequena, elite de angolanos. O que fazer para mudar este quadro?
AM -
Acho que aceitar a ideia de que os apreciadores da arte angolana são maioritariamente estrangeiros e uma muita pequena elite de angolanos reflecte uma visão reducionista das dinâmicas de recepção artística, já que uma coisa é apreciar e outra comprar.
Se estivermos a falar só de comprar obras de arte, aí concordo completamente consigo. Mas, no que à apreciação se refere, a questão é muito mais complexa e a experiência me diz que não devemos subestimar a capacidade que têm todos os seres humanos de lidar naturalmente com o belo.
No entanto, criação e a apreciação artística são, passe a expressão, reversos de uma mesma moeda. Para uma coisa e para outra, a educação artística tem um papel relevante a desempenhar e, por exemplo, ao contrário do que muitos pensam, a longo prazo, a disciplina de “Apreciação da arte e da cultura” pode e deve ser ministrada em todos os níveis de ensino.
É verdade que, neste momento, esta é uma sugestão que nem o Estado, nem ninguém estaria em condições de aplicar, mas a experiência cubana neste sentido é pioneira e, em três gerações, poder-se-iam formar formadores e ir sentando as bases do surgimento de gente artística e culturalmente mais cultivada.
Nos anos 80 e em parte dos 90 houve um grande entusiasmo à volta das artes plásticas, que então terão estado muito próximo da massificação, no sentido em que era praticada e apreciada por um grande número de pessoas. Hoje isso já não se verifica. O tempo terá finalmente acabado por fazer a depuração, fazendo permanecer no activo apenas os melhores?
AM -
Em parte podes ter razão, mas penso que não podemos analisar o lugar das artes plásticas fora do contexto geral das transformações sociais, políticas, económicas e, no geral, simbólico-expressivas verificadas em Angola.
A diferença com os anos 80/90, certamente, tem a ver com a incorporação dos circuitos e actores da artes plásticas na lógica da economia de mercado, como nunca antes se tinha verificado. Hoje a depuração é ditada pela capacidade de influência e adaptação dos criadores ao mercado angolano e isso, como sabemos, obedece a uma lógica que é completamente extra-artística.
O que é certo é que os melhores tenderão com certeza a sobreviver e mesmo a desenvolver-se e aí, então, poderão viver exclusivamente da arte e propiciarão o surgimento do artista próspero e não do “aparente pobre” como aconteceu, em Angola, em todo o século XX.
Quais são as grandes referências actuais, em termos de nomes e tendências, das artes plásticas angolanas?
AM
- Como fiz questão de sublinhar no livro de ensaios que acabo de publicar, um ambiente trepidante e libertário parece ter-se apoderado do melhor e do mais polémico da arte contemporânea angolana: António Ole, Miguel Petchosky, Franck Lundangi, Yonamine Miguel, Helga Gambôa, Van, Chikukuango Cuxima Zwa, Osvaldo da Fonseca, Álvaro Macieira, Nelson Costa e Nástio Mosquito, nas artes visuais e plásticas, estão na vanguarda de algumas das mais interessantes propostas estéticas e experimentações do momento.
O que esteve na génese do livro “Made in Angola: Arte Contemporânea, Artistas e Debates”?
AM -
Dois quadros, o “Animal Ferido” (1985) de António Ole e “Paz” (2005) de Franck Lundangi, marcam diferentes etapas do meu interesse pela arte contemporânea angolana, seus artistas e debates. Por isso, decidi reunir trinta e cinco ensaios, incluindo análises críticas da obra de mais de quinze artistas plásticos angolanos e uma dezena de artistas africanos, sem deixar de fazer uma abordagem interdisciplinar a propósito das relações entre a arte e a economia, a arte e a literatura e a arte e a ecologia, só para citar três exemplos e, também, incluindo um capítulo sobre cinema angolano, ressaltando essas novas imagens da Angolanidade.
Portanto, este livro espelha essa etapa do meu trabalho como historiador de arte e tento explicar em pormenor que as manifestações do particularismo transcendental da Angolanidade, nas artes plásticas, são o resultado de permanentes disputas e transfigurações simbólicas, iconográficas e expressivas com uma importância crucial na construção da nossa identidade e imagem colectiva.
Nota-se que este livro, para além da abordagem objectiva que procura fazer dos artistas e suas obras, está mesclado com episódios autobiográficos, relacionados precisamente com a sua interacção pessoal com os artistas. Em que medida o juízo de valor que faz da obra deste ou aquele artista não estará determinado pela qualidade do relacionamento pessoal com os mesmos?
AM
- A crítica de arte tal e qual como a entendo é um exercício de rigor, que começa no atelier do artista, antes mesmo que a obra que esteja a ser realizada, terminada ou do dia da vernissage da exposição. Interessa-me essa fruição primária com o criador, com o contexto que o envolve, porque creio que este tem componentes que, de uma forma ou de outra, ajudam-me a decifrar as obras que realizam. A maior parte dos artistas de cujas exposições eu fui comissário sabem que há níveis de exigências impostos por mim à partida. E como disse a Ana Maria Faria no dia da apresentação do livro, gosto mesmo – a expressão é dela - do “underground luandense”.
Numa comunicação que apresentou em Luanda no ano passado, disse que em Angola existem “certas capelinhas de legitimação que tendem a construir um espaço hegemónico”. Pode ser mais expansivo a respeito disso?
AM -
Naquela comunicação, que aparece como conclusão no livro, eu fiz uma radiografia da arte contemporânea angolana actual e fazia alusão às consequências nefastas da posição hegemónica do promotor artístico Fernando Alvim ( e de quem inadvertidamente o apoia) para o meio artístico caluanda e para a imagem internacional das artes plásticas angolanas, como de resto, assim o foi também há quando da anterior Bienal de Veneza.. É evidente que a Trienal de Arte de Luanda deve existir, mas como defendemos desde o primeiro momento, não de qualquer maneira, porque senão ela terá um efeito culturalmente reaccionário e contrário aos objectivos que os seus organizadores apregoam.
Qual o efeito da globalização nas artes plásticas africanas, em geral, e angolanas, em particular? Ganha-se ou perde-se com a maior inserção das nossas artes e artistas no contexto universal?
AM -
Se pudermos estar inseridos na dinâmica dos circuitos internacionais de arte mas atentos às armadilhas da globalização, especificamente do seu efeito homogeneizador, e também às manifestações do universalismo eurocêntrico, então, só poderemos ganhar. É verdade que actualmente há uma forte pressão dos meios universitários em favor do surgimento de circuitos alternativos aos existentes, uma vez que estes revelaram-se exclusivistas, artisticamente seguidista e alguns até mesmo corruptos e carentes de honestidade e consistência intelectual.
Portanto, creio que o segredo estaria em não cairmos na tentação do efémero, da fama oca e insubstancial e apostarmos mesmo pela formação, promover exposições e debates sem preconceitos de nenhum tipo, consolidarmos os mecanismos de auto-referencialização artística através de estudos monográficos – e revistas de arte - bem como preocuparmo-nos mais pelo fortalecimento tanto das instituições do Estado, no domínio específico da educação artística e da crítica de arte, como do incipiente circuito de arte, melhorando ou criando mesmo uma legislação que seja vantajosa para todos e cada um dos intervenientes do circuito. E, claro, só assim é que poderemos reivindicar, em Luanda ou em qualquer parte do mundo, o particularismo transcendental da Angolanidade e dialogar, em pé de igualdade, com os outros.

terça-feira, 27 de janeiro de 2009

Eis que continuo aqui...

Isaquiel Cori

2009. Cá estamos. A vida continua. Renovámos os sonhos. E as esperanças. A vontade de lançar a semente das nossas palavras no solo fértil do mundo em que vivemos continua forte. Este ano, que promete ser difícil, também pode revelar-se bastante estimulante. As crises, é sabido, afiam o engenho e tiram da toca o mais cómodo dos homens. Neste ano, no segundo semestre, virá a público o meu romance, "O último recuo", uma reflexão a respeito de aspectos marcantes da história recente de Angola, que os anos que seguem velozes, e vorazes, tendem rapidamente a fazer esquecer, ou a embotar num manto de mil e uma preocupações novas. Vou continuar na senda inicial, que cá me mantêm: desafiar o olvido, colocar a minha pedra no alicerce deste Mundo. Uma inovação que pretendo inserir neste espaço é interagir com outros blogues e blogueiros, angolanos ou não, criar uma corrente positiva com e em volta das palavras. Aguardem-me, estou por aqui. Já volto.

sexta-feira, 7 de novembro de 2008

OBAMA NÃO É A ENCARNAÇÃO DO MESSIAS

Sectores mais radicais da religiosidade africana vêem em Obama a encarnação do Messias, uma espécie de Cristo negro, há muito ansiado, que terá vindo para “salvar”, “redimir”, dignificar e conferir verdadeira humanidade aos negros.
ISAQUIEL CORI


Barack Obama será, a partir de 20 de Janeiro de 2009, o novo inquilino da Casa Branca, a residência mais notável dos Estados Unidos da América. Uma onda de satisfação varreu o Planeta inteiro. Uma nova esperança tomou conta não só dos norte-americanos mas da humanidade inteira.
A ascensão de um negro à Presidência dos Estados Unidos, a maior potência económica, científica, cultural e militar do Mundo, é vista em vastos sectores negro-africanos como o símbolo da redenção da raça negra, depois das épocas infames da escravatura, do colonialismo e da segregação.
Sectores mais radicais da religiosidade africana vêem mesmo em Obama a encarnação do Messias, uma espécie de Cristo negro, há muito ansiado, que terá vindo para “salvar”, “redimir”, dignificar e conferir verdadeira humanidade aos negros.
Igrejas (ou seitas religiosas) como o Kimbanguismo e o Tocoísmo fundam-se, em termos doutrinários, precisamente na crença da vinda de um Messias Negro.
Depois da vitória de Obama os mais despossuídos do Mundo, independentemente da raça, festejaram de modo frenético. Mas não só os despossuídos: vastos sectores da classe média em todos os países também o fizeram. Obama veio de baixo, fez-se a si mesmo. É, ele mesmo, a encarnação do sonho americano. E mais do que isso é negro.
Mas consciente da complexidade da sociedade americana, Obama em nenhum momento fez da sua condição de negro uma das bandeiras da sua campanha eleitoral. Alguns comentários mordazes qualificaram-no mesmo como “mais branco que McCain”, “candidato elitista” e houve até montagens fotográficas que circularam amplamente na Internet em que Obama aparecia como branco e McCain como negro.
Todavia, é impossível que Obama desconheça o forte impacto da sua vitória, enquanto negro.
Num mundo centrado sobre o homem branco, em que até a linguagem funciona como mecanismo de discriminação racial, como o demonstraram vários estudiosos, para vencer, os negros têm de ser muito bons: inteligentes a dobrar, fortes a dobrar, astutos a dobrar.
Aí está o mérito pessoal de Obama: ele foi duplamente mais inteligente, mais forte e mais astuto que McCain. E isto a começar na forma como a campanha eleitoral foi montada, nomeadamente quanto ao esquema de financiamento, que privilegiou os pequenos doadores, os jovens e usou de modo maciço a Internet.
Ora, Obama é um homem de carne e osso. Não é nenhum Messias. É apenas um homem dotado de muitas qualidades e com ambição de liderança. A redenção dos negros não virá necessariamente por aí. É certo que o facto de uma família negra morar na Casa Branca inaugura uma nova era e, em termos simbólicos, derruba a barreira racial no alto escalão do poder. A redenção negra virá, efectivamente, com a ascensão massiva dos negros nos altos escalões da Educação, da Ciência e do empreendorismo e com o seu resgate das garras das drogas, das doenças endémicas e da pobreza crónica, que, no seu conjunto, actualmente parecem um destino fatal. A redenção dos negros reside no progresso económico, social, político e cultural, beneficiando do mesmo tipo de oportunidades que qualquer outro ser humano, independentemente da cor da sua pele.

terça-feira, 4 de novembro de 2008

Pela partilha de ideias, até daqui a pouco

Alló, caros internautas interessados neste espaço.
Agradeço o carinho que tenho recebido de muitos de vós. Sem essa atenção dificilmente encontraria motivação para dar vazão a este projecto. Razões de força maior por vezes obrigam-me a ficar muito tempo sem postar. Entendam-me: é de todo interesse, da minha parte, dar livre curso a este blog.
Na verdade, a sua existência também obedece a imperativos de comunicação pessoal e de interacção humana. Ao longo de todo este tempo cheguei à conclusão que todo o ser humano, independentemente da sua condição económica e social, tem sempre algo a dizer, a comunicar aos outros. A experiência humana, mesmo quando aparentemente vivida por muitos, é irrepetível: o “ADN” de cada um confere à experiência aparentemente comum algo de muito individual, especificamente singular.
Daí que não só prometo dar continuidade ao projecto deste blog como também convido os caros internautas a comparticipar deste processo global de comunicação e troca de ideias que a Internet propicia.
Até daqui a pouco.

Isaquiel Cori

domingo, 12 de outubro de 2008

A CONSAGRAÇÃO DO SILÊNCIO INSTITUCIONAL


As fontes oficiais, os cidadãos que estão investidos de cargos públicos, notadamente governamentais, tendem a fechar-se em copas


Isaquiel Cori



A cultura de Angola, em particular, e de África, em geral, é substancialmente marcada pelo culto do autoritarismo. O autoritarismo, entendido como a ascendência, a supremacia indiscutível do chefe, do mais velho, que também se apresenta como depositário de um saber que emana dos antepassados, está nos interstícios da nossa vida, atravessa toda a nossa sociedade. Trata-se de um autoritarismo que não se impõe pela força, na medida em que é aceite por todos e é uma realidade cultural.

O representante típico dessa forma de autoritarismo é o soba. Na aldeia o soba é o senhor da comunidade. A figura do soba retém muito da autoridade própria das monarquias feudais, de que emana, com tudo de arcaico que isso possa significar.
É, efectivamente, um problema cultural. O chefe, ou melhor, a ideia e a imagem do chefe enchem a cabeça dos subordinados de tal forma que estes vivem a tentar agradá-lo e a sondar o que ele, o chefe, estará a pensar. O desejo de qualquer subordinado, neste contexto, é receber um olhar ou uma palavra de atenção. Um olhar ou uma palavra de atenção do chefe têm o efeito de um reconhecimento explícito. Uma palavra, uma frase, pronunciada pelo chefe, é encarada como um oráculo e os subordinados tentam, com denodo, decifrar a “verdade profunda” de cada um dos pronunciamentos do chefe.
Lá vão poucos anos que, em conversa informal com jornalistas, um destacado ministro do anterior Governo, questionado sobre o seu futuro depois de terminada a função que ocupava, foi mais do que enfático e liminarmente preciso: “Nós estamos em África. E em África as coisas processam-se como numa aldeia. Na aldeia quem manda é o soba. O que o soba diz é o que todos devem fazer”.
Esta é a concepção, na simplicidade com que foi expressa, de poder em África.
Ora, na cerimónia de empossamento dos novos membros do Governo, o Presidente da República, José Eduardo dos Santos, detentor do poder constitucional que lhe assiste, mas também, e acima de tudo, do poder simbólico que emana da realidade histórica, cultural e espiritual africana, disse, a dado momento, numa passagem esclarecedora do seu discurso: “Diz-se que é conversando que os homens se entendem. Mas aqui no Governo penso que é trabalhando bem, com dedicação e disciplina, que todos se entendem. Sei que é um homem [Referia-se ao novo Primeiro Ministro, Paulo Kassoma] de acção e é só isso que de nós se espera - acção, mais trabalho e menos discursos!”
Estas palavras repercutiram de tal modo nos destinatários das mesmas que a comunicação social, nomeadamente os jornalistas, passaram logo a sentir os seus efeitos: as fontes oficiais, os cidadãos que estão investidos de cargos públicos, notadamente governamentais, tendem a fechar-se em copas. O lema, dizem, é “menos palavras, mais trabalho”. Enfim, é a consagração da cultura do silêncio institucional.

terça-feira, 30 de setembro de 2008

POR UMA NOVA ERA NA POLÍTICA ANGOLANA

A renovação da classe política só irá consumar-se com as eleições autárquicas

Isaquiel Cori

Com a tomada de posse dos novos deputados, eleitos nas eleições legislativas de 05 de Setembro, e a formação, em breve, do novo Governo, a classe política angolana tem a grande oportunidade de reaparecer aos olhos da opinião pública com uma imagem de competência e referência incontornável na solução dos problemas que afectam o país e os cidadãos.
A efectivação dos ciclos político-eleitorais tem o grande condão de renovar a classe política, infundindo-lhe sangue novo, com a subida à ribalta de novos contingentes de políticos sedentos de demonstrarem o quanto valem. Aliás, por razões histórico-culturais em Angola a vida política é encarada, ainda, como a principal via para a auto-realização económica: o político de sucesso, com carreira parlamentar ou governativa, no quadro actual (e esperamos que seja sempre assim) jamais cairá nas malhas da pobreza; pelo contrário, é-lhe dado todo o tipo de oportunidades para acoplar à carreira política a condição de empresário. Cabe-lhe aproveitar e caminhar pela vida com o desafogo que só dependerá, em grande parte, da sua criatividade e capacidade de gestão.
A renovação da classe política angolana ficará mais vincada com a realização, no próximo ano, das eleições presidenciais. Mesmo que ganhe o actual detentor do cargo de Presidente da República (trata-se do cenário mais do que provável) necessariamente serão introduzidas mudanças de métodos de actuação e, no que aqui nos interessa, de pessoas no círculo presidencial.
Mas a grande esperança de renovação profunda da classe política vai concretizar-se com a realização das eleições autárquicas: a carreira política estará ao alcance de um número mais vasto de cidadãos interessados. Tais cidadãos serão projectados dos círculos partidários, onde muitos deles levam uma existência de apagados “aparatchiks”, para o universo da vida verdadeiramente pública, junto dos cidadãos e dos seus problemas, podendo então batalhar pelo reconhecimento dos seus méritos ao mesmo tempo que se empenham na solução dos problemas.
As instituições autárquicas serão a grande escola em que a classe política se vai forjar. Os políticos, temperados no dia-a-dia dos bairros, dos municípios, vão suar ao lado dos eleitores e serão obrigados a construir um percurso de dedicação em prol das comunidades. Isto é, estará aberto o caminho para o resgate da política enquanto missão, mais do que isso, sacerdócio, pelo bem público. Quando lá chegarmos, estaremos numa nova era política em Angola.

segunda-feira, 15 de setembro de 2008

À DESCOBERTA DAS CHANAS DO LESTE

Onde se fala de caminhos arenosos no meio da mata e de pistas somente usadas por caçadores
Isaquiel Cori (texto)
Paulino Damião “Cinquenta” (fotos)

A viagem que devia ter começado de manhã cedo acabaria por iniciar apenas por volta das onze e meia. Estávamos no Luena e o destino era o Luau. A viagem, de 362 quilómetros, seria feita ao longo da linha férrea. Passaríamos pela chana, esse tipo de vegetação do Leste, famosa na memória da geração dos guerrilheiros da Luta de Libertação Nacional, magistralmente descrita por escritores como Pepetela e cantada por músicos como David Zé. A chana é um vasto território de capim rasteiro a perder-se na linha do horizonte. Compará-la ao mar é o pensamento que imediatamente nos ocorre.
É impossível viajar pela chana sem evocar o sacrifício daqueles homens e mulheres que durante vários anos por lá penaram, lutando pela independência do país. Muitos dos quais lá morreram e os seus corpos lá estão enterrados algures. O conhecimento da chana permite aquilatar a têmpera dos que durante tantos anos lá viveram, lutaram e sobreviveram.
Patos selvagens voam a meia altura na chana e alimentam-se de peixe nas águas paradas das valas ao longo das linhas do Caminho de Ferro de Benguela. Estamos na estação seca, por isso os pântanos estão secos. No tempo chuvoso a chana transforma-se num vasto pantanal que torna os caminhos inacessíveis mas constitui uma das principais fontes de alimentação da população. Nessas águas turvas os patos disputam os peixes com os pescadores, que também montam armadilhas onde incautas aves se vêem presas pelas patas, impedidas de alçar voo e com o destino marcado para um repasto humano. Os pescadores passam vários dias nas chanas, longe das suas aldeias. Durante esse tempo pernoitam em pequenas cabanas, ao lado das quais secam o peixe capturado.
Em poucas horas de viagem alcançamos a sede municipal do Léua. A paragem é breve, apenas para nos certificarmos do caminho certo. A próxima etapa leva-nos ao Lumeje-Cameia. Pelo caminho, impressionantes destroços vindos de um passado de guerra: locomotivas e carruagens queimadas e enferrujadas, bem como ruínas de estações de caminho de ferro.
A viagem prossegue ao longo da linha férrea. A areia fina obriga, amiúde, o motorista a accionar a alavanca do reforço da viatura. Somos um ponto que se move na chana. Um ponto isolado, pois, aparentemente, mais ninguém circula por aqueles caminhos.
O tempo passa rápido. A noite cai e encontrámo-nos à entrada da sede municipal do Luacano, que, para agradável surpresa, está toda iluminada. Tem iluminação pública e doméstica. Faz muito frio e as ruas estão vazias de gente. Um agente policial vem a correr ao nosso encontro.
“Qual é o caminho que vai directo ao Luau? Estamos a quantos quilómetros do Luau?”, apressámo-nos a perguntar, pois estávamos dispostos a continuar viagem, mesmo durante a noite.
“Depois da aldeia de Muchikengue virem à esquerda. O caminho da direita vai para o Cazombo. Daqui ao Luau são, mais ou menos, cem quilómetros”, informou-nos o agente.
“Tínhamos” de chegar ao Luau naquela noite. Sabíamos que lá a mesa do jantar já estava posta, em casa do Superintendente Lupin, comandante da sub-unidade local da Polícia de Guarda Fronteiras. Luau soava de modo muito especial, talvez por ser a estação terminal do Caminho de Ferro de Benguela e a localidade mais importante do extremo Leste do país.

Perdidos no meio da mata

Logo depois de Muchikengue deparámo-nos com uma encruzilhada. Metemo-nos pelo caminho da esquerda. Ou a explicação foi mal dada ou a percebemos mal: perdemo-nos. Enveredamos por um caminho que logo se tornou uma picada no meio de uma mata cerrada. Na noite escura o carro abria passagem entre o capim alto e seco. Estávamos rodeados de um silêncio enorme. Por vezes deparávamo-nos com pontes improvisadas, precariamente feitas com grossos troncos de árvores. A opção única era continuar a viagem, a ver aonde aquela picada nos levaria. Mais tarde soubemos que nos tínhamos metido numa pista de caçadores, bastante utilizada pelos guerrilheiros durante a guerra de libertação nacional.
Para agravar as coisas, por ter sido maltratado pela brita da plataforma da linha férrea, um dos pneus perdeu ar. Fomos obrigados a parar na passagem estreita e arenosa. A mata vibrava, parecia animada com espíritos antigos, de ancestrais que, aparentemente, queriam dizer qualquer coisa. A tecnologia, na forma de um telefone satélite, era o único meio que nos ligava ao mundo. Foi possível trocar o pneu e continuar viagem. A picada desembocou numa estrada mais larga que nos levou ao caminho certo para o Luau.

Acolhimento inesquecível no Jimbe
O Posto Fronteiriço do Jimbe, a 310 quilómetros do Luau, fica no vértice superior do saliente do Cazombo, na fronteira com a República da Zâmbia. É um local remoto, de acesso difícil. A estrada é um carreiro arenoso e sinuoso no meio da chana. Lá foi possível constatar a dimensão do sacrifício e dedicação do efectivo da Polícia de Guarda Fronteiras. São homens duros, de “barba rija e cabelo nas ventas”. Numa noite fria de rachar os lábios fomos recebidos com um calor e uma amizade inesquecíveis. À volta de uma fogueira animaram-nos do cansaço da viagem contando anedotas e até declamando poemas.
A noite foi entremeada com histórias da guerra. Ela terminou, é certo, mas entre militares é impossível não falar dela, já que ela dominou grande parte das suas vidas. Rimo-nos bastante com histórias de tragédias que agora, milagrosamente, já são antigas.
Na hora de ir dormir aconteceu uma surpresa: o cobertor reservado para os jornalistas estava cheio de kassumunas, aquelas formigas dotadas de uma picada imensamente dolorosa. A solução veio logo, bem ao jeito radicalmente militar: quatro homens estenderam o cobertor sobre as chamas da fogueira, sacudindo-o com cuidado. As formigas não resistiram.

MENDES DE CARVALHO / UANHENGA XITU: O PERFIL POSSÍVEL




Por: Isaquiel Cori

Agostinho André Mendes de Carvalho, ou melhor, Uanhenga Xitu, é inegavelmente um dos escritores angolanos de primeira linha. Pertence à geração de autores mais velhos ainda em actividade. É um dos mestres da literatura angolana. E ele faz jus a esse estatuto não apenas no domínio estrito da criação literária, em que os seus livros servem de inspiração e modelo a muitos neófitos da coisa literária, mas também no do activismo literário, transmitindo aos jovens a sua vasta experiência humana e até apadrinhando-os de modo quase incondicional.
Apesar de ter a sua obra estudada em várias universidades, sendo objecto de teses de mestrado e doutoramento, para além de possuir uma legião incomensurável de leitores fiéis em Angola e noutros países de língua portuguesa, Uanhenga Xitu nunca se assumiu como escritor. Prefere que o considerem apenas um “contador de estórias”.
Mas claro que ele é um escritor. Um escritor de estilo despojado de circunlóquios e floreados “literários”, dono de uma escrita que parece brotar directamente da fala popular. É como se essa escrita fosse tão somente a fixação dessa fala. Uanhenga Xitu, na sua própria concepção, será assim um griot, um desses emblemáticos bardos africanos depositários da memória colectiva.
Correndo o risco de sermos considerados apologistas de uma terminologia desfasada no tempo, diremos que Uanhenga Xitu é um “escritor popular”, cuja escrita simples é um perfeito passaporte para quem se queira iniciar no mundo da leitura. Aqui, é preciso ressaltar que em literatura, como aliás nas artes em geral, o simples não é necessariamente sinónimo de fácil. O mais fácil é escrever “difícil”, “complicado”.
Por detrás da aparente simplicidade da escrita de Uanhenga Xitu emergem figuras e ambientes que jamais tinham sido, tão claramente, realçados na literatura angolana. Na sua obra o quotidiano da vida rural, o “homem do mato”, o ambiente das sanzalas, em toda a sua singeleza e riqueza, são descritos de modo tão honesto e humanizante que se gravam, indelevelmente, na memória do leitor. Personagens como Mestre Tamoda, Kahitu e Manana, ultrapassaram os limites materiais dos livros em que foram concebidos e fazem já parte do imaginário de milhares de leitores angolanos e estrangeiros.
A abordagem rural da escrita de Uanhenga Xitu hoje, 33 anos depois da nossa independência, de liberdades constitucionalmente asseguradas ao cidadão logo à nascença, pode parecer aos olhos de leitores desavisados algo “normal” e “pouco importante”. Ela pode ser melhor compreendida se dissermos que Uanhenga Xitu pertence a uma geração de angolanos que foi submetida aos rigores do processo de assimilação cultural, pelo regime colonial. Esse processo visava, em última instância, que o autóctone negasse a sua própria cultura, a sua história, e adoptasse a cultura do colonizador.
É nesse contexto que se deve valorizar o feito de Uanhenga Xitu: constitui um acto de resistência, ou melhor, de libertação. (Lembre-se que tanto “Mestre Tamoda” como “Kahitu” foram escritos durante os anos em que o autor esteve preso, por actividades nacionalistas, no centro prisional do Tarrafal, na ilha de Santiago, em Cabo Verde).
Agostinho André Mendes de Carvalho, o homem, o político e também o escritor, já foram alvos de homenagens públicas, merecidas. É sempre bom quando um ente humano é testemunha das homenagens públicas e cerimoniais que lhe são prestadas. Mas o maior tributo que se pode prestar a um escritor é a reedição e a difusão dos seus livros.
Aos 84 anos de idade, Agostinho Mendes de Carvalho, a encarnação de Uanhenga Xitu, é um político angolano de referência. O MPLA tem tudo para se sentir orgulhoso de ter nas suas hostes um cidadão cuja dimensão é tão grande ao ponto de constituir-se numa das reservas morais da nação.

LIÇÕES A TIRAR DOS RESULTADOS DAS ELEIÇÕES LEGISLATIVAS EM ANGOLA

Isaquiel Cori

Com a consumação das segundas eleições legislativas e a consequente vitória arrasadora do MPLA, o país entra num novo ciclo político-institucional. Como disse o Presidente da República, José Eduardo dos Santos, inaugurou-se “uma nova era, uma nova maneira de fazer política”.
As eleições, como é normal num processo competitivo, trouxeram a alegria a alguns e amargos de boca a outros. Mas ao fim e ao cabo, como foi dito por vários comentadores, ganhou o povo angolano, que teve a oportunidade de influenciar directamente na escolha dos seus governantes e vê assim robustecida a democracia.
A permanência dos ciclos eleitorais é a melhor maneira de separar o trigo do joio no universo da política. Até ao último dia da votação prosperavam no país, à sombra do maná do financiamento público, ao lado de notáveis personalidades políticas, líderes políticos medíocres à frente de partidos igualmente medíocres, que mais pareciam conglomerados de mercadores. A classe política angolana, a prazo, corria o risco de perder toda a credibilidade, invadida que estava por mercenários, gente sem escrúpulos nem pruridos éticos.
A normalização do ciclo eleitoral, para além do indispensável banho de legitimidade política, propiciará, certamente, o retorno da figura do político dotado de espírito de missão, com preocupações éticas e honesto nas suas pretensões porque se sabe escrutinado pelos eleitores.
As eleições legislativas de 2008, e os seus resultados, deram inúmeras lições a todos os intervenientes.
Primeira lição: Os eleitores angolanos estão maduros, mais bem informados, e já não ficam à mercê dos discursos encantatórios de um qualquer político demagógico. Efectivamente, a população votante, de 1992 para cá, viu-se reforçada com um enorme contingente de jovens - muitos dos quais votaram pela primeira vez - dotados de um nível educacional maior e donos de uma cultura predominantemente urbana, com acesso às novas tecnologias de comunicação e informação e, por isso, voltados para os fenómenos modernos da globalização.
Segunda lição: Aos partidos da Oposição não basta criticar o partido no poder. É preciso apresentar programas concretos, alternativas reais (e não abstractas) de mudança na governação, que satisfaçam as aspirações do eleitorado, sobretudo das suas franjas maioritárias, notadamente os jovens e as mulheres.
Terceira lição: a campanha eleitoral não começa às vésperas das eleições. A política é uma actividade de todos os dias e os partidos políticos, se de facto querem assumir a sua vocação para o poder, devem mergulhar no quotidiano do eleitor, nas comunidades, nas suas preocupações diárias, nos seus sonhos de vida. A “campanha porta-a-porta”, apressadamente encenada pela maioria dos partidos, durante o período oficial da campanha eleitoral, teve contornos ridículos e pretendeu esconder a incapacidade dos mesmos de juntar sequer uma centena de pessoas em comícios.
Quarta lição: É preciso deixar de fazer política apenas via conferências de imprensa. O político tem de ir à estrada, palmilhar o país, tirar o fato, arregaçar as mangas, suar e misturar-se aos cidadãos comuns, que, afinal, têm a chave da porta de entrada para o edifício do poder.
Quinta lição: Os eleitores querem um compromisso com o futuro. Doravante, quem quiser ganhar as eleições em Angola tem de estar um passo, ou mais, à frente dos outros. Tem de apresentar uma visão do país, nos próximos quatro anos, que signifique um avanço, um aumento da prosperidade, uma melhoria real, concreta, pessoal, individual, de vida.
Sexta lição: Os partidos da Oposição, incluindo a UNITA, e isso justifica a grande diferença de votos em relação ao MPLA, não captaram o impacto das transformações económicas e estruturais ocorridas no país ao longo dos últimos seis anos. O mote do discurso da Oposição – a mudança – já estava desactualizado: mudar para quê, se Angola já vem mudando, aos olhos de todos, desde 2002? As obras de reconstrução nacional, consubstanciadas na edificação e reabilitação de pontes, estradas, escolas, hospitais, etc., etc., voltaram a ligar o país, deram um novo ânimo aos cidadãos, dinamizaram a vida, enriqueceram o quotidiano, fizeram subir a fasquia do sonho angolano. As obras de reconstrução nacional são o esteio da mudança pretendida pelos eleitores.
Sétima lição: A Oposição, sobretudo a UNITA, não compreendeu que Angola, desde 1992, sofreu profundas transformações sociológicas. A guerra pós-eleitoral de 1992, e outras ocorridas antes, provocou gigantescos movimentos migratórios e detonou o mapa étnico do país. Tal “mapa”, hoje, em termos científicos, é uma falácia: os angolanos estão mais misturados do que nunca.
Em suma, o MPLA ganhou esmagadoramente as eleições porque é o partido que, hoje, mais está em sintonia com a Angola do futuro. A ver vamos se nos próximos quatro anos mantêm ou não este privilegiado estatuto.

CABINDA QUER SER O PRINCIPAL PÓLO DESPORTIVO DE ANGOLA





Isaquiel Cori │ Cabinda
Eduardo Pedro (fotos)

De manhã, a tarde e à noite o pavilhão desportivo da escola Barão de Puna acolhe dezenas de jovens ávidos de se aperfeiçoarem na prática desportiva. Rapazes e raparigas ora correm ao longo da quadra ora disputam a bola entre si. O suor corre-lhes pelo corpo e o entusiasmo é-lhes visível no rosto e nos gritos com que se autoestimulam. Amélia Simba, 13 anos, estudante da 7.ª classe, treina andebol há 3 meses. De segunda a sábado faz-se presente aos treinos e ela não esconde a sua ambição: “Quero chegar à selecção nacional de andebol”. O seu ídolo desportivo, a figura que lhe serve de farol no quadro do seu sonho, afirma ela, é a campeã Ilda Bengue. “Sonho ser tão famosa como ela”.
A pequena Amélia treina-se no âmbito do Promad, um projecto de massificação desportiva, gizado pelo Governo provincial com a intenção não só de ocupar os tempos livres dos jovens mas também de descobrir novos talentos para a alta competição. O projecto que começou com a modalidade de basquetebol estendeu-se ao andebol e ao futebol.
No basquetebol o Promad já deu resultados mais que visíveis: Cabinda já tem atletas na alta competição, inclusive na selecção nacional e em clubes estrangeiros.
Um dos principais alicerces do Promad é a formação de formadores. Quinze monitores formam atletas de basquetebol. O Governo de Cabinda contratou técnicos especializados para a abertura de várias escolas de futebol, que irão funcionar nos quatro municípios da província: Cabinda, Cacongo, Buco Zau e Belize. “Mandamos também vir técnicos para formação de ciclistas, pugilistas e nadadores”, revela Inocêncio Tomás Júnior, director provincial da Juventude e Desportos.
O Promad não é uma iniciativa isolada. As autoridades provinciais não escondem a sua intenção estratégica. “Queremos tornar Cabinda no principal pólo de desenvolvimento desportivo do país. Esta é uma grande aposta do Governo da província e, em particular, do seu governador”, diz Inocêncio Júnior.

Nada periga o CAN’2010

Não são meras palavras ou intenções vazias. Hoje, Cabinda já se afirma como um dos maiores parques desportivos do país. Desde a realização do Afrobasket, em 2007, Cabinda beneficiou de novas infra-estruturas, como é o caso do Pavilhão Multiuso do Tafe. Na província existem oito pavilhões desportivos cobertos, nomeadamente os pavilhões multiuso da escola Barão de Puna, do Instituto Médio de Economia, de Landana, das escolas Jika e Dangereaux, do Sporting e da escola Lombolombo.
O estádio de futebol do Tafe está em reabilitação profunda, para servir de apoio para o CAN’2010. O de Lândana também está a ser reabilitado.
“Estamos a construir um outro estádio, de luxo, no município de Buco Zau, que já está na fase terminal. Vamos construir no município de Cabinda, no âmbito do CAN, outros campos de apoio nas áreas do Mbaca e de Santa Catarina, para além do adjacente ao estádio principal para o CAN”, informa o director provincial da Juventude e Desportos. “Como pode observar, Cabinda está muito bem servida em infra-estruturas desportivas”, acrescenta.
Mas não é tudo. No âmbito do projecto Despontar, sob tutela do Ministério da Juventude e Desportos, Cabinda vai conhecer a construção de 21 campos pelados de futebol. Em todas as sedes municipais e comunais e na maior parte das aldeias está-se a construir pelo menos um campo de futebol.
“De modo a garantir a manutenção contínua e eficiente desses espaços, adoptamos um modelo em que os mesmos serão tutelados pelas administrações municipais, comunais e pelas autoridades tradicionais, no caso das aldeias, mas sempre sob a supervisão do Governo provincial”, diz Inocêncio Júnior.
Muito recentemente foi bastante comentado o facto de as obras do estádio que vai albergar, em Cabinda, as competições do CAN estarem um tanto atrasadas. Isto deveu-se, com base na fonte que vimos citando, a problemas de escoamento de materiais via Ponta Negra, na República do Congo. “O atraso foi de 20 dias, mas, segundo o empreiteiro, já foi recuperado. Nada poderá perigar a realização do CAN’2010 em Cabinda”.

Para lá do desporto

Como é óbvio, o desporto não é a única área de interesse da juventude. No âmbito do programa Angola Jovem, está-se a terraplanar o local aonde serão construídas 150 residências económicas para a juventude. As casas estarão prontas dentro de cinco meses. Serão igualmente construídos dois centros comunitários para a juventude, um em Cacongo e outro em Belize.
Os centros comunitários são uma espécie de casas da juventude em miniatura. São espaços multidisciplinares que abarcam vários serviços, como formação técnica, lazer, desporto, biblioteca e outros, que servem para os jovens aumentarem as suas habilidades técnicas e académicas e melhorar as desportivas.
No município de Cabinda, a par do projecto habitacional será erguida a Casa da Juventude.
Perto de 200 cooperativas constituídas por jovens, nas mais diversas áreas produtivas e profissionais, beneficiaram de financiamentos no quadro do projecto Crédito Jovem. E isto está a resultar. “Já podemos observar, na província, pequenos negócios feitos com base nesse crédito. Isto é um passo bastante positivo. Estão a surgir pequenos empresários jovens que, se forem bem sucedidos no mercado, a breve prazo poderão transformar-se em grandes empresários”, augura Inocêncio Tomás.
A primeira fase do projecto Crédito Jovem, em Cabinda, atingiu um montante de 200 mil dólares, repartidos pelas distintas cooperativas, através do BPC. Aguarda-se que, em breve, a nível central se dê vazão à segunda fase.