segunda-feira, 4 de dezembro de 2017

LUIS VISCONDE OU QUANDO A MÚSICA FAZ SONHAR


Isaquiel Cori

Nessa de tirar proveito das adversidades, transformar o negativo em positivo, na esteira das teorias motivacionais - ou de auto-ajuda - de que o país já conta com alguns palestrantes de monta, estava eu no engarrafamento de Luanda debaixo de chuva e pus-me a escutar um CD de música angolana antiga. Cismei imediatamente com “Chauffeur de praça”, de Luís Visconde. Passei então toda a viagem a escutar repetidamente essa música.
O resultado foi ficar completamente imerso na canção, cuja letra, simples como tudo o que é bom, fala de um jovem que tinha pressa de ver a amada que vivia num “subúrbio” de Luanda. A canção põe-o a mandar parar um táxi, todo ansioso, como aliás qualquer apaixonado estaria. O chauffeur, hoje chamamos motorista, reclamou quando soube que o destino era o “subúrbio”. E não era para menos. Já naquele tempo Luanda quando chovia era um desastre. O subúrbio, aqui tiro as aspas para o chamar musseque, depois de uma carga de água ficava atravessado por riachos que depois formavam lagoas nas vias de acesso. O trânsito automóvel (que não se compara com o de hoje) era penoso, só os mais corajosos se atreviam a meter lá o seu carro. Os taxistas fugiam. Os moradores saíam à rua com botas impermeáveis de borracha e procuravam com todo o cuidado pedaços de solo duro onde pisar. “Tempo chuvoso no subúrbio não vou / Pois sou chauffeur de praça e não barqueiro”.
O refrão  “Se você quer ver seu amor, atravesse a lagoa a pé! / Não vou partir meu popó / só porque você quer dar show!” é muito elucidativo, mas também levanta várias interrogações. Ao que pude apurar, a música foi editada em disco em 1968. A letra é de Chabanu. Grosso modo, podemos então presumir que a cena narrada e cantada aconteceu, real ou imaginariamente, na Luanda daquela época. Como é sabido, então os taxistas eram os “colonos”, que tinham o monopólio do exercício dessa pofissão. O da canção o era, como fica bem claro na forma como o cantor o interpreta a falar. O jovem apaixonado vivia obviamente no centro da cidade e namorava com uma jovem do musseque. Eram de condições sociais diferentes.
Não tenho idade para saber de ciência própria dos pormenores vivenciais daquele ano. Em 1968 eu estava a engatinhar e ainda chorava e reclamava, com toda a soberania, pelo colo da minha mãe. Mas estando aqui no espaço de uma crónica, nada nos impede de imaginar tudo o resto. A canção diz que o jovem lá conseguiu convencer o taxista a ir musseque adentro, contra lagoas e riachos, ao encontro da amada. (“Então chauffeur, dominado por mim / Na borracha puxou atravessando lagoa). Mas quem era aquela moça, tão bem e intensamente amada? Como se chamava? Morava em que subúrbio? O que fazia na vida? Como o jovem citadino a conhecera?
A letra de Chabanu tem todos os condimentos para incendiar as mentes mais curiosas e imaginativas. A moça chamava-se Josina. Era uma negra de pele e cabelos escuríssimos, olhos castanhos. Conheceu o jovem da música quando ia às aulas de dactilografia, na Baixa. Começaram a namorar há pouco menos de dois meses, depois de quase seis meses de convencimento por parte do jovem.
Assim que saltou do táxi, vencido o obstáculo maior que era a lagoa, o jovem enfiou-se numa rua que poucos passos depois se converteu em vários becos. A chuva parara de manhã mas ainda caíam uns pingos. (A canção não diz nada a respeito, pelo que vamos considerar que o subúrbio/musseque era o Rangel).
Josina, que estava com as irmãs a retirar a água do quintal para a ruela, ficou completamente surpreendida e até mesmo envergonhada quando viu o jovem (aqui, para o efeito, Alencar). E não era para menos. Estava descalça, o cabelo todo destrançado e despenteado. Quis ir a correr para dentro mas não conseguiu, não deu mais tempo.
- Ó amor, estou aqui, sou eu – disse Alencar.
- Ei, pôssas, apareces assim, não te esperava, com a chuva toda que caiu.
-  Nem me apercebi que choveu. Enchias o meu coração, os meus olhos e a minha cabeça. Tinha de te procurar.
Josina não sabia o que fazer. Não podia mandar Alencar entrar e também não podia continuar a conversar com ele aí, à porta. O pai chegaria a qualquer momento.
A crónica termina com Josina nesse imbróglio.


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