Isaquiel Cori
Quem
como eu gosta de deambular por aí incógnito pela cidade, a apreciar a paisagem
urbana e a fauna humana, depara-se com mil e uma cenas ora caricatas, ora
dramáticas, ora até mesmo trágicas.
A
dinâmica urbana luandense oferece, aos mais atentos, que não se deixam
mergulhar inteiramente na urgência do quotidiano, momentos de autêntica
revelação. Há dias fui caminhando pelo perímetro da sede da Sonangol, o
Monumento ao Soldado Desconhecido, o Museu da Moeda, o Hotel Globo, a sede do
Governo Provincial e a Mutamba, à hora do almoço, num desses dias de sol fraco,
a cheirar chuva, e um sentimento de nostalgia me foi invadindo, a noção que
tinha do tempo recuou para muitos anos atrás e lembrei-me de quando, muito mais
moço, vinha à Mutamba.
Naquela
altura a viagem a partir do meu Kassequel do Lourenço era feita a pé ou
ensanduichado no autocarro “25”, que ia sempre, mas sempre mesmo, atulhado de
passageiros. Não éramos tão "evoluídos" semanticamente: muitos de nós
referiam-se àqueles meios automotivos como "maximbombos", sinal de
que ainda estávamos muito próximos culturalmente das nossas origens rurais.
Ir
à Baixa, para nós da periferia, era um acto de suma importância que levava a um
ritual de preparação higiênica, ao uso de roupas lavadas e engomadas e de calçados
bem limpos e engraxados. Andávamos pelo centro da cidade com o maior cuidado,
para evitar ser atropelados pelos carros nas vias praticamente sem
engarrafamentos.
Tudo
convergia para a Baixa. A Mutamba era o núcleo duro de Luanda, a zona mais
sofisticada e cosmopolita, o farol de Angola. Para tirar fotos tipo passe,
fotocopiar documentos, tratar o Registo Criminal, frequentar um curso básico, procurar
emprego… para quase tudo o que a burocracia exigia, ir à Baixa era como a
morte: o dia de fazer a viagem para lá chegava sempre, mais cedo ou mais tarde.
Hoje
o estatuto urbano, administrativo, burocrático e político da Baixa mudou
substancialmente. Outras centralidades diluíram a sua importância mas continua
a ser um destino obrigatório diário para milhares de citadinos. Basta referir
como prova, dia sim e dia não, ou dia sim e dia sim, os engarrafamentos
matinais e vespertinos.
Empresas
e fortes grupos de interesse imobiliário fizeram erguer, com vista para a baía,
sufocando ou destruindo edificações antigas com muita história e estórias para
contar às novas gerações, prédios desenhados em série num atelier qualquer de
arquitectura deste planeta global, sem a mínima absorção da visão de mundo
local.
De
facto, a Baixa está completamente mudada. Os edifícios são tão altos que chega
a ser impossível enxergá-los de baixo ao alto: os novos prédios são “outros”
habitantes da cidade, quais dinossauros espelhados e petrificados apanhados na
vertigem de um fugaz e insanável cataclismo.
A
fauna humana também está mudada. À hora do almoço, além dos vendedores
ambulantes, os rapazes que indicam lugares para estacionar, as zungueiras que
se sentam à sombra dos prédios com as suas mercadorias e das kínguilas
disfarçadas de vendedoras de cartões de saldo de telefone, vejo jovens vestidos
a rigor - fato e gravata - a andarem em grupos em direcção aos locais onde
almoçam. São funcionários de grandes empresas, com ar nitidamente próspero e
seguros de si mesmos.
É
muito raro ver crianças abaixo dos cinco anos no centro da cidade, sinal de que
a maioria das famílias passou a viver nas zonas da periferia. Velhos, muito
menos, sumiram completamente: o centro da cidade está tomado por jovens, uns
desvalidos da sorte, outros nas asas da aparente prosperidade. Maior contraste
não poderia haver.
Deambulando
por aí, na Baixa luandense, entretanto, ainda é possível visionar locais em que
o ontem e o hoje se encontram e convivem pacificamente um ao lado do outro, ou
até mesmo misturados. É o caso da zona dos Correios, em que o velho edifício
público reabilitado mantém perfeitamente a forma antiga ao lado de prédios
novos, modernos.
Daí,
cidadão incógnito entre o prédio da Marinha, também reabilitado, e o Monumento
ao Soldado Desconhecido, olhando para a baía, vêem-nos à lembrança canções
antigas que falam de uma Luanda com ecos festivos a prolongarem-se pela noite e
Ilha adentro, e ressonâncias de velhas e saudosas alegrias no caminho da praia
a confrontarem o tempo, a morte e a própria vida.
Sem comentários:
Enviar um comentário