segunda-feira, 4 de dezembro de 2017

UM PASSEIO PELA BAIXA

Isaquiel Cori
                                                            

Quem como eu gosta de deambular por aí incógnito pela cidade, a apreciar a paisagem urbana e a fauna humana, depara-se com mil e uma cenas ora caricatas, ora dramáticas, ora até mesmo trágicas.
A dinâmica urbana luandense oferece, aos mais atentos, que não se deixam mergulhar inteiramente na urgência do quotidiano, momentos de autêntica revelação. Há dias fui caminhando pelo perímetro da sede da Sonangol, o Monumento ao Soldado Desconhecido, o Museu da Moeda, o Hotel Globo, a sede do Governo Provincial e a Mutamba, à hora do almoço, num desses dias de sol fraco, a cheirar chuva, e um sentimento de nostalgia me foi invadindo, a noção que tinha do tempo recuou para muitos anos atrás e lembrei-me de quando, muito mais moço, vinha à Mutamba.
Naquela altura a viagem a partir do meu Kassequel do Lourenço era feita a pé ou ensanduichado no autocarro “25”, que ia sempre, mas sempre mesmo, atulhado de passageiros. Não éramos tão "evoluídos" semanticamente: muitos de nós referiam-se àqueles meios automotivos como "maximbombos", sinal de que ainda estávamos muito próximos culturalmente das nossas origens rurais.
Ir à Baixa, para nós da periferia, era um acto de suma importância que levava a um ritual de preparação higiênica, ao uso de roupas lavadas e engomadas e de calçados bem limpos e engraxados. Andávamos pelo centro da cidade com o maior cuidado, para evitar ser atropelados pelos carros nas vias praticamente sem engarrafamentos.
Tudo convergia para a Baixa. A Mutamba era o núcleo duro de Luanda, a zona mais sofisticada e cosmopolita, o farol de Angola. Para tirar fotos tipo passe, fotocopiar documentos, tratar o Registo Criminal, frequentar um curso básico, procurar emprego… para quase tudo o que a burocracia exigia, ir à Baixa era como a morte: o dia de fazer a viagem para lá chegava sempre, mais cedo ou mais tarde.
Hoje o estatuto urbano, administrativo, burocrático e político da Baixa mudou substancialmente. Outras centralidades diluíram a sua importância mas continua a ser um destino obrigatório diário para milhares de citadinos. Basta referir como prova, dia sim e dia não, ou dia sim e dia sim, os engarrafamentos matinais e vespertinos.
Empresas e fortes grupos de interesse imobiliário fizeram erguer, com vista para a baía, sufocando ou destruindo edificações antigas com muita história e estórias para contar às novas gerações, prédios desenhados em série num atelier qualquer de arquitectura deste planeta global, sem a mínima absorção da visão de mundo local.
De facto, a Baixa está completamente mudada. Os edifícios são tão altos que chega a ser impossível enxergá-los de baixo ao alto: os novos prédios são “outros” habitantes da cidade, quais dinossauros espelhados e petrificados apanhados na vertigem de um fugaz e insanável cataclismo.
A fauna humana também está mudada. À hora do almoço, além dos vendedores ambulantes, os rapazes que indicam lugares para estacionar, as zungueiras que se sentam à sombra dos prédios com as suas mercadorias e das kínguilas disfarçadas de vendedoras de cartões de saldo de telefone, vejo jovens vestidos a rigor - fato e gravata - a andarem em grupos em direcção aos locais onde almoçam. São funcionários de grandes empresas, com ar nitidamente próspero e seguros de si mesmos.
É muito raro ver crianças abaixo dos cinco anos no centro da cidade, sinal de que a maioria das famílias passou a viver nas zonas da periferia. Velhos, muito menos, sumiram completamente: o centro da cidade está tomado por jovens, uns desvalidos da sorte, outros nas asas da aparente prosperidade. Maior contraste não poderia haver.
Deambulando por aí, na Baixa luandense, entretanto, ainda é possível visionar locais em que o ontem e o hoje se encontram e convivem pacificamente um ao lado do outro, ou até mesmo misturados. É o caso da zona dos Correios, em que o velho edifício público reabilitado mantém perfeitamente a forma antiga ao lado de prédios novos, modernos.
Daí, cidadão incógnito entre o prédio da Marinha, também reabilitado, e o Monumento ao Soldado Desconhecido, olhando para a baía, vêem-nos à lembrança canções antigas que falam de uma Luanda com ecos festivos a prolongarem-se pela noite e Ilha adentro, e ressonâncias de velhas e saudosas alegrias no caminho da praia a confrontarem o tempo, a morte e a própria vida.


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