domingo, 7 de novembro de 2010

Escritor Luandino Vieira: "Alguém passeia em mim"

Estávamos em 2006. Um dos acontecimentos literários mais marcantes daquele ano foi o regresso à publicação de Luandino Vieira, com o romance “O Livro dos Rios” (Editorial Nzila), título primeiro da trilogia “De Rios Velhos e Guerrilheiros”. Encontrei-me com Luandino Vieira em casa do seu confrade e compadre Arnaldo Santos, na zona da Maianga. Tivemos uma longa conversa a dois, com LV, que em algumas ocasiões contava com a intervenção de Arnaldo Santos. Uma boa parte da conversa, que abaixo recupero, foi publicada originariamente em Dezembro de 2006, na primeira edição dos Cadernos ÉME, uma publicação do MPLA (Movimento Popular de Libertação de Angola). Outra parte da conversa, já com maior protagonismo de Arnaldo Santos, está numa cassete algures em minha casa. Mudei de casa há dois anos e, por força das circunstâncias, tenho o meu arquivo fechado e espalhado pela nova moradia. Conto, o mais breve possível, recuperar esta e outras conversas, com outros interlocutores, e publicá-las neste blogue. Passemos, para já, à conversa com Luandino Vieira.

Isaquiel Cori


CADERNOS ÉME – Há quem não viveu nos musseques de Luanda naquele tempo (antes da independência) e a ideia que tem dos musseques é a que é descrita nos livros do Luandino Vieira.
LV – Por isso tenho o cuidado de dizer que nem sempre transmitimos o real, transmitimos às vezes o que sonhámos que era e o sonho do que deveria ser. Os jovens devem fazer essa leitura com a devida cautela. A literatuta tanto se alimenta do que é real como do que é fictício, da sua própria ficção, do sonho dos escritores. Olhando para trás não há que renegar esse traço, essas notas que estão no meu trabalho literário. Continua a haver esse passado do modo como o escrevi há muitos anos.
CADERNOS ÉME – O Luandino está cá em Angola já para ficar?
LV – Ainda não estou para ficar porque estive fora estes anos todos por motivos rigorosamente familiares e particulares e que não têm nada a ver com outra coisa que não seja isso. Como deve calcular, nós acumulámos muita coisa. Sobretudo os escritores acumulam papéis a mais, memórias a mais... Esta oportunidade de vir foi ditada por compromissos de lançar os livros ao mesmo tempo, eu e o meu compadre Arnaldo Santos; Kinaxixi e Makulusu... E, claro, para aproveitar a ocasião para ver como é que devo arrumar, o que é que devo arrumar para trazer. Se não podemos escolher o sítio onde nascemos podemos escolher, ao menos algumas vezes, o sítio aonde queremos morrer.
CADERNOS ÉME – Acaba de dizer que esteve fora de Angola estes anos todos por razões estrictamente familiares e particulares. Será então escusado perguntar-lhe das circunstâncias que o levaram a sair de Angola em 1992?
LV – Em 1992, quando recomeçou a guerra civil, naqueles termos, eu já não tinha nenhum cargo, nenhum compromisso; e foi-me dada uma bolsa para criação literária, de dois anos. Recebi a bolsa e fui para Portugal para pesquisar e para tentar escrever. Não consegui escrever naquele tempo e entretanto comprometi-me com a minha mãe a ficar com ela até aos seus últimos dias. E foi o que sucedeu.
CADERNOS ÉME – Constou-me que chegou a rasgar (ou a queimar) um romance que já tinha pronto.
LV – Eu ainda trabalho à moda antiga. Não tenho computador e escrevo à mão. Não sei guardar arquivos e, portanto, só a minha memória é o meu arquivo. Depois de escrever achei que o melhor era queimar; às vezes é melhor começar tudo de novo do que tentar emendar. Às vezes o pano onde a gente quer pôr o remendo já não aguenta o remendo.

Razões da recusa do Prémio Camões

CADERNOS ÉME – Tem dito repetidamente, quando perguntado, que negou o Prémio Camões por razões pessoais e íntimas. Será descabido supôr que essa negação terá também alguma coisa a ver com o escândalo que resultou da atribuição do Prémio Motta Veiga ao seu livro “Luuanda”, em 1972, com o governo colonial a dissolver a instituição responsável pelo prémio?
LV – Não tem nenhuma relação com os prémios anteriores, nem com o modo como existe o Prémio Camões.
CADERNOS ÉME – A sua recusa não significa então uma negação do Prémio Camões enquanto instituição?
LV – O Prémio Camões é uma boa instituição. Eu não conheço em pormenores os regulamentos e a filosofia do prémio mas sei que é um prémio para os escritores que enaltecem ou desenvolvem a língua portuguesa, para escritores de todos os países que utilizam a língua portuguesa. Neguei-o por razões pessoais e íntimas. A última vez que escrevi e publiquei, não quer dizer que seja a última vez que escrevi, foi em 1972. De 1972 a 2006 quantos anos se passaram? Se se meditar um pouco sobre isso, os leitores actualizados da literatura, os que lêem e vão seguindo o movimento editorial, os que conhecem outros escritores, outras obras dos antigos escritores, novas obras dos novos escritores, o surgimento de novos talentos, de novas correntes literárias, haveriam por exemplo de perguntar (não quero dizer que seja essa a razão, mas eu se fosse leitor perguntava) como é que não sendo o prémio de carreira, porquê que atribuem um prémio a um escritor que está morto? O Prémio Camões não é um prémio póstumo. E um escritor que fica tanto tempo sem publicar... Poucas pessoas sabiam que eu estava vivo, mesmo fisicamente. Estou convencido que muita gente dizia: “Ele deve ter morrido, nunca mais o vimos, nunca mais o ouvimos”. Isto é apenas um exemplo. As minhas razões foram rigorosamente íntimas e pessoais. Não têm nada a ver com a instituição do prémio, nem como o prémio é atribuído ou não atribuído. Têm a ver com o modo como eu vejo a minha situação de escritor dentro do sistema literário em língua portuguesa, o meu papel e o meu lugar nesse sistema literário.
Arnaldo Santos – Contra a vontade do entrevistador atrevo-me a dizer que não há escritores mortos como o Luandino estava aqui a defender. Porque os escritores, como Agostinho Neto, Viriato Cruz, etc., que até fisicamente estão mortos, continuam muito vivos. É um argumento que eu tenho contra o meu compadre.
LV – Até podemos entrar em polémica. A polémica seria sobre se aquilo que se chama um escritor e que é definido por um nome se refere à pessoa ou às obras. É evidente que essas obras foram produzidas por alguém. Mas no trabalho literário o próprio escritor, depois, às vezes pergunta “quem é que em mim escreveu isto?”
CADERNOS ÉME – Defende uma perspectiva mística do acto de escrever?
LV – Não é mística, porque sucede. A gente escreve e mais tarde lê e diz assim, “mas eu escrevi isto? Fui eu? Alguém em mim escreveu isto?”
CADERNOS ÉME – Ou: “Terei sido possuído por...”
LV – Não, não é isso. Penso que não é a possessão, nesse sentido. Mas a nossa identidade pessoal é uma coisa muito complexa e é feita de muitos dados. O nosso ADN literário, digamos assim, inclui tudo quanto a gente leu e tudo quanto a gente sonhou e quanto a gente ouviu. Nenhum de nós sabe o que é que está arquivado aqui nessas pastas do nosso cérebro. E muitas vezes nós não temos a mínima percepção de que isto estava lá guardado e damo-nos conta de que estava porque apareceu na escrita. O Arnaldo está aqui e sabe que se começamos um texto da maneira errada, isto é, se conduzir é com o volante à esquerda e a gente começa a conduzir com o volante à direita, temos que parar e mudar de trânsito. Isto é, rasgar e começar de novo; por aquele caminho não vamos lá. Quem é que nos diz que por aquele caminho não vamos lá? A nossa identidade literária determina muitas vezes muitos textos dos quais não tínhamos sequer a percepção de que existia essa capacidade em nós. Ou essa incapacidade, quando falhamos: “porquê que falhei se tinha tudo tão bem pensado na minha cabeça?”
CADERNOS ÉME – Dirijo-me ao Arnaldo Santos. Concorda com o Luandino?
AS – Você já notou que nós não temos as mesmas ideias sobre este assunto. Porque eu não considerava, de forma nenhuma, o Luandino um escritor morto. E mais ainda: eu tinha boas razões para admitir que o júri, que era formado por gente, à partida, inteligente, sabedora, etc., quando pegou na obra dele, não estava por estas considerações, com as quais eu concordo plenamente, para avaliar a obra do escritor Luandino Vieira, para lhe atribuir o Prémio Camões. O júri foi mesmo buscar essa obra, independentemente do autor se ter arquivado lá no convento de Sampaio. Eu não considerava de forma nenhuma o Luandino um escritor morto. Eu sabia que o escritor continuava vivo, movia-se ou vivia como escritor, portava-se como escritor, eu convivia com ele como escritor, falava e inclusivamente mandava os meus textos a ele como escritor. Logo, o escritor estava aí. Ele só precisava era sacudir aquela preguiça que normalmente os escritores costumam passar. Ele sacudiu e temos aí um escritor vivo para mais livros, muitos mais livros.

Redescoberta da dimensão ecológica

CADERNOS ÉME – Luandino: é verdade que durante os anos todos em que ficou sem publicar fez como que uma longa viagem interior e vivia como um eremita? Fez um auto-exílio, na tentativa de, se calhar, recuperar motivação para a escrita?
LV – Não, não foi na tentativa de recuperar motivação para a escrita. Ao longo destes anos fui sempre escrevendo. Pelo menos guardando na minha memória temas e mesmo frases e palavras. Passei a meditar sobre a literatura, sobre o meu trabalho anterior, sobre a realidade que tinha dado origem ao meu trabalho anterior, sobre a minha participação modesta nessa realidade e sobre os elementos fundamentais dessa realidade; portanto, era uma meditação mais sobre a minha identidade. De modo que ao longo destes anos todos o isolamento físico ajudou... O isolamento físico é devido também ao meu modo de estar no mundo. Não sou pessoa de muita confusão. Mas isso permitiu-me ver uma parte do meu relacionamento com a nossa realidade que eu não tinha aprofundado muito mas que em todos os livros já estava. Eu voltei ao Domingos Xavier (“A Vida Verdadeira de Domingos Xavier”, 1974) e obviamente o aspecto militante do livro... li e segui o aspecto humano dos personagens, sendo personagens que foram criados sobre figuras que eu conheci e passaram aqueles dramas... Por exemplo, num capítulo, um dos personagens, já não me lembro quem, olha para o rio Kwanza... eu me dei conta de que logo ali, num romance que não tinha nenhuma intenção de tocar na nossa natureza, que é afinal o nosso grande aquário onde todos nós angolanos nos movemos, já estava lá essa preocupação com a natureza, com o rio Kwanza. No Domingos Xavier já estava lá o Kwanza!... E fui descobrir que aos oito/nove anos eu tinha feito uma viagem pelo kwanza acima, num daqueles barcos que faziam ainda cabotagem para Calumbo... coisa que no meu subconsciente estava adormecida, tal e qual como andei na escola ou ia, pela mão do meu pai, ao centro espírita, como ia aos Coqueiros, ao Clube Atlético de Luanda... coisas que não tendo sido valorizadas estavam na génese dos quadros em que se movia o meu trabalho literário, a minha ficção literária. Isso fez-me compreender que a presença da terra angolana (rios, montanhas, pássaros) – agora aqui com o meu compadre, aqui na casa dele, a gente a primeira coisa que faz é identificar quem está a cantar na mulembeira; aí um “dikole” farta-se de cantar, um “mbolo quinhentos” canta, canta, canta; os “plim-plau” não saem daqui... – então isso fez-me reflectir: ... “Afinal eu tenho pecado, tenho reduzido a minha maneira de ver a nossa realidade porque a presença avassaladora da terra e esses valores não têm sido reflectidos”. Agora, isso que chamam exílio, auto-exílio, não existe. Eu já disse isto e posso repetir: há uma certa tendência da comunicação social para emoldurar as atitudes das pessoas. E então em relação aos escritores, aos artistas, aos músicos, essa moldura passa também por alguns preconceitos. Vamos ser claros.
CADERNOS ÉME – O auto-exílio pode acontecer em qualquer lado, não implica necessariamente uma viagem de um lado para o outro.
LV – Sim. E podia estar aqui muito mais exilado do que eu estava lá, em Portugal. Eu nunca deixei de estar em Angola. Devo fazer esta precisão: têm que nos dar, a nós também escritores e artistas, a possibilidade, este privilégio de sermos também humanos e de podermos ficar num sítio qualquer só porque procuramos trabalho, porque há o emprego, porque gostamos de viver ali, porque a nossa família nos pede para estar... O escritor, o músico, o artista, se não está é porque exilou-se, auto-exilou-se... Exílio político? Não está de acordo? Não é nada disso. Eu sinto necessidade de ir fazendo algumas introspecções porque até os combóios que andam em duas linhas paralelas, em certa altura tem que ter agulheiros, tem agulhas para desviar... Se queremos viver conscientemente temos que ir de vez em quando, não digo permanentemente, ir aferindo a nossa própria actividade, a ver se está de acordo com aquilo que nós somos e sentimos sinceramente ou se nos estamos a desviar dessa nossa matriz que é a nossa força interior. Pode soar a desculpa, mas não é.
CADERNOS ÉME – “O Livro dos Rios” é assim a redescoberta do tema da Natureza...
LV – É a assumpção. Assumir inteiramente que do nosso real a Natureza tem tanta força como a acção dos homens. Mais: porque os homens reflectem no seio dessa Natureza. Só que nós, os humanos, somos muito vaidosos e não estamos atentos. Passamos por uma árvore e é uma árvore... metemos a moto-serra e a cortamos. Chegamos a um sítio qualquer e não vemos que sem este sítio nós não teríamos a nossa identidade. Sobretudo nós, os urbanos, os citadinos. Eu gosto de estar aqui, na casa do meu compadre, porque a mulembeira está ali, e o sape-sapeiro... hoje vamos tentar podar um pau de maçã da Índia que está com uma doença, a ver se ainda a salvamos. Isto faz parte da nossa identidade. E este “O Livro dos Rios” e os outros dois que se seguem, tratam fundamentalmente disto: a relação do homem angolano com a terra angolana, naquilo que a terra define e ajuda a definir, naquilo em que o homem tem consciência. Isso traz um grande orgulho. Penso que se alguma coisa de novo eu pude introduzir nesse primeiro livro já não é só o orgulho de sermos angolanos, de termos as conquistas que fizémos em 40 anos de luta... É também esse orgulho da terra, dos rios... A angolanidade é um todo.
Ontem, falando com alguém que me estava a tentar dar umas indicações sobre a questão dos diamantes no nosso país, quando é que aparecem referidos como riqueza, ele me relatou um facto relativo ao século XVII. E falámos de Santa Maria da Matamba, da igreja onde se passaram as exéquias de Njinga Mbande ou do momento em que se lançou a primeira pedra dessa igreja... A palavra Matamba, que desperta logo o nosso imaginário histórico, lá onde a Njinga ficou os últimos anos da sua longa e combatente vida, desperta-nos também para aquela região. E aí a gente caminha e vê Kalandula, caminha e vê o Lucala... e não pode deixar de pensar nas Pedras de Pungu-a-Ndongo... Portanto, toda a história angolana é a relação, também, dos homens angolanos com a sua terra e a sua constante luta com as forças de conquista e ocupação. É também uma história de lugares. E eu sou muito sensível a isso. Esse quadro da natureza passou a ser muito mais importante do que, inconscientemente, já era... E uma história como a da mafumeira do Kinaxixi, que nós vimos em criança, presenciámos o derrube, o corte daquela árvore... a história do corte daquela árvore pode ser vista do ponto vista simbólico, mitológico, religioso, no quadro das religiões tradicionais, dos espíritos que aí moravam. E pode ser vista como um choque entre a modernidade e o passado que não queria que se mexesse ali... mas era preciso rasgar aquilo, asfaltar, criar a urbe, avançar... o famoso progresso, não é, o crescimento ou o desenvolvimento. Tudo pode ser narrado sem esse facto, sem a lagoa do Kinaxixi, sem a mafumeira, sem os espíritos... mas acho que será um relato mais pobre do que se relatarmos com todas aquelas nuances. Mas sobre o Kinaxixi este senhor [referindo-se ao escritor Arnaldo Santos] pode me corrigir, ele gosta de me corrigir, ele que também foi “apanhado” pela mafumeira. Eu fui apanhado pelo galho da mafumeira, na chuva. Se era um sinal, se não era um sinal, não sei.

Em termos de militância o coração está antes do cartão

CADERNOS ÉME – No início desta conversa perguntei-lhe se podia tratá-lo por “Camarada”...
LV – Com certeza.
CADERNOS ÉME – Mesmo em Portugal, nesses últimos 14 anos, foi acompanhando a evolução política do país? Ou reactualizou-se agora, no seu regresso?
LV – Eu acompanho sempre. Claro que não é no pormenor. A questão política do nosso país já não se vê só nas questões de pormenor, nem nas questões tácticas ou circunstanciais. Obviamente que estando longe, não podendo ver o dia-a-dia, eu vou tendo conhecimento do que foram as opções estratégicas; e também não tenho formação política nem conhecimentos para dizer se foram certas ou erradas, naquele momento. Só posso ver é o resultado, como cidadão e como “camarada”. Porque isto de ser do MPLA, primeiro não é o cartão. Primeiro é o coração, depois é que é o cartão. O cartão a gente perde; rasgam-nos ou caçumbulam-nos. Mas o coração, este, ninguém nos tira.
A questão estratégica deve ser medida por resultados. E quando, agora, no dia 11 [de Novembro] eu fui posto perante o resultado... Se houvesse um só resultado já era muito bom para uma geração.
Nós tivémos a sorte histórica de poder participar num momento absolutamente ímpar da nossa história, que foi a luta de libertação nacional, que deu lugar à independência política. A independência política está aí. Nunca esteve em causa. Outra coisa: a integridade territorial. Quando agora nós percebemos que todos os planos, desde há muito anos, era se para nos dominarem fosse preciso partiam-nos aos bocados... Ninguém conseguiu partir a nossa Nação, o nosso território. Estão aí as nossas fronteiras... E a despeito, e sobretudo devido a multiplicidade cultural e sociológica do nosso país, a unidade nacional está aí. Ao fim de 31 anos de independência, diga-me um outro país que se pode gabar desses três factos que são estruturantes e estratégicos? Não são muitos.
Os quatro anos de paz traduzem-se no vertiginoso crescer desta cidade. E eu espero que quando visitar Benguela, Lubango, Cabinda e outros lugares, encontre esse mesmo fervilhar. É certo que há muitos defeitos... Mas eu me lembro dum mais velho que me ensinou, no campo de concentração, uma coisa: quando passa um elefante, o caçador não pode estar a olhar para as pulgas. Porque o elefante leva lama, leva pulgas, tem a pele rasgada, carrega porcaria... você vai dizer “ai, o elefante está cheio de porcaria!”... Está a passar um elefante e você está a olhar para as pulgas?
CADERNOS ÉME – Foi propositado fazer coincidir o lançamento do seu livro com o dia da Independência do país?
LV – Quando me perguntaram qual era a data que queria para o lançamento, eu não pensei duas vezes. Se tivesse pensado teria percebido que no dia 11 há coisas muito, muito mais importantes do que o lançamento de dois livros de dois velhos escritores. Mas era uma parte daquele orgulho. E sobretudo porque eu pedi apenas para que no lançamento estivessem meus restados camaradas do campo de concentração do Tarrafal, a quem o livro é dedicado. Foi só o entusiasmo. Depois a realidade obrigou a corrigir. [Inicialmente previsto para o dia 11 de Novembro, o acto formal de lançamento acabou por acontecer no dia 14].

Participação na luta pela independência nacional

CADERNOS ÉME - Recuemos no tempo. Pode falar-nos das circunstâncias que o levaram ao campo de concentração do Tarrafal?
LV – Eu acho que isso individualmente não tem importância, porque nós tivémos o privilégio histórico, a nossa geração, de estar naquele momento histórico em que as condições se reuniram para que a luta pela libertação nacional, pela independência política, tivesse sucesso.
CADERNOS ÉME – A questão do mérito coloca-se porque apesar das condições históricas, as pessoas tiveram que agir em determinado sentido...
LV – Pois, mas houve sempre resistência popular ao invasor, houve a partir do momento em que começou a haver intelectualidade, a introdução da imprensa... isso você sabe melhor do que eu. Houve vários surtos. O nacionalismo angolano não começou no pós-segunda guerra mundial, tem raízes pelos séculos fora... se não quisermos ver o nacionalismo duma maneira estreita, como uma ideologia. Não. Esse sentimento, esse movimento que resultava do choque e das contradições das forças, entre invasores e invadidos, ocupados e ocupantes, os que colaboravam e os que não colaboravam, os reinos e os que vinham... isso se foi formando, se foi caldeando o nosso país.
Então, nós tivémos o privilégio de estar naquele momento histórico e participámos. Participações individuais? Foram sempre participações de grupos, de tal maneira que, por exemplo em 1959 (para pôrmos a coisa já naquele período em que a polícia política portuguesa, a PIDE, já estava instalada e começou a actuar organizadamente sobre as ideias e os movimentos nacionalistas...) todos os dias saíam panfletos e não eram assinados pela mesma organização. Uma pessoa podia às vezes copiar a ideia que saía num panfleto, voltar a glosar esta ideia, que já era assinada por outro dos movimentos que proliferavam: MINA, MIA, ELA, PLUA, PCA... que sei eu?
Foi essa a época que veio da luta pela difusão das ideias nacionalistas, pela organização e contra a repressão, que depois deu, como resultado, uma maior eficácia e a possibilidade do MPLA dirigir essas forças todas que actuavam em seu nome, com o seu programa (muitas vezes não lido, só de ouvido: sabia-se que o programa mínimo era este, o programa maior era aquele...). Para resumir, o camarada Mendes de Carvalho foi o que até hoje, como é um escritor, é o nosso mais velho e o nosso mestre em muita coisa, quase tudo, sintetizou melhor o MPLA. Ele disse que o MPLA é um rio de muitas águas. Isso é o que faz a força do MPLA. Nós tivémos a sorte de estar ou num ribeiro, ou num afluente da margem esquerda ou num afluente da margem direita, às vezes estávamos só no muije, outros estavam numa pequena lagoa... todas essas águas quando se juntaram foram imparáveis. Hoje parece que isso é reconhecido.
CADERNOS ÉME – O Luandino continua modesto. Na verdade ficou preso quantos anos?
LV – Da primeira vez que fui preso, no Processo dos 50, tiraram-me porque eu era muito miúdo e, (penso eu que o juiz interpretou, para o despacho de pronúncia final, orientações superiores) não convinha misturar sobretudo os brancos que tinham uma boa situação... como é que uma pessoa que é gerente de uma empresa, tem dinheiro, tem privilégios... “se mete nisto?”, como eles diziam. Depois, em 1961, fui condenado a 14 anos e cumpri 12 em prisão; depois pegaram em mim e puseram-me em Lisboa com residência vigiada. Tinha uma caderneta e cada vez que queria me deslocar tinha de ir à PIDE, eles punham lá um carimbo... “segue para Santarém”... Ia lá visitar o meu pai... quando lá chegava a primeira coisa a fazer, antes de ver o meu pai, era me apresentar à PIDE para carimbarem a caderneta... Só depois é que, vigiado obviamente, podia visitar a família.
Temos que render homenagem é à memória dos milhares e milhares de angolanos que morreram, que deram o seu sangue, a sua vida, para a conquista da independência política. Nós que passamos estes anos todos de cativeiro, temos o direito a dizer isso com a modéstia e ao mesmo tempo o orgulho que temos nisso. Mas o nosso sofrimento (pelo menos falo pessoalmente) comparado com o das grandes massas... não, não tem comparação possível. Não é ser modesto... Trinta e um anos depois a gente já pode ver qual é realmente o nosso lugar. É um pequeno lugar, está ali, não é mais do que isso.

Uma torrente de escrita chamada “Nós, os do Makulusu”

CADERNOS ÉME – Escreveu “Nós, os do Makulusu” em 15 dias. Continua com este ritmo frenético de escrita?
LV – Não. Em relação ao “Nós, os do Makulusu” até hoje não compreendo... Eu não sou uma pessoa muito mística, ao contrário aqui do meu compadre, que tem a abertura de espírito suficiente para enquadrar desde o misticismo ao realismo mais científico, só comprovado por experiência... É verdade que o ambiente cultural da nossa terra e o ambiente natural, também um bocado mágico, dá-nos essa percepção de que nem tudo na realidade é perceptível apenas com os instrumentos científicos, da razão. Há coisas que é melhor desconfiar. Desconfiar é uma atitude correcta. Enquanto não tivermos a certeza desconfiámos. Alguém passeia em nós.
Nós atravessávamos no campo de concentração um período muito, muito difícil. As notícias que nos chegavam... Não sei como é que nos chegou a notícia da morte do Hoji-ya-Henda... e também d’alguns problemas que houve na Checoslováquia... a morte do Che Guevara... Mas sobretudo internamente nós passávamos um período de muito mais repressão, muitas limitações... E foi também um período muito difícil para mim, pessoalmente, estive muitos meses sem notícias da família... Então sucedeu que este livro [“Nós, os do Makulusu” ] foi escrito em 7 dias.
Nós saíamos da caserna para dar umas voltas, para lavar a roupa, para apanhar sol... o chamado recreio... Eu sentava-me no chão, debaixo de uma grande acácia, no meio do campo, e fui escrevendo. O romance foi escrito assim, como se eu estivesse, e agora vou arriscar, possuído por um espírito. Alguém me diz que sim, que é assim, porque foi nessa mesma árvore onde o Mendes de Carvalho gravou à canivete uma frase, que eu já não lembro e que ficou lá. E ambos sofremos muito, anos depois, no dia em que visitámos de novo aquele campo e vimos que uma moto-serra tinha cortado aquela árvore. Outras árvores ficaram, mas aquela tinha sido cortada. Fazendo ficção, estou a ler sinais que não existem. Mas a verdade é que estas coisas se passaram. Como é que nós, por exemplo um mais velho como o Mendes de Carvalho ou eu que também já vou a caminho de ser um kota, como é que nós vamos ler isso? Porquê que cortaram precisamente aquela árvore? Ah, é o acaso... Outros dizem, ah, isso é um milagre... Há muitas coisas na vida para as quais a curta vida humana, quer individual quer às vezes grandes colectivos, ainda não pode encontrar resposta. A resposta é mais estratégica, precisa às vezes de séculos. Ainda há pouco tempo na Europa toda a gente defendia que a terra estava quieta e que o sol é que girava à volta da terra. Hoje sabe-se, cientificamente, que é o contrário.
CADERNOS ÉME – No quadro global da sua obra, qual é o livro que mais aprecia? Incluindo “O Livro dos Rios”.
LV – É difícil dizer. Não é a velha e estafada imagem de que todos são nossos filhos e que todo o pai ama a todos por igual. Todos eles, quando os publiquei, publiquei conscientemente. Tenho a noção do que cada um deles representa ou pode ter de valimento. Mas se me disserem assim: só podemos editar um livro... Em homenagem a esse espírito que naquele momento deve ter habitado em mim (e tenho pena que se tenha ido embora depois) eu escolheria mesmo o “Nós, os do Makulusu”.
CADERNOS ÉME – Acredito que tenha uma ideia geral daquilo que é a literatura angolana hoje. O que acha dela?
LV – Nenhum de nós pode fazer futurologia. O hoje da literatura angolana conheço mal, porque em Portugal não chegam algumas obras, pelos motivos que todos sabemos. Conhecendo mal era muito atrevimento estar a fazer um balanço. A única coisa que eu posso dizer, é tentando também ver as coisas em termos estratégicos, fazendo a leitura do passado, tentando tirar ilações. E se no fim do século XIX nos debruçássemos ou estivéssemos a ver a literatura que era produzida naquele tempo, nomeadamente a que era publicada nos jornais, se se pusesse essa questão aos homens do fim do século XIX e princípios do século XX, àquela geração, será que eles poderiam por exemplo prever a geração dos Novos Intelectuais de Angola, o movimento da Mensagem... seguramente que não. Retrospectivamente, nós podemos agora encontrar uma ligação entre a literatura feita em nome de ideias proto-nacionalistas, vamos utilizar o termo, e a que depois apareceu já com ideias mais definidas, mais nacionalistas claras. Mas é lendo, fazendo a leitura para trás. E quando o movimento da Mensagem produziu a [revista] Mensagem ou quando o Mário [de Andrade] e o Francisco José Tenreiro publicaram o Caderno de Poesia Negra de Expressão Portuguesa podia prever-se, por exemplo, o que foi a actividade de 1975 a 1980, aquelas tiragens de 15 mil, 25 mil exemplares, os livros a circularem a preço de maço de tabaco, as FAPLA a distribuir quase com um carregador [de munições] um livro... Podia-se prever? Era muito difícil. O que une isso tudo é que há uma linha de continuidade no modo como se vê a relação do homem angolano com a terra e os seus deveres para com a realidade. Em todos os escritos há uma linha de continuidade que pode ser simplesmente reduzida a isto: no meu entendimento o escritor angolano sempre foi comprometido civicamente. Teve sempre uma noção de que a sua arte é a literatura, que é a expressão dum sistema um pouco autônomo, mas o cidadão nunca fica de parte; há um mínimo de participação que resulta dessa consciência cívica.
CADERNOS ÉME – Essa participação cívica tem necessariamente uma expressão política?
LV – Às vezes tem expressão política e até militar. Houve escritores que foram para a guerrilha... A participação cívica, como cidadãos, ficou na maneira como os escritores angolanos vêem a sua literatura. E penso que esse traço também define o nosso sistema literário nacional. Há críticos que dizem “ah, estes são poemas militantes”. Está bem. Muitas vezes a qualidade literária é aferida por isso mas outras vezes é essa característica que dá a grande qualidade literária. A gente pode dizer que o poema do António Jacinto, “O grande desafio”, é um poema absolutamente político; é radicalmente político... E é, em simultâneo, radicamente literário. Estas coisas não são muito simples, nem se pode lançar o anátema de que “ah, é militante, está a fazer poesia militante, logo, não presta”. Ou ao contrário, “ah, não é militante, logo, é bom”. Em última instância a obra publicada é que responde, não é o homem, sendo ou não militante. Agora, o homem que faz a obra está lá na obra, quer seja como presença quer seja como ausência. E o responsável último é ele.

Quando se está diante da globalização…

CADERNOS ÉME – Nós estamos num mundo cada vez mais globalizado. Como é que se vê, a si e à sua obra, neste mundo globalizado?
LV – Eu vejo a globalização como esse grande movimento de aproximação das actividades económicas em todo o mundo, o que, por arrasto, leva também a aspectos sociais e culturais. Penso que me está a dirigir a pergunta no sentido de eu, talvez, estabelecer a minha relação com as novas formas de informação e comunicação. Eu confesso que quando começou esse grande movimento, fiz uma má avaliação. Não do alcance, porque se percebeu logo que essa revolução tecnológia ia trazer uma nova revolução no modo de entender e de nos relacionarmos com o mundo. Fiz uma má avaliação do tempo. Pensei para comigo, “bom, quando isso chegar a ser um dado fundamental no relacionamento entre as pessoas e, no nosso caso, no relacionamento das pessoas que vivem no campo da criação ou das ideias ou da troca de ideias ou do conhecimento ou da informação... quando isso chegar eu já cá não estou”. Pensava que levaria algum tempo mais e afinal sou surpreendido, por exemplo em 2005, com essa realidade de ser um excluído, um info-excluído.
CADERNOS ÉME – Pode remediar isso...
LV – Pode ser remediado. As tecnologias são humanas, bem como o modo de as utilizar. Portanto, não é nada que qualquer cidadão, desde que queira, não possa adquirir as competências mínimas para também meter o seu fiozinho na rede e ficar ligado a todos os outros cidadãos, individual ou colectivamente. Disso eu tenho a perfeita noção. Eu fiz uma avaliação do tempo e então fiquei descansado com o meu método de trabalho da canetinha e apontamento e confiando na minha memória. Agora dou-me conta que isso é insuficiente como modo de estar ligado, de estar informado e de estar a participar tanto quanto mais não seja tendo conhecimento do que se passa. Ainda não tomei a decisão de me “incluir”, por preguiça. É que um infeliz traço do meu carácter é ser muito preguiçoso; e isso é capaz de dar muito trabalho…
CADERNOS ÉME – Querendo ou não, a informação sobre o Luandino e a sua obra está muito presente na Internet.
LV – O meu neto e o meu filho e outras pessoas ficam muito irritados quando eu digo “printa e mete no correio”, quando afinal é só fazer um clique para enviar ou reenviar [Risos].
CADERNOS ÉME – Como é que tem sido a sua relação com as outras artes angolanas? Essa fruição, essa apreciação das outras artes acrescenta alguma coisa à sua criação literária?
LV – Até 1992 eu tive uma relação muito intensa com as outras áreas da criação artística. Eu era inclusive membro da UNAP [União Nacional dos Artistas Plásticos]. Desde criança que eu gosto da boa música.
CADERNOS ÉME – O que é que considera “boa música”?
LV – Bom... Música que é feita com algum conhecimento técnico e com sinceridade. Por exemplo oiço sempre com muita atenção a música tradicional, a música popular, sobretudo o cancioneiro urbano. Com a pintura... sou um desenhador e pintor frustrado. Houve uma altura em que na UNAP me incluíram nos “pioneiros da gravura”... Fiz uns linóleos no tempo em que nos multiplicávamos com muitos pseudónimos para ocupar o lugar nos jornais, para dar a ideia de que éramos muitos, para a PIDE ficar baralhada... eu era o Luandino, o José Muimbo, o Zé Graça... A gente ia multiplicando também as expressões, para baralhar a polícia.
Sou apreciador, pouco crítico, de jazz. O Gegê Belo não gosta que eu diga isto, mas eu gosto de todo o jazz, sobretudo dos priomórdios, do período da formação, das influências, quando vêem as canções de trabalho mais os blues...
Mantive sempre ligações, por exemplo com o Ole, o Kidá e os jovens que estavam, em pintura, a estudar em Portugal, o Vitó (o filho do Viteix)... Pude me dar conta de que para além da manutenção de uma linha que se vê em quase todos, de expressão artística baseada não só em temas mas também em figurações populares e uma coisa interessante que era uma certa expressão surrealista, sobretudo em alguns pintores dos anos ’90, já não me lembro de nomes, acho que se fez um bom caminho nas artes plásticas.
Na música houve uma multiplicidade de estilos e a entrada do conceito de fusão e a tal globalização, que faz com que se façam descargas de tudo na Net e se misture... Mas não há dúvida que a música sempre foi um sector de grande vitalidade. Quanto ao teatro não tenho absolutamente nada a dizer, já que não tenho acompanhado o seu movimento.
No cômputo geral, a actividade artística e criativa acompanha o desenvolvimento do país. Umas vezes com uma certa perplexidade, à procura de caminhos; outras já com a consciência de qual é o caminho da afirmação. Acho que as artes também vão neste movimento de crescimento e de irrupção das forças que estavam contidas pela guerra.

terça-feira, 7 de setembro de 2010

Pessoas que vivem com o HIV em Angola (2): "FICAM ADMIRADOS COM A MINHA ALEGRIA DE VIVER"

Ana Maria Gastão, que vive com o HIV, é uma mulher que encara as suas adversidades de frente, está sempre pronta a encontrar formas de as resolver ou contornar. “Desde que comecei a trabalhar na Acção Humana (AH) a minha vida mudou, melhorou muito. Passei a ir às consultas médicas e aos poucos fui recuperando a minha saúde”.

É ela própria quem caracteriza a sua vida antes de trabalhar para a AH: “a minha vida era um inferno. Ficava muito doente e não conseguia tomar conta dos meus filhos. Eles nem sequer conseguiam ir à escola”.
Na altura ela vivia, com os filhos, no bairro Praia do Bispo, em Luanda, na casa de um tio. “Eu não trabalhava, não fazia nada”, revela. “Os meus irmãos vivem na Lunda-Norte, na cidade do Dundo. Vim a Luanda porque a minha filha era muito doentinha. Mas depois eu própria comecei a adoecer. Já não regressei à Lunda-Norte. Estou em Luanda há seis anos”.
Ela encontrou na AH o amparo que necessitava para estabilizar e mesmo dar um novo rumo à sua vida. Para além do salário, recebe apoio em medicamentos para si e os filhos.
Sem subvalorizar o trabalho e o salário que recebe, Ana Gastão acredita que o que mais a compensa na AH é pôr a sua experiência de vida ao serviço das pessoas que vivem com o HIV e enfrentam, sem forças, o estigma, a discriminação e o abandono da sociedade, seja no local de trabalho, na vizinhança e, mais doloroso ainda, na própria família.
“Tento amparar e acompanhar pessoas que vivem com o HIV. Vou com elas aos hospitais, às maternidades”…
Ana Gastão conta com a sua experiência pessoal, alicerçada em métodos que ganhou ao longo desses anos todos, nas várias acções de formação em que teve o privilégio de participar sob os auspícios da AH. O seu método de trabalho baseia-se no pragmatismo. “O meu método de trabalho consiste em ir ao hospital e aproximar-me, conversando com as pessoas que, visivelmente, estão muito afectadas e abaladas pela doença. Quando ficam a saber do seu estado de infecção pelo HIV muitas pessoas põem-se a chorar, a gritar, a fazer escândalo. Têm dificuldade de encarar a sua nova realidade. Pergunto o que têm e acabo por dizer que eu própria vivo com o HIV. Assim cria-se uma maior confiança e abertura. Estabelece-se uma maior comunhão de interesses”.
Ana Gastão tem uma agenda, onde anota os compromissos com os seus assistidos. “Se tiver que levar alguém aos hospital, vou muito cedo à casa dela, apanhamos juntos o táxi. Nos casos em que o paciente não está em condições de andar pelos próprios pés, requisito uma viatura da AH”.
Ana Gastão acompanha todo o processo de consulta, a começar pelo contacto com as catalogadoras, na recepção do hospital. Os doentes mais graves fazem as consultas no Hospital Esperança.

Laços de amizade

Uma das coisas que mais deixam Ana Gastão gratificada e a fazem continuar o seu trabalho de activismo em prol dos portadores de HIV e doentes de Sida são os laços que se estabelecem com os assistidos. Mais do que solidariedade, são laços de amizade e amor. “Já tive vários casos que me marcaram muito. As pessoas quando recebem a nossa ajuda ficam bastante gratas. É uma gratidão pura, que vem do fundo do coração. É que nós surgimos na vida delas no momento em que elas mais precisam de ajuda, no momento em que elas estão mais debilitadas no corpo e na mente. Quando se encontram connosco, na rua, agradecem e apontam-nos a outras pessoas, dizendo que fomos nós que lhes salvámos”.
Actualmente Ana Gastão faz o acompanhamento de seis crianças e cinco adultos. “No caso das crianças, se a mãe estiver em crise, eu própria levo-a à consulta. Ou se a mãe estiver a sentir-se cansada, encorajo-a, dou-lhe forças para não se deixar abater. As crianças chamam-me tia ou mesmo mamã”.
Ana Maria Gastão considera o estigma como um grande problema, ainda por superar. “Há famílias que abandonam os seus doentes de Sida ou então, pura e simplesmente, não aceitam encarar a realidade da doença. É complicado”, desabafa.
Ana Maria Gastão é uma mulher expedita, expansiva, simpática, à vontade. Essa maneira de ser a ajudou a encarar e superar a fase menos boa da sua vida. “O trabalho do activismo deu-me uma nova inspiração para viver. Às vezes, quando dizemos aos nossos assistidos que também vivemos com o HIV eles não acreditam, ficam admirados com a nossa alegria de viver”.
E quando as pessoas lhe perguntam aonde, apesar da sua situação, vai buscar forças para continuar a encarar a vida pelo prisma das cores mais alegres, ela faz uso das seguintes palavras: “Digo a todas as pessoas portadoras do HIV que Deus é muito maravilhoso e ama-nos, e que é só tomar os medicamentos, tenho fé que Deus um dia vai mostrar uma cura para nós”.
Ela é crente, é religiosa praticante, mas do mesmo modo que acredita na força da palavra de Deus também acredita no poder da ciência, dos medicamentos. “Sou crente e rezo para o Bom Deus. Sou portadora e por enquanto não tenho necessidade de usar medicamentos. Usei-os na altura em que fiz o corte da transmissão vertical, quando estava grávida da minha filha. O meu CD4 está óptimo, não tenho nenhuma doença oportunista que me meta cansada. Sinto-me maravilhosa com o apoio e as informações que recebi. Sinto-me bem preparada para o trabalho que faço. Viva a saúde!”.

segunda-feira, 6 de setembro de 2010

Pessoas que vivem com o HIV em Angola (1): "CONTINUO A ALIMENTAR SONHOS"

Educadora de infância, Marcelina Machado, 39 anos, separada, é portadora do HIV, tal como os dois filhos. Já chegou a estar doente, mas recuperou graças ao tratamento médico e ao acesso aos medicamentos, facilitado pela Acção Humana, que também lhe proporcionou ajuda psicológica. Ela usa a sua experiência pessoal ajudando outras pessoas a encarar e a aceitar o seu estado de seropositividade. E a procurar ajuda médica. Eis aqui o seu depoimento, na primeira pessoa.

“Soube do meu estado de seropositividade há quatro anos. Então vivia com o meu marido e um filho, que tinha três anos. A partir de certo momento o meu filho andava sempre doente. Como eu estava grávida, não o podia levar sempre às consultas. Era o meu marido que o fazia. Um dia o médico pediu-lhe para fazer o teste do HIV, juntamente com a criança, e ele chegou em casa todo embirrado. Até que uma vez, por uma simples coisa, chateou-se todo, pegou as suas coisas e foi-se embora de casa. Até hoje não sei se chegou a fazer ou não o teste.
Na altura vivia no Kassequel, na zona do Catinton. Assim que o meu marido me abandonou regressei à casa da minha mãe. Mas os meus filhos continuavam a adoecer muito.
Eu trabalhava. Sempre trabalhei. Sou educadora num lar de infância. No meu serviço tem médicos e enfermeiros. Passei a levar para lá o meu filho, para ser consultado. Como ele nunca melhorava, apesar da medicação, um dia o médico mandou que ele fizesse o teste do HIV. Deu positivo. Uma das enfermeiras contou às minhas colegas do serviço que o menino tinha HIV e que eu, como mãe, por ignorância, lhe estava a fazer sofrer. Alguém lá do serviço foi contar à minha família, alegando que o menino tinha Sida e eu já sabia. Toda a minha família veio contra mim. Deram-me 48 horas para abandonar a casa, porque senão, disseram-me, acabaria por contaminar outras pessoas. Por isso não poderia continuar no meio deles. Quando digo “a minha família” refiro-me à minha mãe e aos meus irmãos.
Tive de arrendar uma casa. A minha própria saúde também se foi debilitando. Eu estava muito em baixo, não sabia que rumo dar à minha vida. Foi nessa altura que, graças à Deus, através de uma pessoa amiga, descobri a Acção Humana. Se até hoje eu e os meus dois filhos estamos de pé é graças à Acção Humana, que nos recebeu e nos tem apoiado bastante. Já recebi ajuda em meios financeiros, bens alimentares e até em termos de renda de casa. Eu e os meus filhos temos acesso às consultas e aos medicamentos contra o HIV. Graças a Deus estamos bem.
A minha colaboração com a Acção Humana consiste em procurar pessoas com HIV e que não querem aceitar a sua condição de seropositividade. Converso com essas pessoas, aconselho-as a irem ao hospital, acompanho-as às consultas. Às grávidas aconselho a fazerem o teste, para que não lhes aconteça o que me aconteceu e possam beneficiar, se forem seropositivas, do corte da transmissão vertical, livrando assim os bebés da contaminação pelo HIV.
A minha vida, desde que colaboro com a Acção Humana, deu uma volta completa. Estou mais serena. Acredito na vida. Cheguei à conclusão que o HIV não é um bicho de sete cabeças, só é preciso saber lidar com ele. É preciso fazer os testes, a medicação, alimentar-se bem, levar uma vida sem vícios, nada de perder noites.
Aos que não são seropositivos aconselho a não ignorarem as pessoas que estão com o HIV. Os que hoje são seropositivos nunca contaram que um dia estariam nessa situação. Usem preservativos nas relações sexuais, seja com quem for. Não confiem na aparência saudável das pessoas.
A minha vida continua. E alimento sonhos. O grande sonho da minha vida é conseguir um lar e ver os meus filhos formados. É o meu grande sonho.”

quarta-feira, 18 de agosto de 2010

Ruy Duarte de Carvalho in requiem



ISAQUIEL CORI

A morte do poeta, ensaísta, cineasta e antropólogo Ruy Duarte de Carvalho é uma perda enorme para a cultura angolana. Pessoalmente não privei com ele, mas sempre procurei ler tudo quanto ele publicava. Era um cultor da excelência na escrita. A sua prosa, bastante elegante, rebuscada, carregada de circunlóquios, até mesmo um tanto barroca, fascinou-me desde o princípio, o que me permitiu conhecer a profundidade do seu pensamento.
Alguns dos seus ensaios encerram verdades, descobertas, que deviam nortear até mesmo o poder político. Lembro-me, por exemplo, de um texto seu em que se refere ao modo como algumas decisões de carácter político interferem e até mesmo desestruturam a organização da vida das comunidades rurais. Ele referia-se, nomeadamente, aos males que a importação maciça de fuba de milho podem causar a uma comunidade rural, onde o acto de pilar o milho é uma das principais componentes do quotidiano feminino. O acto de pilar o milho é um acto de sociabilidade carregado de importância cultural, porque as mulheres aproveitam aquele momento para trocarem experiências de vida e até para cantar. As mais novas são iniciadas nos meandros da vida feminina. Elas, aí, não pilam apenas o milho, também dão sentido à sua própria vida.
Essa é uma visão de raiz antropológica, mas também poética: humanista.
A perspectiva de um poder político centralizado, alheio às verdadeiras necessidades locais, é uma constante na obra ensaística de Ruy Duarte de Carvalho, e que lhe terá, certamente, rendido alguns, e poderosos, desafectos.
Ruy Duarte de Carvalho foi igualmente grande no cinema e na poesia.
Angola, este país que vive há apenas oito anos em paz, está tão carregada de traumas, vibra numa tensão tão periclitante entre passado e futuro, tem tantos assuntos mal resolvidos, ou por resolver, que ainda não tem nem tempo, nem discernimento, para prestar a devida honra e reconhecimento aos filhos que por ela se bateram, de peito aberto, com as armas da ciência, da poesia, da arte, do conhecimento.
A seu tempo, Ruy Duarte de Carvalho, terá a homenagem merecida.

quarta-feira, 7 de julho de 2010

Por que recomendo o “Último recuo”





António Quino *

Por que razão julgo que seria interessante e oportuno ler “O último recuo”, de Isaquiel Cori?
Para início de conversa, permitam-me que me apoie em algumas fundamentações teóricas. Prometo não cansar.
Na sua “Teoria do romance”, Donaldo Schuler afirma que “Podemos teorizar o romance de muitas maneiras. (...) Podemos investigar as relações com o contexto. Podemos inquerir o trabalho autorial. Podemos investigar a experiência da leitura. Podemos nos colocar na posição do leitor”.
Tal como Schuler sugere, coloco-me na posição do leitor. E é como leitor que vos falo, fazendo uma, dentre milhares de leituras possíveis.
Uma sociedade, um problema, um livro, um objecto, uma realidade, um espaço físico ou mesmo uma personagem podem ser vistos de diferentes pontos de vista, resultando em imagens diferentemente deformadas.
Por exemplo, a descrição que encontramos no livro , na sua página 17, pode ser vista como imagem com características globais, próprias de situação que o contexto padroniza:
“De olhares longínquos e sem brilho, vestiam ridículas roupas de fardo e pareciam objectos de exposição de um exótico museu vivo, a denunciarem, de modo patético, a violência e a estupidez de uma guerra que lhes invadira as terras, penetrara-lhes na alma e esvaziara-lhes o olhar e o futuro”.
Ou ainda (p.16):
“... apesar de tudo, antes de dormir, de toda a incerteza que o atormentava, ainda estava vivo”.
São exemplos de imagens globais que podem ser projectadas e deformadas em função dos pontos de vista dos leitores.
No caso concreto das imagens locais, elas apresentam-nos características mais suaves e reais às nossas experiências e vivências, e a quantidade de informações disponíveis oferecem-nos condições para mais facilmente nos identificarmos com elas. Aliás, a existência desses caracteres comuns pode ajudar a definir a estrutura literária de uma determinada obra, não fosse esta produção artística produto da experiência ou imaginário do autor.
Indo ao livro, e apoiando-nos na coincidência entre Calú e Luanda, o leitor pode encontrar imagens locais. Calú, terra natal da personagem principal, é o espaço físico onde se centralizam as acções principais que corporizam a narrativa de “O último recuo”, e parece uma cópia de Luanda, terra natal do autor do livro.
Começando pelos problemas na distribuição de energia eléctrica , à sucessão de becos e contra-becos, chão abaixo do nível do quintal , casas em cima da estrada , absentismo quase generalizado em dias posteriores às grandes ressacas , a descrença nas instituições, que se mistura com a arrogância e o individualismo velados no ego de muitos cidadãos das grandes cidades, como o descrito na página 16 do livro:
“Sou o quê? (...) Cuidado que eu posso te dar um tiro aqui mesmo”.
Outro elemento em comum encontramo-lo nas páginas do livro, onde se percebe a forma como a guerra fez milagres e miseráveis.
Há uma personagem, Matuba Grande, que o narrador garante que se não fosse a guerra, certamente continuaria como um camponês cujos horizontes dificilmente ultrapassariam os marcos da região natal e arredores .
Essas palavras do narrador são confirmadas pela própria personagem na página 44:
“- (...) eu considero a guerra como uma coisa querida. A guerra tirou-me do meu destino de camponês. Deu-me poder”.
Mas há aqueles que enfrentaram a guerra. “Não fugiram, apegavam-se às suas casas, às suas terras como o único bem precioso que possuíam, com o risco da própria vida. Gente honesta, inocente, apanhada no turbilhão de uma guerra cujas causas verdadeiras desconheciam” .
Entre Calú e Luanda há ainda em comum o facto de haver em muitos jovens a descrença no amanhã e o cego mergulho no mundo do álcool. E o diálogo entre jovens presente na página 20 é bem prova disso:
“- A birra está fixe, esta é que é vida! Gostava de morrer com uma bem fresca na mão...”
Vezes há em que, em tom descontraído, a morte se torna o centro das conversas, anulando a vida:
“- Sabem qual é a maneira mais bala de baicar? É a comer a garina do tipo mais achado da banda...”
“- P’ra mim é melhor morrer com um tiro na cabeça. É tudo rápido.”
Vemos também, em Calú (p. 20), jovens abordando a problemática da velhice versus feitiço, uma discussão patente em Luanda e que representa um cancro para a sociedade luandense em particular e dos cidadãos da terceira idade em geral:
“- (...) Vou mas é morrer bem velho, não me importa se vão me chamar de feiticeiro”.
Este diálogo termina num: - “Nós somos imortais!”, reflexo da inconsequência de muitos jovens em Luanda, arriscando a vida por um vintém.
Igualmente, em Calú, o autor projecta uma realidade ficcionada, em que as relações sociais de classe se estabelecem num restrito núcleo, em que há os cidadãos indesejáveis, vistos como uma espécie de bacilos de cock pela elite, elemento extremamente nocivo e contagioso, que devia ser evitado a todo custo.
Na página 98 do livro há o relato de um camponês projectado ao generalato que evita João Segura, seu ex-companheiro de armas
“- Demasiadas pessoas já me viram a conversar contigo. E isto não é bom para mim”.
Mas a razão dessa sociedade ficcionada e fraccionada pode esbarrar numa solução, pois, como descreve nas páginas 106 e 107, a sorte pode vir vestida de quotidiano: mulher velha encolhida sob o peso da banheira de pão na cabeça, moça esticada em cima duns sapatos altos, o homem encerrado num fato pesado, mulher cantarolando cantos religiosos, e um Manecas Ladeira, mutilado, a oferecer emprego ao seu ex-comandante.

Nessa questão das semelhanças, há um diálogo, na página 68, que se afigura como um interessante recado ao leitor, um experimentado homem de cabelos brancos aconselha um jovem cujo destino se afigura incerto:
“- Coragem e paciência. E não tente compreender tudo o que te acontece. Deixe as coisas acontecerem.”
E o que tudo isso tem a ver a minha recomendação em ler a obra? Já aí chegaremos.
“O último recuo” narra a história de João Segura, um despromovido Tenente-coronel do exército, de 42 anos de idade, formado numa Academia Militar da ex-URRS, e caído em desgraça fruto duma cabala montada contra si e ordenada por uma invisível ordem superior.
A nossa personagem principal, militar profissional treinado para combater e, eventualmente, morrer pela pátria, homem ligado à elite militar, acaba transfigurado, num ápice, em roboteiro que se apaixona por uma prostituta, a Ricarda. É, portanto, também uma história de amor, que se reparte em 16 capítulos (duas partes) espalhados em 134 páginas.
Mas retenho-me ao que o ex-comandante se tornou enquanto atravessava o deserto: um roboteiro, termo utilizado para designar aqueles cidadãos que carregam mercadorias nos e para os mercados formais e informais, armazéns, casas dos clientes e afins, nas cabeças ou em carros de mão.
O autor deixa em segundo plano o facto de a personagem ter sido oficial do exército, de ter acabado como professor, e promove não só a sua actividade laboral como fundamental para a compreensão da obra, como é nesse período em que deixa transbordar o intelectual que havia em si. Com toda a carga pejorativa que este adjectivo/substantivo (roboteiro) transporta, não serão, em essência, roboteiros muitos intelectuais? E o inverso?
Mas, há aqui um conjunto de coincidências que não podem passar despercebidas. Comecemos pelas que existem entre o autor e a personagem principal. Da mesma faixa etária, ambos ex-militares, ambos amantes da leitura, ambos naturais de cidades que só diferem no nome.
Donaldo Schuler, em “Teoria do romance”, refere que “a arte romanesca se distancia da realidade para ver melhor, mesmo que o afastamento abra abismos” .
Essa relação binária entre autor e personagem permite-me especular que os monólogos do narrador ao longo da obra são, no fundo, passeios ao íntimo refúgio do autor:
“Como a vida seria boa e fácil se fosse apenas sono e sonho? A realidade seria virtual e aleatória”.
“É uma pena que a grande maioria dos cidadãos não saiba ler ou, mesmo sabendo, não tenha hábitos de leitura. Não haja dúvida que a literatura é uma das melhores formas de tomada de consciência de uma Nação”.
Aliás, Catherine Millot, em entrevista conduzida por Betty Milan e reproduzida no livro “A força da palavra”, refere que “o escritor vive uma determinada experiência que poderia ser qualificada de mística, se ela não acontecesse num contexto exterior ao da religião, a experiência de algo enigmático, que o sujeito procura decifrar escrevendo”.
Lévi Strauss acaba sendo mais profundo na sua análise, ao considerar que o autor escreve para preencher o vazio de um desejo de satisfação espiritual, “tanto que a maioria deles ganha dinheiro com outra profissão. A arte, em geral, tem o sentido simbólico do prazer, e isso é individual, por isso o apelo da arte é para a solidão, para o individualismo” .
Gostaria de lembrar que mesmo entre a incomum imagem local deformada pode sempre haver pontos de convergência. Ou seja, os vários leitores deste livro, trazendo experiências diferenciadas, podem encontrar elos comuns, isso porque o conhecimento adquirido individualmente, mas numa comunidade, se torna património colectivo, memória e consciência colectiva.
No caso concreto da literatura, há um elemento denominado invariante, uma modalidade essencial através da qual a literatura participa da universalidade e o meio pelo qual ela reveste todos seus elementos comuns de uma significação universal.
Quando Claude Lévi-Strauss se refere ao conceito de invariante é para vigiar a base, de carácter binário, de sustentação da estrutura, pois a invariante gera novas imagens deformadas, no fundo variáveis comuns de uma significação universal, mas que permitem uma percepção local.
Imaginemos que o narrador queira nos propor uma história que actue no imaginário da consciência colectiva para propor soluções sobre conflitos reais.
No caso de “O último recuo”, o invariante, para nós leitores angolanos, provavelmente nos conduzirá ao récem-terminado conflito armado. Mas, mesmo perante este invariante, a experiência de cada um de nós nos levará às imagens locais deformadas. Assim, uns poderão pensar em ente-queridos, outros em bens móveis ou imóveis perdidos e outros ainda em sonhos ou projectos de vida desfeitos.
O autor cria a amargura no coração do leitor, mas oferece um projecto que poderá trazer mudanças. E é Manecas Ladeira, um mutilado, um sindicalista, um professor, um ex-militar, quem trás a novidade para a mudança, com um livro, descrevendo 3 revoluções que terão abalado o seu país.
O livro de Manecas Ladeira é, na realidade, o retrato do “O último recuo”, recuando no tempo e na história, narrando o estado caótico em que o país da ficção se encontrava.
E a pergunta do João Segura na página 129, que é a do autor provavelmente e que é a dos leitores, acaba por ser contagiante:
“- E o livro fica por aí, acaba assim?... (descrevendo as revoluções) Não aponta saídas?”
Contudo, e voltando ao conceito de consciência colectiva, um outro invariante que poderá emergir do texto é o da crença colectiva por uma bonança no pós tempestade.
A ideia de consciência colectiva, de Émile Durkheim, pressupõe a soma de crenças e sentimentos comuns à média dos membros da comunidade, formando um sistema autónomo, isto é, uma realidade distinta que persiste no tempo e une as gerações .
Portanto, os factos sociais narrados em “O último recuo” demonstram que a consciência colectiva anula a consciência individual e se contrapõe à consciência de classe, esta que privilegia as diferenças existentes entre a própria situação de classe e a de outro indivíduo ou indivíduos.
Com a consciência colectiva, nada depende de um indivíduo. Tudo depende de um todo.
“O último recuo” é, a meu ver, um olhar ao passado para melhor avançarmos para o futuro e alimenta os átomos individuais duma consciência colectiva que este país precisa de inventar, de regar e de colher.
Como disse, essa é a minha leitura.
Boa leitura.


Bibliografia

CORI, Isaquiel. O último recuo. Colecção Nzadi / Mayamba, Luanda, 2010.
Durkheim, Émile. Da divisão do trabalho social. Editora Martins Fontes, São Paulo, 2008.
MILAN, Betty. A força da palavra. Editora Record. Rio de Janeiro, 1996.
SCHULER, Donaldo. Teoria do romance. Editora ática, São Paulo, 2000.
.........................
NOTA: Texto de apresentação do romance "O Último Recuo", de Isaquiel Cori, lido no dia 19 de Maio de 2010, na sede da União dos Escritores Angolanos, em Luanda.






*António Quino é docente de Língua Portuguesa no ISCED. Para quem o quiser contactar, eis os seus contactos:
Departamento de Língua Portuguesa
Instituto Superior de Ciencias da Educaçao de Luanda
Caixa Postal N. 10609 ou 16117
Telef: 222 401 311 / 923311453 / 912050293

Luanda/Angola

As fotos aqui publicadas foram tomadas de www.nguimbangola.blogspot.com

terça-feira, 6 de julho de 2010

ESTÁDIO 11 DE NOVEMBRO ÀS ESCURAS ADIA ENTRADA DO BAIRRO DA SAPÚ 2 NO SÉCULO XXI

Isaquiel Cori

Morador que sou do bairro situado nas imediações do Estádio Nacional 11 de Novembro, em Luanda, esta catedral do futebol inaugurada aquando do Campeonato Africano de Futebol 2010, vivo momentos de desilusão. O estádio era um oásis de luz no meio da escuridão profunda em que vivemos na Sapú 2. De bem longe, bem de longe, o morador quando se aproximasse do seu bairro, através da auto-estrada, depois de uma jornada de trabalho, guiava-se pela luz emitida pelo estádio e que subia para o céu.
No meio da escuridão em que vivemos na Sapú 2, o grande estádio e a sua luz eram vistos, com esperança, como símbolos do que não tínhamos e que ansiávamos ardentemente: a electricidade da rede pública e tudo o que ela propicia em matéria de comodidade, progresso e modernidade.
O estádio 11 de Novembro era o farol, o grande sinal de que, até pela proximidade, o século XXI estava às nossas portas, pois é inconcebível estar plenamente no século XXI sem desfrutar da luz eléctrica. E sem ter água ao domicílio.
É assim que vivemos na Sapú 2, um bairro construído de raiz pelo Estado, há cerca de cinco anos: sem luz e sem água ao domicílio. O estádio 11 de Novembro e a sua proximidade eram a nossa grande esperança, talvez “quem de direito” se lembrasse de que a moderna infra-estrutura não poderia coexistir com um bairro sem luz e água ao domicílio, pois, não já pela dignidade dos moradores, seria uma vergonha diante dos estrangeiros que fossem ver os jogos e passassem pelo bairro.
Agora, depois do CAN, a nossa esperança apagou-se! A luz que se propagava para o céu a partir do grande estádio, do estádio do século XXI, desapareceu. O estádio, ninguém sabe se contaminado pelo nosso bairro escuro, caiu na mais completa escuridão. E os acessos ao estádio que antes também eram caminhos de luz e iluminavam as nossas ânsias de entrar no século XXI, ficaram igualmente escuros. E nós, os da Sapú 2, perdemos o nosso farol! Perdemos o nosso oásis de luz e modernidade! Apagou-se a nossa esperança de finalmente desfrutarmos das “benesses” da cidadania do século XXI.

terça-feira, 29 de junho de 2010

Comunidade de leitores ou a cultura que se cultiva

Isaquiel Cori

Numa ida recente a pelo menos três livrarias da cidade de Luanda, em conversa com livreiros, constatei que são muitas as pessoas que aparecem para comprar livros. “Elas são sobretudo jovens. Entram, circulam entre as estantes, seguram os livros, vacilam, analisam os preços, e, sempre hesitantes, acabam finalmente por dirigir-se ao caixa com um ou dois livros ou então abandonam a livraria de mãos a abanar, entre o frustrado e o envergonhado”, disse um dos meus interlocutores.

O Jardim do Livro Infantil, que terminou no último Domingo em Luanda, deu mais uma prova de que há sim muita gente interessada no livro e na leitura. Em três dias, segundo a agência de notícias ANGOP, compareceram ao evento mais de 12 mil pessoas. É muito? É pouco? É encorajador.
Existe sim uma comunidade de leitores em Luanda. São pessoas que amam a leitura, a incluem entre os seus principais hobbies e procuram inculcá-la aos seus filhos.
Mas essa comunidade de leitores anda à deriva. São pessoas que sacrificam os seus orçamentos para ter um livro e vasculham as livrarias em busca de um título mais acessível. As feiras do livro e da leitura que ocasionalmente vão ocorrendo, até pelo facto de, na generalidade, nelas os livros serem vendidos com descontos, constituem verdadeiros nichos num mercado a todos os títulos inflaccionado.
É minha opinião que nessa cadeia que vai do livro ao leitor e à leitura, começando naturalmente pelo autor, há um factor que entre nós se apresenta bastante deficitário: os veículos da difusão do livro e do fenómeno literário em geral. Refiro-me, concretamente, à comunicação social.
A comunicação social angolana, como é sabido, dedica pouco espaço a matérias culturais. E esse espaço já de si escasso é geralmente ocupado pela simples narração de eventos: aconteceu ou vai acontecer assado e cozido. Raramente se vai à profundidade e à explicação dos factos.
Em se tratando do livro, os leitores precisam de ser orientados. À falta de uma crítica académica ou profissional, bem que a comunicação social poderia cumprir essa “missão”, fazendo e publicando pequenas recensões críticas e pré-publicando excertos de livros. Entrevistas sérias aos autores, baseadas numa leitura prévia do livro a publicar, ou recentemente publicado, também se tornam indispensáveis.
Chegados aqui, põe-se a questão dos editores de livros. As casas editoras deviam ser mais activas na sua relação com a comunicação social, estabelecendo relações directas e dinâmicas com as editorias culturais, que passariam pela entrega prévia de exemplares do título a lançar.

Insuficiências da media

Enquanto autor e profissional da comunicação social, reconheço que a classe também enferma de um grande défice de hábitos de leitura. E entre ler um livro e ter a capacidade de o resumir e o analisar em texto, por mais ligeiro que seja, vai uma grande distância.
Enfim, é um problema próprio de um país jovem, que apesar de ter trinta e cinco anos de independência, verdadeiramente só a está a desfrutar na plenitude há oito anos. Enquanto as universidades não colocarem no mercado profissionais da comunicação social que encarnem o seu papel de intelectuais e de agentes activos da cadeia de elaboração e difusão do saber, as coisas hão-de continuar como estão.
Até lá, há que estimular os poucos profissionais capazes no interior dos órgãos a ler e a escrever sobre o que lêem. A terem uma atitude intelectualmente activa, crítica, de desassossego. O jornalismo de opinião deve transcender a política e abarcar e penetrar o fenómeno cultural e literário.
Então, haja vontade e cultura. E lembremo-nos: a cultura cultiva-se.

domingo, 20 de junho de 2010

Entre nós existe sim uma comunidade de leitores

Há dias recebi um email de alguém que me dizia que adquirira o meu livro "O Último Recuo" e tecia toda uma série de considerações a respeito e a propósito do mesmo. A profundidade de tais considerações não deixavam dúvida: a pessoa em causa lera e talvez relera o livro.
Manifestações como esta fazem valer a pena a persistência no exercício da escrita e aumentam em nós a fé de que em Angola existe sim uma comunidade de leitores e que tudo deve ser feito para que o livro chegue às mãos desses leitores a preços acessíveis.
Na senda do que escrevi neste blogue, no texto "A crise da literatura angolana", vou postar nos próximos dias um texto sobre aquilo que se pode fazer para encurtar a distância entre autores e leitores e aumentar a comunidade de leitores da literatura angolana, e não só.
Isaquiel Cori

segunda-feira, 7 de junho de 2010

DE VOLTA

Caros amigos, estou de volta. Ninguém perde por esperar.
Isaquiel Cori

terça-feira, 23 de março de 2010

LevArte

Para mais detalhes sobre as actividades do movimento LevArte seguir www.fazemosacontecer.blogspot.com

Há que tornar a escola numa fábrica de leitores




Atendendo a um simpático convite estive num encontro no Kings Club, à Vila Alice, em Luanda, com jovens que amam a literatura e estão ávidos de mais saberem sobre o assunto. A iniciativa foi do movimento LevArte, uma das forças mais visíveis, actualmente, do activismo literário em Luanda. Foi bom conviver com a rapaziada, sobretudo porque senti que estão profundamente comprometidos com a literatura e a cultura angolanas. Bem haja LevArte! Parabéns Kardo Bestilo, Nguimba Ngola, Lueji Dharma e outros responsáveis do LevArte. O vosso esforço em prol da promoção da literatura angolana certamente ficará marcado de modo indelével na História da Literatura Angolana. I. Cori

terça-feira, 20 de outubro de 2009

Cresce o número de blogueiros (bloguistas) angolanos

Um número crescente de cidadãos angolanos temerariamente aventura-se pela criação de blogues, actualmente um dos principais vectores de inclusão e difusão de conteúdos na Internet

Isaquiel Cori

“Navegar é preciso”. Não já pelos mares desconhecidos a que aludia o poeta português Fernando Pessoa, mas pelo universo virtual da Internet. Para além de permitir o acesso à informação, a Net, naquilo que tem de mais democratizante, possibilita, a quem quer que seja, incluir nela a sua própria visão do mundo, passando assim o indivíduo de mero receptor a produtor de conteúdos.
De “celebridades” a pessoas simples, qualquer pessoa pode criar gratuitamente o seu blog e introduzir nele, com uma liberdade apenas limitada pelo senso de responsabilidade, as suas ideias, imagens e vídeos.
Através de uma pesquisa na Web, constatamos que cresce a quantidade de blogueiros (ou bloguistas) angolanos activos. Os blogs manifestamente angolanos, como acontece em todo o mundo, variam bastante de temática. Uns são mais intimistas e parecem obedecer a uma necessidade profunda de exaltação do ego. É o caso do blog “Mundo de Polly”, cuja autora, estudante de engenharia, tem 18 anos. Ela diz no seu perfil: “Eu gosto muito de mim e nenhum ser que saiu debaixo de uma pedra a rastejar vai mudar isso. Estou-me nas tintas para o que dizem de mim. Não sou superior, supero-me”.
Outros blogues tendem a ser de carácter mais informativo e opinativo. É o caso do “Morro da Maianga”, “um espaço de abordagem crítica sobre os mais variados temas da actualidade angolana e internacional (…)”. O seu autor é o jornalista Reginaldo Silva, um dos blogueiros angolanos mais regulares e antigos, ainda do tempo em que os blogs não eram um recurso oferecido gratuitamente pela Internet.
Entre essas duas tendências temáticas existe todo um mundo de diversidade. O limite é a criatividade e a imaginação do autor.

O que move os blogueiros

O que faz com que uma pessoa, a partir de um determinado momento, decida criar e alimentar regularmente o seu blogue? Certamente, a necessidade de comunicar algo, de saltar a barreira do isolamento e estabelecer pontes com o outro. “Dado o quase total desconhecimento da nossa literatura a nível nacional, nas escolas, universidades, etc., achei que seria útil criar um espaço de consulta e informação (…). Deste modo dou a conhecer as minhas obras e, por consequência, um pouco da literatura angolana”, afirma Fragata de Morais, escritor.
Fragata de Morais é autor de um blogue em que divulga as suas peças literárias, inéditas ou editadas em livro, bem como fotos suas em eventos públicos. O blogue apresenta também mais de uma dezena de links para sites de temática literária e cultural.
Segundo Reginaldo Silva, o seu actual blogue, criado em Junho do ano passado, “resultou de uma necessidade (…) de poder comunicar com terceiros sem intermediários e sem ter que pedir nem prestar contas a ninguém, o que me dá uma grande alegria e satisfação, quer como jornalista, quer apenas como cidadão angolano e do mundo que sente necessidade de partilhar informações e opiniões com os seus semelhantes”.
Luciano Canhanga, também jornalista, criou o blogue “Mesu ma Jikuka” em Abril de 1995 no contexto limitado de um curso que estava a frequentar em Portugal. Hoje Canhanga subiu a fasquia da sua ambição e mantém o blogue activo como “forma de poder contribuir para uma informação plural, com notícias e reflexões sobre temas da actualidade”. O blogueiro confessa sentir-se “realizado”, dado o crescente número de leitores e comentaristas. “O que mais me satisfaz é ser várias vezes ponto de partida para reportagens dos media angolanos. Textos meus foram republicados por jornais impressos e outros blogues. Isso é reconfortante”.
A percepção de que o blogue está a ser útil e consultado por centenas e até milhares de pessoas espalhadas pelo mundo inteiro é um autêntico combustível para a criatividade dos blogueiros. A maior parte dos provedores de blogues disponibiliza uma ferramenta para contagem e determinação do país de origem dos internautas visitantes. Daí é possível aferir, naturalmente, o quanto o blogue é ou não popular. Por exemplo, de Junho de 2008 a 13 de Outubro deste ano, o blogue “Morro da Maianga” recebeu cerca de 18 mil visitas.

Difusão e promoção

Na qualidade de habitantes do mundo virtual, os blogueiros tendem a estabelecer entre si relações de cumplicidade, que se materializam através das várias ligações (links) entre blogues. Essa é uma das vias para sua promoção. Mas não há promoção maior do que quando o blogue é alojado no site de uma instituição prestigiada. “Acabei de receber, há dias, um e-mail da Harvard University, dos Estados Unidos, que me informava que tinha colocado o meu blogue para os seus estudantes, no seu site. É uma satisfação, logicamente”, revela Fragata de Morais, cujo blogue está igualmente alojado nos sites das universidades angolanas Lusíada e Metodista.
A criação e difusão de blogues em Angola ainda encontra bastantes limitações. Num universo de 14 milhões de habitantes, cerca de 41 mil pessoas, segundo dados da União Internacional de Telecomunicações, utilizam a Internet em Angola.
As evidências apontam para o facto da grande maioria ter acesso à Web apenas a partir do local de trabalho, isto é, condicionadas pela ocupação laboral. E há a visão generalizada de que a Internet é, acima de tudo, um local de recolha de saberes e não, também, de colocação de saberes.
Essa realidade, que para outros blogueiros poderia ser considerada deprimente, não o é para Reginaldo Silva: “Devo confessar que a minha actividade como bloguista é, sem dúvida, aquela que mais me tem realizado como profissional e não só, desde que há mais de trinta anos entrei, pela porta da RNA, na comunicação social”.

Figuras públicas

Um forte indício do quanto a Internet ainda está longe de ser dominada pelos angolanos reside no facto de parte significativa das personalidades do mundo das artes, dos espectáculos e da media, vulgarmente denominadas figuras públicas, não possuir um blogue. Se têm um endereço electrónico já é muito.
Víctor Hugo Mendes, apresentador do programa “Dia a dia”, da TPA 2, confessa que não tem blogue. “Mas faço uso das redes de relacionamento e consulto blogues que divulgam coisas importantes. Nas minhas páginas de relacionamento divulgo fotos e textos sobre os lugares onde passo”.
A cantora Pérola garante que até Novembro terá disponível o seu blogue. “Terá o básico: o meu historial, discografia, agenda, fotos e a possibilidade dos meus fãs interagirem comigo”.
Autora de dois discos de sucesso, “Os meus sentimentos” e “Cara e coroa”, Pérola, que não esconde a intenção de internacionalizar a sua carreira, diz que sempre navegou na Internet e que a criação do seu blogue “é uma forma de personalizar” o seu trabalho.
Love Kabungula, futebolista do 1º de Agosto e dos Palancas Negras, afirma que não tem blogue. Nem e-mail. “Não faço muita frequência à Internet por uma questão de tempo. Mas já tenho necessidade de ter um blogue, por causa das muitas pessoas que desejam aprofundar os seus conhecimentos a meu respeito”. E o craque remata: “Até a próxima semana crio um blogue”.
O apresentador Victor Hugo Mendes reconhece o enorme défice de internautas entre as nossas figuras públicas. “Muitos acham que ainda é desnecessário fazer recurso à Internet. Em dez artistas ou músicos se calhar apenas um possui e-mail”.

O calcanhar de Aquiles

Para o comunicólogo João Adilson o fenómeno blogue “é um pouco parecido àquilo que a Internet se tornou hoje em dia: uma rede de informação individualizada, onde somos muitos, parecemos estar juntos e unidos mas cada um faz a sua comunicação separadamente”.
No seu entender contribui para o sucesso dos blogues “a dificuldade de acesso e protagonismo nos meios de comunicação convencionais (rádio, jornal, TV). No fundo, o blogue é um meio de cada um postar a sua visão sobre determinado assunto ou situação. Há uma maior liberdade de expressão, ninguém censura os textos ou as imagens e os assuntos são ilimitados”.
João Adilson reconhece que há em Angola, ainda, um grande défice de cultura informática. “Os computadores são vendidos a preços especulativos, não existem computadores para todos nas escolas, nos circuitos privados o acesso a eles é caro, o serviço de Internet é dispendioso, e a cultura informática ainda é pouco acessível e divulgada”.
A maneira de fazer com que os cidadãos angolanos sejam mais activos na Internet, isto é, produtores e não meros consumidores de conteúdos, segundo João Adilson, passa, necessariamente, pela “divulgação da cultura informática nas escolas, criação de cibercafés e centros especializados de formação”.
Mas, aqui está o calcanhar de Aquiles, o fundamental mesmo é “melhorar as políticas de preços dos serviços de Internet no país, que são muito caros”.

































INTERNET

INTERNET
Cresce o número de blogueiros angolanos

Um número crescente de cidadãos angolanos temerariamente aventura-se pela criação de blogues, actualmente um dos principais vectores de inclusão e difusão de conteúdos na Internet

Isaquiel Cori

“Navegar é preciso”. Não já pelos mares desconhecidos a que aludia o poeta português Fernando Pessoa, mas pelo universo virtual da Internet. Para além de permitir o acesso à informação, a Net, naquilo que tem de mais democratizante, possibilita, a quem quer que seja, incluir nela a sua própria visão do mundo, passando assim o indivíduo de mero receptor a produtor de conteúdos.
De “celebridades” a pessoas simples, qualquer pessoa pode criar gratuitamente o seu blog e introduzir nele, com uma liberdade apenas limitada pelo senso de responsabilidade, as suas ideias, imagens e vídeos.
Através de uma pesquisa na Web, constatamos que cresce a quantidade de blogueiros (ou bloguistas) angolanos activos. Os blogs manifestamente angolanos, como acontece em todo o mundo, variam bastante de temática. Uns são mais intimistas e parecem obedecer a uma necessidade profunda de exaltação do ego. É o caso do blog “Mundo de Polly”, cuja autora, estudante de engenharia, tem 18 anos. Ela diz no seu perfil: “Eu gosto muito de mim e nenhum ser que saiu debaixo de uma pedra a rastejar vai mudar isso. Estou-me nas tintas para o que dizem de mim. Não sou superior, supero-me”.
Outros blogues tendem a ser de carácter mais informativo e opinativo. É o caso do “Morro da Maianga”, “um espaço de abordagem crítica sobre os mais variados temas da actualidade angolana e internacional (…)”. O seu autor é o jornalista Reginaldo Silva, um dos blogueiros angolanos mais regulares e antigos, ainda do tempo em que os blogs não eram um recurso oferecido gratuitamente pela Internet.
Entre essas duas tendências temáticas existe todo um mundo de diversidade. O limite é a criatividade e a imaginação do autor.

O que move os blogueiros

O que faz com que uma pessoa, a partir de um determinado momento, decida criar e alimentar regularmente o seu blogue? Certamente, a necessidade de comunicar algo, de saltar a barreira do isolamento e estabelecer pontes com o outro. “Dado o quase total desconhecimento da nossa literatura a nível nacional, nas escolas, universidades, etc., achei que seria útil criar um espaço de consulta e informação (…). Deste modo dou a conhecer as minhas obras e, por consequência, um pouco da literatura angolana”, afirma Fragata de Morais, escritor.
Fragata de Morais é autor de um blogue em que divulga as suas peças literárias, inéditas ou editadas em livro, bem como fotos suas em eventos públicos. O blogue apresenta também mais de uma dezena de links para sites de temática literária e cultural.
Segundo Reginaldo Silva, o seu actual blogue, criado em Junho do ano passado, “resultou de uma necessidade (…) de poder comunicar com terceiros sem intermediários e sem ter que pedir nem prestar contas a ninguém, o que me dá uma grande alegria e satisfação, quer como jornalista, quer apenas como cidadão angolano e do mundo que sente necessidade de partilhar informações e opiniões com os seus semelhantes”.
Luciano Canhanga, também jornalista, criou o blogue “Mesu ma Jikuka” em Abril de 1995 no contexto limitado de um curso que estava a frequentar em Portugal. Hoje Canhanga subiu a fasquia da sua ambição e mantém o blogue activo como “forma de poder contribuir para uma informação plural, com notícias e reflexões sobre temas da actualidade”. O blogueiro confessa sentir-se “realizado”, dado o crescente número de leitores e comentaristas. “O que mais me satisfaz é ser várias vezes ponto de partida para reportagens dos media angolanos. Textos meus foram republicados por jornais impressos e outros blogues. Isso é reconfortante”.
A percepção de que o blogue está a ser útil e consultado por centenas e até milhares de pessoas espalhadas pelo mundo inteiro é um autêntico combustível para a criatividade dos blogueiros. A maior parte dos provedores de blogues disponibiliza uma ferramenta para contagem e determinação do país de origem dos internautas visitantes. Daí é possível aferir, naturalmente, o quanto o blogue é ou não popular. Por exemplo, de Junho de 2008 a 13 de Outubro deste ano, o blogue “Morro da Maianga” recebeu cerca de 18 mil visitas.

Difusão e promoção

Na qualidade de habitantes do mundo virtual, os blogueiros tendem a estabelecer entre si relações de cumplicidade, que se materializam através das várias ligações (links) entre blogues. Essa é uma das vias para sua promoção. Mas não há promoção maior do que quando o blogue é alojado no site de uma instituição prestigiada. “Acabei de receber, há dias, um e-mail da Harvard University, dos Estados Unidos, que me informava que tinha colocado o meu blogue para os seus estudantes, no seu site. É uma satisfação, logicamente”, revela Fragata de Morais, cujo blogue está igualmente alojado nos sites das universidades angolanas Lusíada e Metodista.
A criação e difusão de blogues em Angola ainda encontra bastantes limitações. Num universo de 14 milhões de habitantes, cerca de 41 mil pessoas, segundo dados da União Internacional de Telecomunicações, utilizam a Internet em Angola.
As evidências apontam para o facto da grande maioria ter acesso à Web apenas a partir do local de trabalho, isto é, condicionadas pela ocupação laboral. E há a visão generalizada de que a Internet é, acima de tudo, um local de recolha de saberes e não, também, de colocação de saberes.
Essa realidade, que para outros blogueiros poderia ser considerada deprimente, não o é para Reginaldo Silva: “Devo confessar que a minha actividade como bloguista é, sem dúvida, aquela que mais me tem realizado como profissional e não só, desde que há mais de trinta anos entrei, pela porta da RNA, na comunicação social”.

Figuras públicas

Um forte indício do quanto a Internet ainda está longe de ser dominada pelos angolanos reside no facto de parte significativa das personalidades do mundo das artes, dos espectáculos e da media, vulgarmente denominadas figuras públicas, não possuir um blogue. Se têm um endereço electrónico já é muito.
Víctor Hugo Mendes, apresentador do programa “Dia a dia”, da TPA 2, confessa que não tem blogue. “Mas faço uso das redes de relacionamento e consulto blogues que divulgam coisas importantes. Nas minhas páginas de relacionamento divulgo fotos e textos sobre os lugares onde passo”.
A cantora Pérola garante que até Novembro terá disponível o seu blogue. “Terá o básico: o meu historial, discografia, agenda, fotos e a possibilidade dos meus fãs interagirem comigo”.
Autora de dois discos de sucesso, “Os meus sentimentos” e “Cara e coroa”, Pérola, que não esconde a intenção de internacionalizar a sua carreira, diz que sempre navegou na Internet e que a criação do seu blogue “é uma forma de personalizar” o seu trabalho.
Love Kabungula, futebolista do 1º de Agosto e dos Palancas Negras, afirma que não tem blogue. Nem e-mail. “Não faço muita frequência à Internet por uma questão de tempo. Mas já tenho necessidade de ter um blogue, por causa das muitas pessoas que desejam aprofundar os seus conhecimentos a meu respeito”. E o craque remata: “Até a próxima semana crio um blogue”.
O apresentador Victor Hugo Mendes reconhece o enorme défice de internautas entre as nossas figuras públicas. “Muitos acham que ainda é desnecessário fazer recurso à Internet. Em dez artistas ou músicos se calhar apenas um possui e-mail”.

O calcanhar de Aquiles

Para o comunicólogo João Adilson o fenómeno blogue “é um pouco parecido àquilo que a Internet se tornou hoje em dia: uma rede de informação individualizada, onde somos muitos, parecemos estar juntos e unidos mas cada um faz a sua comunicação separadamente”.
No seu entender contribui para o sucesso dos blogues “a dificuldade de acesso e protagonismo nos meios de comunicação convencionais (rádio, jornal, TV). No fundo, o blogue é um meio de cada um postar a sua visão sobre determinado assunto ou situação. Há uma maior liberdade de expressão, ninguém censura os textos ou as imagens e os assuntos são ilimitados”.
João Adilson reconhece que há em Angola, ainda, um grande défice de cultura informática. “Os computadores são vendidos a preços especulativos, não existem computadores para todos nas escolas, nos circuitos privados o acesso a eles é caro, o serviço de Internet é dispendioso, e a cultura informática ainda é pouco acessível e divulgada”.
A maneira de fazer com que os cidadãos angolanos sejam mais activos na Internet, isto é, produtores e não meros consumidores de conteúdos, segundo João Adilson, passa, necessariamente, pela “divulgação da cultura informática nas escolas, criação de cibercafés e centros especializados de formação”.
Mas, aqui está o calcanhar de Aquiles, o fundamental mesmo é “melhorar as políticas de preços dos serviços de Internet no país, que são muito caros”.

quarta-feira, 26 de agosto de 2009

Pensamento do Dia

"Enquanto um homem não enfrentar um grande risco, a ruína ou morte por aquilo em que realmente acredita, jamais se sentirá forte e sempre fugirá"
Walt Sheldon, citado por Ross Pynn in "Ross Pynn Antologia Policial"

domingo, 23 de agosto de 2009

Onça ataca agente da Polícia Nacional


Uma história real, vivida no Golungo Alto

ISAQUIEL CORI

António Jacinto, poeta de fina verve e dono de uma prosa de estilo intenso e arrebatador, em alguns momentos da sua obra narrou, com a imaginação que lhe era própria, aspectos da rica tradição oral da sua região natal, Golungo Alto. Lembram-se das fábulas de Sange? Ou ainda de marcos geográficos e toponímicos, presentes na sua obra, como Kiaposse e Cambondo?
Terra de agricultores e também de caçadores, Golungo Alto, para lá da realidade do dia a dia, também possui uma dimensão mítica que repousa na memória dos seus filhos (leia-se “Mário Pinto de Andrade – Uma Entrevista”, de Michel Laban) e no imaginário literário de escritores como o referido António Jacinto ou Manuel Pedro Pacavira.
Foi a partir do centro do quotidiano golunguense, num animado almoço em casa do administrador municipal “Toy Nené”, que de repente tivemos a percepção aguda e vivida da dimensão mítica de Golungo Alto e do quanto o mito na verdade pode traduzir e até mesmo confundir-se com a realidade, e vice-versa. Simpático e afável, “Toy Nené” contou a história real do agente Diogo Kimbango, que foi atacado por uma onça no dia 10 de Novembro de 2004.
Narrada pelo administrador municipal do Golungo Alto, a história reza assim: “Uma onça caiu numa armadilha montada pelo caçador Manuel Kimbango, pai do agente da Polícia Nacional Diogo Kimbango. O caçador depara-se com a inusitada presa e vai a correr chamar o filho. Este pega numa arma e, na companhia de outros familiares, dirige-se ao local da armadilha. A onça, entretanto, safara-se da armadilha e como que propositadamente monta uma emboscada aos caçadores. Deixa passar (atente-se ao verbo) todos os que iam desarmados e ataca precisamente Diogo Kimbango, o único armado. Atira o agente e a sua arma para bem longe e logo a seguir investe contra o pai, Manuel Kimbango. Corajosamente, Diogo, bastante ferido, arrasta-se até à arma e dispara três vezes contra o animal, que morre”.
Para dar mais realce à história e como que para acabar com quaisquer restos de dúvida, “Toy Nené” providencialmente saca de um conjunto de fotos onde aparecem Manuel e Diogo Kimbango, cheios de ferimentos e ligaduras, triunfalmente a guarnecerem o corpo sem vida da onça.
Curiosos, constatamos que na verdade essa história correra e dominara Golungo Alto inteiro, da Cêrca a Kilombo Kiaputo, e de Sange a Cambondo. E ainda da Cacanga a Cabinda do Golungo. Era evidente que tínhamos de conhecer os heróis da história. Infelizmente o agente Diogo Kimbango ausentara-se de Sange, a capital do município, mas conseguimos chegar à fala com o pai.
Manuel Kimbango é um homem franzino que logo à primeira vista chocou-nos por contrariar a imagem agigantada que dele idealizáramos. Na cabeça e no pescoço apresentava grosseiras cicatrizes, a prova do quão perto estivera da morte. Com mal escondido orgulho e de modo muito “saboroso” contou-nos a sua versão da história.
“Quando fui ver a armadilha encontrei lá o “homem”. Saí a correr e fui buscar o meu filho Diogo. O Diogo disse que ia buscar mais polícias no Comando. Eu regressei para o sítio da armadilha e vi que o “homem” continuava lá sentado. Voltei a sair ao encontro do meu filho, até que ele chegou, já armado. Fomos ter com o “homem” mas ele já não estava no mesmo sítio. Tinha se escondido debaixo de uma palmeira. O “homem” atacou o Diogo, lhe arrumou no chão, lhe recebeu e deitou fora a arma. Os dois começaram a lutar no chão e o Diogo gritou: “Pai, vem me ajudar, eu assim mesmo já morri”. Eu fui a correr com a catana e lhe dei (ao “homem”, entenda-se, a onça) duas catanadas. Ao lhe dar a terceira catanada me recebeu e deitou fora a catana. Então começamos a lutar mão a mão. Ele me engatou na cabeça e eu disse: “Pronto, já morri!”. O Diogo afinal tinha se arrastado até junto da arma e disparou contra o “homem”: “Pum, pum, pum!”. O “homem” morreu e pronto, largou a minha cabeça. Lhe levamos até ao Comando Municipal da Polícia e daí nós fomos levados para o hospital.”
Quanto ao resto da história, os bravos golunguenses, pai e filho, viriam a saber já no leito hospitalar. Os sobas da região, ante o insólito facto, oficiaram um ritual tradicional e o administrador municipal fez uma exortação à população. A onça transformou-se em comida, depois de algumas providências especiais: o bigode, considerado veneno letal, foi queimado; os dentes foram oferecidos como relíquias ao comandante municipal da polícia e ao administrador municipal; a pele está a ser conservada.
Manuel e Diogo Kimbango, protagonistas de uma história bem real, correm o risco de se tornarem personagens lendários...

 

Pensamento do dia

“A elite quer se perpetuar no poder. Para isso inúmeras estratégias são desenvolvidas por ela. (...) A elite quer participar e dar as cartas do jogo político. Os seus integrantes são unidos por amplas teias de relacionamentos pessoais, negociações entre o público e o privado, entre grupos e instituições, com sucessivos realinhamentos. A dinâmica dessas relações, embora tenha um caráter aparentemente conjuntural, oculta a lógica do modelo político.”
Maria Fernanda Vieira Martins - A velha arte de governar: um estudo sobre política e elites a partir do Conselho de Estado [do Brasil] (1842-1889)

As gradações da mentira

Onde se fala de mentiras “inocentes” e “sérias”

Isaquiel Cori

Sim e não. Branco e preto. Grande e pequeno. Bom e mau. Alto e baixo. Verdade e mentira... É assim que, na generalidade, o senso comum tende a pintar o mundo, como se a vida fosse uma pobre moeda de duas faces. Pepetela, no seu celebrado romance, “Mayombe”, introduz, entre o sim e o não, a questão do talvez. E entre a verdade e a mentira?
Crescemos a ouvir, e agora dizemos aos nossos filhos, que mentir é muito feio. E que mais vale dizer a verdade, seja em que circunstância for. Mas, como na história bíblica, por analogia, diante da pecadora, quem nunca mentiu, que atire a primeira pedra.
“De quando em vez, uso umas mentirinhas. Por exemplo, às vezes digo aos meus filhos que vamos passear a um determinado lugar e acabamos por não ir”. Tratam-se de mentiras “inocentes”, “sem consequências de maior”, na óptica de Rosa Gracieth, 39 anos. Para lá desse tipo de mentira, ela distingue outro, “mais sério”: “Há aquela mentira que chega a ser um roubo. Por exemplo, alguém vende-te um produto por dois mil kwanzas, quando o seu preço verdadeiro é mil. Mais do que mentira, isso é um roubo”.
Leonilda Damião, 32 anos, é igualmente de opinião que existem mentiras “inocentes”, “toleráveis”: “De quando em vez, quando quero uma coisa do meu esposo, minto, e, ao fim e ao cabo, descubro certas verdades. Quando a mentira não é destrutiva mas saudável, ela contribui para uma boa relação”.
Mentiras afectivas?, interrogamo-nos nós.
Definitivamente, há gradações no mentir. Mentiras “inocentes”. Mentiras “sérias”. Se aquelas são parte íntima do jogo saudável das relações humanas (nesta acepção, podem ser expressas pelos verbos “estigar”, reinar, caçoar, brincar) já estas podem ter efeitos danosos. “Quando alguém me mente sinto-me muito zangada. É triste e frustrante. Perco logo a confiança nessa pessoa”, exclama Leonilda Damião.
“Sinto-me decepcionado, sobretudo se o mentiroso for alguém que convive comigo. Encaro essa mentira como um acto de traição”, acrescenta Adriano Makuéria, 38 anos.
“A mentira, para ser saudável, tem de ter limite. A pessoa que mente tem de saber que não vai prejudicar ninguém”, opina Gina Lopes (não quis dizer a idade), sub-directora pedagógica da escola primária 6.014. “Num desses 1 de Abril, alguém ligou-me a dizer que um amigo morreu. A notícia espalhou-se e até chegou a formar-se óbito, quando na verdade o tal amigo estava bem vivo e a dar as suas voltas. Senti-me muito transtornada e ofendida”, revela.
Gina Lopes acrescenta o fenómeno da mentira aos males que vêem sendo observados e recenseados na sociedade angolana. “Em Angola mente-se muito, tanto a nível das figuras públicas como das outras. Tendem a dizer que podem, quando na verdade não podem. Muitos jovens, quando querem conquistar uma rapariga, fruto da pobreza em que vivem, fazem-se passar por alguém que não são. E agora, com o uso generalizado dos telemóveis, as pessoas tornaram-se muito mais mentirosas”.
Porventura também mente-se por caridade? Por amor?
“Sim”, afirma Leonilda Damião. “Há quem, diante de um defeito do companheiro, para não magoá-lo, prefere mentir”.
Entre homens e mulheres, em Angola, quem mais tende a mentir? À falta de estatísticas, que nos dariam um quadro objectivo do problema, contentamo-nos a colher a opinião dos nossos interlocutores. “Acredito que haja um equilíbrio. Todo o ser humano está sujeito a mentir”, diz Gina Lopes.
Adriano Makuéria é mais contudente: “As mulheres mentem mais. Veja que raramente elas aceitam dizer a sua idade ou, se trabalham, o salário que auferem”.
“Os homens mentem muito mais. Vejo mais seriedade nas mulheres”, defende Casimiro Morais, 40 anos.
Na escala de graduação da mentira há que mencionar aquela que está associada ao maravilhoso, à fábula, ao sonho. Este é o mundo, por excelência, da literatura, da ficção. “O escritor mente para fazer passar a sua mensagem. Ele é um educador, já que tenta criar uma mentalidade nova. O escritor pode recorrer a personagens fictícias para, digamos assim, salvar a sociedade”, refere Timóteo Ulika (pseudónimo literário do historiador Cornélio Caley).

A perspectiva jurídica

Segundo Lazarino Poulson, advogado, não existe mentira legítima. “A mentira é sempre um engano”, afirma. “Eventualmente, a mentira pode ser admissível no âmbito do trato, da cortesia, mas nunca na esfera jurídica. Aliás, há crimes que têm na sua base a mentira. São os casos dos crimes de burla, de peculato, de abuso de confiança e de falsificação”.
Na óptica do advogado, nem mesmo o Dia das Mentiras pode servir de desculpa para mentiras danosas. “Imagine que no dia 1 de Abril alguém desperte um alarme de bomba num aeroporto. Isso pode provocar pânico e daí danos materiais e outros. A esse indivíduo deverão ser imputadas responsabilidades civis e criminais. Quando a mentira provoca danos ou afecta os nossos direitos, ela é muito perniciosa”.
A classe profissional que mais mente, na percepção de Lazarino Poulson, é a das secretárias. Seguem-se-lhe, por esta ordem, a dos políticos, dos advogados e dos jornalistas.
O jurista Noé Filho esclarece que, juridicamente, uma mentira pode redundar num falso testemunho, quando “um indivíduo faz um depoimento contrário à verdade por ele conhecida”. Noé Filho menciona também a figura da simulação, no âmbito do direito civil, “quando alguém pretende realizar um negócio mas age de forma diferente, como se o não quisesse realizar”.
O jurista elucida que, em Direito, a acção consiste em fazer ou em não fazer. “Logo, também pode-se mentir por omissão”.
Ele reconhece que, por razões profissionais, os advogados podem ser obrigados a mentir... por omissão. “Pelo sigilo profissional, os advogados não têm a obrigação de narrar certos factos concernentes à situação dos seus clientes. Eles não podem, no tribunal, dizer algo que possa prejudicar os seus clientes”.
Noé Filho admite que se possa mentir no dia 1 de Abril. “Há mentiras grosseiras, aquelas que, pelo modo como são ditas, não têm a possibilidade de encontrar qualquer crédito. Essas são as mentiras toleráveis no Dia das Mentiras. Já as mentiras mais refinadas, aquelas que são ditas no sentido de produzir um efeito contrário à realidade ou para conseguir um proveito ou para que as pessoas tenham um determinado comportamento, não são, de modo nenhum, toleráveis”.










quinta-feira, 13 de agosto de 2009

Sob o manto do quotidiano nasce uma nova Angola

Isaquiel Cori

Decidida e definitivamente Angola está a mudar. Não será exagero afirmar que o país está a viver um momento revolucionário, de implicações tão profundas em todo o tecido humano e social, que só daqui a uma ou várias gerações se poderá aquilatar da sua verdadeira dimensão.
As mudanças ocorrem aos olhos de todo o mundo, mas estamos tão ocupados a viver o nosso dia a dia que não paramos para reflectir sobre elas. O aspecto mais visível são as grandes obras de reconstrução e construção de infra-estruturas um pouco por todo o país. Grande parte das grandes cidades já estão ligadas entre si por estradas boas, que proporcionam conforto e prazer ao viajante e levam e trazem as mercadorias que dão nova vida aos angolanos.
As nossas cidades estão mais limpas, verdes e organizadas. A miséria, que era tão visível nas localidades do interior aí há pouco menos de dez anos, recuou, já não é tão visível. Os cidadãos (homens, mulheres e crianças) que vemos ao longo das nossas estradas nacionais, já não estendem uma mão faminta aos passantes. Pelo contrário. Ou acenam para as viaturas com produtos para vender, ou as ignoram completamente, de tão ocupados a trabalhar para o seu sustento.
Novos equipamentos sociais, entre os quais avultam as escolas e centros médicos, multiplicaram-se por esta Angola a dentro, aproximaram-se dos beneficiários, conferindo uma melhor qualidade de vida às pessoas.
Não haja dúvidas: de todo este contexto de prosperidade, em primeiro lugar material, está a emergir um novo tipo de cidadão, uma nova sociedade. Com a grande aposta na educação e na saúde há-de haver uma reconfiguração no seio das elites, com a entrada em cena de novos contingentes.
Ora, é sabido que país nenhum no mundo se desenvolveu sem instituições e líderes fortes e competentes. E as instituições e os líderes só são fortes quando a sua autoridade se baseia na moral. Ou melhor, na moralidade.

A crise da literatura angolana

Nem durante a “longa noite colonial” o cenário foi tão péssimo



A literatura angolana anda nas ruas da amargura. Nunca, nem sequer durante a “longa noite colonial”, a literatura angolana viveu momentos tão péssimos. O cenário actual é confrangedor. O movimento literário desapareceu, os grandes escritores, enquanto cidadãos e portadores de opinião, andam remetidos ao silêncio. Há muito que não surge uma obra, um romance ou um poemário de rotura ou que sintetize e ilumine, com a mais elevada qualidade estética, a época em que vivemos.

Isaquiel Cori

Os concursos literários, que são uma das formas de incentivo à criação literária, estão reduzidos aos prémios do INALD, que entretanto pecam por falta de publicidade, e aos da Sonangol, cada vez mais bissextos e virados para a “universalidade”, isto é, tendencialmente menos angolanos.
O suplemento cultural-literário “Vida Cultural” do Jornal de Angola – uma nova denominação, infeliz, para o tradicional e histórico “Vida e Cultura” – desapareceu abruptamente, com o estranho argumento de que não apresentava qualidade e estava eivado de erros.
Para quem não sabe, o “Vida e Cultura” foi um dos principais canais de veiculação da literatura angolana desde os anos 1980. A chamada Geração de Oitenta da literatura angolana deu-se a conhecer e fez a maior parte do seu percurso inicial por via das páginas do “Vida e Cultura” do Jornal de Angola. Todos os seus integrantes (Lopito Feijó, João Maimona, Sílvio Peixoto, António Panguila, Fernando Kafuqueno, Luís Kandjimbo, E. Bonavena, Frederico Ningi, José Luís Mendonça, Paula Tavares, Ana de Santana, Conceição Cristóvão, João Tala, e outros) começaram a publicar naquele suplemento. A Brigada Jovem de Literatura (ou melhor, as brigadas jovens de literatura) teve ( tiveram) no “Vida e Cultura” o espaço privilegiado de divulgação. E não só. O movimento Ohandanji e escritores ou amantes da literatura solitários sempre tiveram no “Vida e Cultura” um território de circulação predilecta.
Mas não é só isso. Um dos índices do estado de crise da literatura angolana está nas fracas tiragens das obras publicadas. Mil ou mil e quinhentos exemplares são a fasquia máxima das tiragens.
Os angolanos (16 milhões, segundo algumas estimativas) serão tão analfabetos (tão pouco amigos da leitura) que jamais possam dar origem a um “best seller”? Os escritores angolanos serão tão “fracos” que são incapazes de interessar os seus concidadãos à leitura das suas obras?
Aqui, chegamos à responsabilidade dos editores. A única e grande responsabilidade do escritor é escrever boas obras. Os editores têm a sua quota de responsabilidade na crise actual da literatura angolana. O livro é uma mercadoria como qualquer outra. É preciso publicitar o livro e o autor. Sobretudo o livro. Isso implica dinheiro, evidentemente. O exemplo mais evidente, e que deve ser seguido, é o da música.
A música angolana, enquanto fenómeno cultural e social, explodiu. Todos os géneros musicais cultivados em Angola são muito bem ouvidos. As tiragens dos discos são determinadas pela procura. Mas essa procura é “procurada”. Isto é, o disco é publicitado através de todos os recursos disponíveis. Os editores musicais são tão agressivos a “vender” o seu produto que não deixam ninguém indiferente. Como nunca aconteceu na história de Angola, os discos chegam a alcançar tiragens de vinte mil cópias, numa primeira edição. Em função da procura, chega-se a partir para uma segunda edição com igual número de cópias. É obra!
A crise actual da literatura angolana é bastante tributária da crise do sistema de ensino. A escola devia ser um dos principais canais de veiculação das obras literárias, através de programas de leitura obrigatória. Mas, convenhamos, como prover as necessidades de milhares de escolas secundárias, institutos médios e universidades, com míseras tiragens de mil e quinhentos exemplares?
Enquanto não surgir uma crítica literária séria e profissional, que faça a destrinça do trigo e do joio, de modo a impedir que o espaço da literatura seja um terreno fértil para cavalgadas políticas de oportunistas que procuram subir na escadaria social a todo o custo, o cenário não vai mudar.
A comunicação social também tem de mudar de postura. Do mesmo modo que nem tudo que brilha é ouro, nem tudo que é livro é literatura. Um manual de direito ou de economia, um livro de receitas culinárias, não é, rigorosamente, uma obra literária. A comunicação social, em parte, à falta de outras instâncias de legitimação e consagração como a crítica profissional e académica, é responsável pela mediocridade e facilitismo que reinam nas letras angolanas.
Há um outro factor responsável pela crise da literatura angolana. Já não existe o activismo literário, exceptuando muito poucas e raríssimas excepções. Os eventos literário-culturais são raros e dificilmente são frequentados por figuras consagradas das letras. Nomes que há relativamente poucos anos eram referência do cenário literário nacional, fossem como autores ou activistas, simplesmente desapareceram e ninguém sabe deles. O que é certo é que fisicamente ainda não morreram.
Reina o espírito do politicamente correcto na literatura angolana. A transgressão, a rotura, seja estética, discursiva ou de atitude, que é próprio da literatura enquanto arte, simplesmente desapareceram. Há como que uma tendência, por parte dos escritores, para a obtenção compulsiva (obsessiva) de um reconhecimento político-institucional que lhes facilite a assimilação, a integração no sistema político-institucional. Assim, a literatura é vista como apenas um caminho, um meio para acomodação política, social e material.
A Universidade também tem a sua quota parte de responsabilidade. A literatura, em todo o mundo, é objecto de elevados estudos académicos, resultando em teses de licenciatura e doutoramento. Em Angola, neste capítulo, estamos numa fase incipiente. Aliás, ainda não se pode dizer que a literatura angolana já tenha conquistado o espaço universitário.
A literatura é imprescindível ao desenvolvimento humano de qualquer país. A literatura fixa a memória colectiva de modo humano e humanizante. A literatura penetra no canto mais profundo da alma da Nação, traduz o sentimento e as esperanças do povo. Há que, urgentemente, acabar com as barreiras que impedem o desenvolvimento da literatura nacional.

Adriano Mixinge, historiador e crítico de arte: "A crítica de arte é um exercício de rigor que começa no atelier do artista"


Adriano Mixinge (nascido em Luanda, em 1968), historiador e crítico de arte, lançou em Luanda o seu mais recente livro, “Made in Angola: Arte Contemporânea, Artistas e Debates”, com chancela da editora francesa L’Harmattan. Como o título indica, a obra é um conjunto de ensaios sobre a arte e os artistas angolanos, residentes no país ou na diáspora. É o seu segundo livro depois do romance “Tanda” (Chá de Caxinde, 2007). Aproveitamos a oportunidade do lançamento da nova obra de Adriano Mixinge, actualmente conselheiro cultural da embaixada angolana em França, para o abordar a respeito de questões atinentes à arte contemporânea angolana. Aproveitamos igualmente o ensejo para “mergulharmos” um pouco nas origens do próprio autor, na raiz do seu interesse pela arte.

Por: Isaquiel Cori

Sabemos que formou-se em Cuba, para onde foi muito novo. Que idade tinha na altura? Pode dizer-nos das circunstâncias em que foi parar a Cuba, em 1979?
Adriano Mixinge (AM)
- Eu tinha onze anos quando fui acompanhar a minha irmã São a uma das sedes da Organização dos Pioneiros Angolanos (O.P.A.), ali no bairro Miramar, porque ela tinha sido seleccionada para ir estudar a Cuba.
A minha irmã tinha na altura treze anos e tinha um certo ascendente sobre mim. Fomos entregar as suas fichas de inscrição e a Camarada Vivi – Vicência de Brito - ao ver-me todo atento àquela démarche da minha irmã perguntou-me se eu, todo pequeno, não estava interessado em ir, também. Eu aceitei logo, mas a Camarada Vivi disse que eu tinha que ter o consentimento dos meus pais, coisa que veio a acontecer pouco depois.
A minha mãe diz que no dia da viagem, era tanta a minha ansiedade em ir que saí de casa com parte da roupa, que entretanto ela tinha lavado na véspera, ainda húmida. Acompanhar a minha irmã naquele dia provocou a primeira grande viagem da minha vida.
Como era o ambiente na Ilha da Juventude? As preocupações dos estudantes resumiam-se aos estudos? Acompanhavam o desenrolar da vida em Angola, nomeadamente o curso da guerra?
AM -
Para um menino da minha idade, o ambiente da Ilha da Juventude era paradisíaco: viver, estudar e trabalhar naqueles internatos, em que os dormitórios, as salas de aulas e a biblioteca, bem como os campos de cultivos - cítricos, fundamentalmente, mas também mandioca ou mamão, por exemplo - estão num perímetro restrito e bem delimitado, deu-me a maior segurança que podia ter para conjugar o estudo e o trabalho, algo que sabíamos Che Guevara defendeu que estaria na base da formação do Homem Novo.
Unido aos estudos e ao trabalho, sempre estiveram também o desporto e a cultura. Nos primeiros anos, a dança popular e a literatura, ou mais concretamente, a poesia engagé. As danças populares a que me referido são mesmo as de salão, já que aos fins de semana podíamos organizá-las, no “Passeio Central”, que era a vitrina em que os melhores bailarinos exibiam-se prazenteiramente e onde surgiram casais, muitos dos quais ainda continuam juntos.
Em 1979, a Internet ainda não existia e/ou a era digital era uma invenção militar muito longe de massificar-se. Assim acompanhávamos pouco o desenrolar da vida em Angola e aos onze anos, e certamente pela distância, eu via a guerra como se fosse um fantasma igualzinho ao cambungú.
Acredito que para os adolescentes que ali estavam a percepção era diferente, mas para o menino de onze anos que eu era, a guerra era um assunto que não entrava dentro das preocupações imediatas: os meus amigos e eu, o que queríamos mesmo era ir procurar frutas das montanhas, para melhorar a nossa dieta alimentar que era quase franciscana.
Depois da Ilha da Juventude ingressou na Universidade de Havana, onde se formou em História da Arte. Mas o seu interesse pela arte é certamente anterior à sua ida para a Universidade. Chegou a praticar antes algum género artístico?
AM -
O meu interesse pela Arte não foi anterior a universidade. Eu nem queria estudar Arte: eu fiz os meus estudos pré-universitarios a pensar que iria estudar engenharia, mas vários incidentes na altura do encaminhamento provocaram que tal não acontecesse. Mas os Dários, o Dário Olavo e o Dário Van-Dunem, dois dos meus melhores amigos na época, eram leitores viciados e, então, com eles, comecei o meu primeiro ciclo de leituras, muito básicas – de Corín Tellado a Mário Puzo - como alguns meninos, eu também começaria a coleccionar selos.
Se antes mesmo de entrar da universidade, desinteressei-me por enriquecer aquele embrião de colecção filatélica, o mesmo não aconteceu com a leitura, esse é um hobby que viria a converter-se em profissão e acompanhar-me sempre: Thomas Mann, Marcel Proust, Milan Kundera, Vicente Huidobro, William Faulkner e Umberto Eco, entre outros, foram alimentando o fim da minha adolescência .
Excepto por um certo cuidado com a caligrafia, algo que vem do meu pai, não pratiquei nenhum género artístico até ter passado as provas de aptidão para a Faculdade de Educação Artística, do Instituto Superior Pedagógico “Enrique José Varona”, no bairro de Marianao, em Havana: os professores disseram-me que eu tinha possibilidade de desenvolverem-me, mas desenhar e pintar vieram a revelar que não eram mesmo o meu forte.
Qual é o panorama artístico que encontrou em Angola, após o seu regresso? Nessa altura quais foram os artistas que mais o impressionaram, tanto pela sua obra como pelo contacto pessoal?
AM -
Depois de terminar a Licenciatura, eu regressei a Luanda, a 8 de Maio de 1993. Dois dias depois, no dia 10 de Maio, o Viteix morreria. Mesmo sem o conhecer pessoalmente a sua morte abalou-me profundamente.
Mas, o panorama artístico era e em parte ainda continua a ser muito confuso, porque pelas reminiscências da ideologia totalitária dos anos em que travestimos à nossa maneira a ideologia marxista e fizemos fragmentários ensaios de socialismo. De uma maneira muito estendida, no país, as artes e a literatura costumam ser meios para atingir fins políticos e não o lugar em que a curiosidade e a inquietação criativa e intelectual se auto-satisfaz, produzindo uma ordem vital, comportamentos e uma moral tendencialmente elevada dos criadores e dos que interagem com as obras artísticas e literárias.
Datam daqueles anos os meus primeiros encontros pessoais com alguns escritores escritores já consagrados, Uanhenga Xitu e Pepetela, por exemplo. Outros na “bela flor da idade” como o Sílvio Peixoto, o José Luís Mendonça e o João Melo. Ou ainda aqueles que depois descolariam como o Fernando Kafukeno e a Amélia Dalomba.
Mas, naqueles anos, tiveram um efeito muito estimulante em mim a releitura de “Apuros de Vigília” de Luís Kandjimbo, a leitura de “Ana Manda, os filhos da rede”, o ensaio e tese de doutoramento de Ruy Duarte de Carvalho, e pouco depois, “O feitiço da Rama de Abóbora” de Tchikakata Mbalundu e o início da minha amizade com a Ana Maria Faria, que poria o tom inconformista e crítico, no embrião de sociedade civil, tudo isso no panorama literário e das ideias.
Especificamente, no âmbito das artes, e porque fui mostrar-lhe o capítulo da minha tese de licenciatura dedicado a obra dele dos anos 80, o António Ole ia preparando a sua exposição “Margem da Zona Limite”, que viria a acontecer em finais de 1994 e, apesar dessa coisa de (re)apropriar-se (ou imitar) modus de fazer de Jean-Michel Basquiat, o artista plástico Fernando Alvim ia animando os meios artísticos e foi por estes anos que tivemos o nosso primeiro contacto frente a galeria Humbihumbi, do Tirso de Amaral.
Já agora, quais são os traços identitários das artes plásticas angolanas?
AM -
As artes plásticas angolanas são um compêndio de múltiplos cânones estéticos que, falando de uma forma muito esquemática, situar-se-iam, por exemplo, nas pinturas rupestres de Tchitundo Hulo, Virei e noutras estações arqueológicas do Sudoeste de Angola, na estatuária e na escultura, na cerâmica ou no têxtil Kongo, Cokwé e Umbundu, entre outras culturas tradicionais de Angola. Estas seriam as bases constituintes de um cânone milenário, ancestral e pré-colonial.
A estética da arquitectura das fortalezas e das igrejas cristãs de Angola, construídas entre os séculos XVI/XIX, o urbanismo e a arquitectura das cidades, bem como as produções artísticas e literárias, incluindo a pintura paisagista, o desenho etnográfico e o artesanato surgido da implantação da herança ocidental, judaica e cristã em Angola e o seu imaginário, no período colonial, seriam segmentos do cânone colonial.
Enquanto que, por exemplo, a re-apropriação nas artes plásticas da história e das iconografias tradicionais, tanto a ancestral como a colonial, estariam na base do cânone moderno e contemporâneo pós-colonial, que ao contrário dos outros e pelas transformações tecnológicas dos últimos anos, tem uma componente universalista e global bem mais marcada e pode manifestar-se das mais múltiplas formas.
É na dinâmica entre estes diferentes tipos de cânone, nas suas condições de preservação, nos questionamentos a que foram e são constantemente submetidos, bem como nas estratégias de implosão e redefinição de uns e outros que situar-se-iam ou podem surgir, então, alguns dos elementos configuradores do particularismo transcendental da nova estética da Angolanidade.
Tem podido acompanhar a dinâmica actual das artes plásticas angolanas? O que nos pode dizer a respeito dessa dinâmica?
AM -
As manifestações da dinâmica actual das artes plásticas angolanas podem ser vistas, ao menos, em quatro contextos fundamentais: em Luanda, lugar em que as iniciativas privada, pública e estatal têm maior peso. Quanto ao que ocorre no interior do país sabemos muito pouco. Há o contexto das diferentes diásporas angolanas e, finalmente, das expressões da ubiquidade da Angolanidade, que podem manifestar-se ali e onde quer que haja um criador que trabalhe com base num substrato cultural colectivo e ou individual que identificaríamos como angolano.
Cada um destes contextos têm especificidades próprias que exigiriam uma análise detalhada, mas eu diria que em Luanda e apesar tanto dos meios financeiros disponíveis - que não são poucos - e do ruído mediático que provocam, as principais iniciativas artísticas privadas, nomeadamente as associadas à chamada Trienal de Arte de Luanda ou em redor do Etona são imaturas e têm sintomas de uma certa “elefantíase”, com toda a certeza por causa do autodidactismo dos primeiros e pela malformação artística dos segundos.
No sector público, refiro-me à intervenção e estímulo das empresas públicas e bancos às artes plásticas, com honrosas excepções e com as limitações que conhecemos, o trabalho de Jorge Gumbe e da ENSA-Seguros de Angola, é um bom exemplo. O que acontece é que não têm uma “política de aquisições” devidamente elaborada que permitiria estarem seguros da qualidade das obras que adquirem e padecem de uma certa tendência a um decorativismo básico e emocional.
Relativamente ao Estado e enquanto não houver um Museu de Arte Contemporânea, é ao Salão Internacional de Exposições que deveria recair a responsabilidade da promoção dos artistas plásticos e outros criadores em Angola e no estrangeiro, mas para tal haveria que independentizá-lo de uma vez por todas do Museu de História Natural, não só porque é assim como funcionava no tempo colonial, mas e sobretudo porque as implicações ideológicas e conceituais disso são melindrosas.
Do interior não falarei, mas da diáspora e dos actores e expressões da ubiquidade da Angolanidade sim, porque devemos reconhecer que pela qualidade do ensino artístico que muitos artistas angolanos adquiriram e adquirem fora do país, no geral, a qualidade formal tende a ser maioritariamente superior, mesmo que as reelaborações conceituais não tanto assim, pelo menos até agora.
Actualmente o movimento artístico, no que a exposições diz respeito, apresenta-se bastante fraco. Qual a causa disso?
AM -
Actualmente, o nosso calcanhar de Aquiles é a formação, no geral, e a formação artística em particular, e não é por acaso que o Ministério da Cultura estabeleceu a formação artística como uma das suas prioridades fundamentais. Sem deixar de apoiar e estimular a formação não-formal ou informal, uma educação artística formal, ultra-moderna e adaptada às realidades culturais angolanas é o segredo para que possamos reverter o actual estado das coisas.
Nos programas de estudo, uma atenção especial deve ser dada aos lugares dos discursos e às perspectivas de estudo e análise da história universal das artes, da história da arte africana, tradicional, moderna e contemporânea, de maneira a propiciar a subversão do eurocentrismo e estimular a legimitação das nossas visões endógena e universal, sempre dinâmicas e autocríticas, que obviamente deverão estar ancoradas no particularismo transcendental da Angolanidade.
As artes plásticas em Angola são apreciadas maioritariamente por estrangeiros e uma pequena, muito pequena, elite de angolanos. O que fazer para mudar este quadro?
AM -
Acho que aceitar a ideia de que os apreciadores da arte angolana são maioritariamente estrangeiros e uma muita pequena elite de angolanos reflecte uma visão reducionista das dinâmicas de recepção artística, já que uma coisa é apreciar e outra comprar.
Se estivermos a falar só de comprar obras de arte, aí concordo completamente consigo. Mas, no que à apreciação se refere, a questão é muito mais complexa e a experiência me diz que não devemos subestimar a capacidade que têm todos os seres humanos de lidar naturalmente com o belo.
No entanto, criação e a apreciação artística são, passe a expressão, reversos de uma mesma moeda. Para uma coisa e para outra, a educação artística tem um papel relevante a desempenhar e, por exemplo, ao contrário do que muitos pensam, a longo prazo, a disciplina de “Apreciação da arte e da cultura” pode e deve ser ministrada em todos os níveis de ensino.
É verdade que, neste momento, esta é uma sugestão que nem o Estado, nem ninguém estaria em condições de aplicar, mas a experiência cubana neste sentido é pioneira e, em três gerações, poder-se-iam formar formadores e ir sentando as bases do surgimento de gente artística e culturalmente mais cultivada.
Nos anos 80 e em parte dos 90 houve um grande entusiasmo à volta das artes plásticas, que então terão estado muito próximo da massificação, no sentido em que era praticada e apreciada por um grande número de pessoas. Hoje isso já não se verifica. O tempo terá finalmente acabado por fazer a depuração, fazendo permanecer no activo apenas os melhores?
AM -
Em parte podes ter razão, mas penso que não podemos analisar o lugar das artes plásticas fora do contexto geral das transformações sociais, políticas, económicas e, no geral, simbólico-expressivas verificadas em Angola.
A diferença com os anos 80/90, certamente, tem a ver com a incorporação dos circuitos e actores da artes plásticas na lógica da economia de mercado, como nunca antes se tinha verificado. Hoje a depuração é ditada pela capacidade de influência e adaptação dos criadores ao mercado angolano e isso, como sabemos, obedece a uma lógica que é completamente extra-artística.
O que é certo é que os melhores tenderão com certeza a sobreviver e mesmo a desenvolver-se e aí, então, poderão viver exclusivamente da arte e propiciarão o surgimento do artista próspero e não do “aparente pobre” como aconteceu, em Angola, em todo o século XX.
Quais são as grandes referências actuais, em termos de nomes e tendências, das artes plásticas angolanas?
AM
- Como fiz questão de sublinhar no livro de ensaios que acabo de publicar, um ambiente trepidante e libertário parece ter-se apoderado do melhor e do mais polémico da arte contemporânea angolana: António Ole, Miguel Petchosky, Franck Lundangi, Yonamine Miguel, Helga Gambôa, Van, Chikukuango Cuxima Zwa, Osvaldo da Fonseca, Álvaro Macieira, Nelson Costa e Nástio Mosquito, nas artes visuais e plásticas, estão na vanguarda de algumas das mais interessantes propostas estéticas e experimentações do momento.
O que esteve na génese do livro “Made in Angola: Arte Contemporânea, Artistas e Debates”?
AM -
Dois quadros, o “Animal Ferido” (1985) de António Ole e “Paz” (2005) de Franck Lundangi, marcam diferentes etapas do meu interesse pela arte contemporânea angolana, seus artistas e debates. Por isso, decidi reunir trinta e cinco ensaios, incluindo análises críticas da obra de mais de quinze artistas plásticos angolanos e uma dezena de artistas africanos, sem deixar de fazer uma abordagem interdisciplinar a propósito das relações entre a arte e a economia, a arte e a literatura e a arte e a ecologia, só para citar três exemplos e, também, incluindo um capítulo sobre cinema angolano, ressaltando essas novas imagens da Angolanidade.
Portanto, este livro espelha essa etapa do meu trabalho como historiador de arte e tento explicar em pormenor que as manifestações do particularismo transcendental da Angolanidade, nas artes plásticas, são o resultado de permanentes disputas e transfigurações simbólicas, iconográficas e expressivas com uma importância crucial na construção da nossa identidade e imagem colectiva.
Nota-se que este livro, para além da abordagem objectiva que procura fazer dos artistas e suas obras, está mesclado com episódios autobiográficos, relacionados precisamente com a sua interacção pessoal com os artistas. Em que medida o juízo de valor que faz da obra deste ou aquele artista não estará determinado pela qualidade do relacionamento pessoal com os mesmos?
AM
- A crítica de arte tal e qual como a entendo é um exercício de rigor, que começa no atelier do artista, antes mesmo que a obra que esteja a ser realizada, terminada ou do dia da vernissage da exposição. Interessa-me essa fruição primária com o criador, com o contexto que o envolve, porque creio que este tem componentes que, de uma forma ou de outra, ajudam-me a decifrar as obras que realizam. A maior parte dos artistas de cujas exposições eu fui comissário sabem que há níveis de exigências impostos por mim à partida. E como disse a Ana Maria Faria no dia da apresentação do livro, gosto mesmo – a expressão é dela - do “underground luandense”.
Numa comunicação que apresentou em Luanda no ano passado, disse que em Angola existem “certas capelinhas de legitimação que tendem a construir um espaço hegemónico”. Pode ser mais expansivo a respeito disso?
AM -
Naquela comunicação, que aparece como conclusão no livro, eu fiz uma radiografia da arte contemporânea angolana actual e fazia alusão às consequências nefastas da posição hegemónica do promotor artístico Fernando Alvim ( e de quem inadvertidamente o apoia) para o meio artístico caluanda e para a imagem internacional das artes plásticas angolanas, como de resto, assim o foi também há quando da anterior Bienal de Veneza.. É evidente que a Trienal de Arte de Luanda deve existir, mas como defendemos desde o primeiro momento, não de qualquer maneira, porque senão ela terá um efeito culturalmente reaccionário e contrário aos objectivos que os seus organizadores apregoam.
Qual o efeito da globalização nas artes plásticas africanas, em geral, e angolanas, em particular? Ganha-se ou perde-se com a maior inserção das nossas artes e artistas no contexto universal?
AM -
Se pudermos estar inseridos na dinâmica dos circuitos internacionais de arte mas atentos às armadilhas da globalização, especificamente do seu efeito homogeneizador, e também às manifestações do universalismo eurocêntrico, então, só poderemos ganhar. É verdade que actualmente há uma forte pressão dos meios universitários em favor do surgimento de circuitos alternativos aos existentes, uma vez que estes revelaram-se exclusivistas, artisticamente seguidista e alguns até mesmo corruptos e carentes de honestidade e consistência intelectual.
Portanto, creio que o segredo estaria em não cairmos na tentação do efémero, da fama oca e insubstancial e apostarmos mesmo pela formação, promover exposições e debates sem preconceitos de nenhum tipo, consolidarmos os mecanismos de auto-referencialização artística através de estudos monográficos – e revistas de arte - bem como preocuparmo-nos mais pelo fortalecimento tanto das instituições do Estado, no domínio específico da educação artística e da crítica de arte, como do incipiente circuito de arte, melhorando ou criando mesmo uma legislação que seja vantajosa para todos e cada um dos intervenientes do circuito. E, claro, só assim é que poderemos reivindicar, em Luanda ou em qualquer parte do mundo, o particularismo transcendental da Angolanidade e dialogar, em pé de igualdade, com os outros.