terça-feira, 27 de janeiro de 2009

Eis que continuo aqui...

Isaquiel Cori

2009. Cá estamos. A vida continua. Renovámos os sonhos. E as esperanças. A vontade de lançar a semente das nossas palavras no solo fértil do mundo em que vivemos continua forte. Este ano, que promete ser difícil, também pode revelar-se bastante estimulante. As crises, é sabido, afiam o engenho e tiram da toca o mais cómodo dos homens. Neste ano, no segundo semestre, virá a público o meu romance, "O último recuo", uma reflexão a respeito de aspectos marcantes da história recente de Angola, que os anos que seguem velozes, e vorazes, tendem rapidamente a fazer esquecer, ou a embotar num manto de mil e uma preocupações novas. Vou continuar na senda inicial, que cá me mantêm: desafiar o olvido, colocar a minha pedra no alicerce deste Mundo. Uma inovação que pretendo inserir neste espaço é interagir com outros blogues e blogueiros, angolanos ou não, criar uma corrente positiva com e em volta das palavras. Aguardem-me, estou por aqui. Já volto.

sexta-feira, 7 de novembro de 2008

OBAMA NÃO É A ENCARNAÇÃO DO MESSIAS

Sectores mais radicais da religiosidade africana vêem em Obama a encarnação do Messias, uma espécie de Cristo negro, há muito ansiado, que terá vindo para “salvar”, “redimir”, dignificar e conferir verdadeira humanidade aos negros.
ISAQUIEL CORI


Barack Obama será, a partir de 20 de Janeiro de 2009, o novo inquilino da Casa Branca, a residência mais notável dos Estados Unidos da América. Uma onda de satisfação varreu o Planeta inteiro. Uma nova esperança tomou conta não só dos norte-americanos mas da humanidade inteira.
A ascensão de um negro à Presidência dos Estados Unidos, a maior potência económica, científica, cultural e militar do Mundo, é vista em vastos sectores negro-africanos como o símbolo da redenção da raça negra, depois das épocas infames da escravatura, do colonialismo e da segregação.
Sectores mais radicais da religiosidade africana vêem mesmo em Obama a encarnação do Messias, uma espécie de Cristo negro, há muito ansiado, que terá vindo para “salvar”, “redimir”, dignificar e conferir verdadeira humanidade aos negros.
Igrejas (ou seitas religiosas) como o Kimbanguismo e o Tocoísmo fundam-se, em termos doutrinários, precisamente na crença da vinda de um Messias Negro.
Depois da vitória de Obama os mais despossuídos do Mundo, independentemente da raça, festejaram de modo frenético. Mas não só os despossuídos: vastos sectores da classe média em todos os países também o fizeram. Obama veio de baixo, fez-se a si mesmo. É, ele mesmo, a encarnação do sonho americano. E mais do que isso é negro.
Mas consciente da complexidade da sociedade americana, Obama em nenhum momento fez da sua condição de negro uma das bandeiras da sua campanha eleitoral. Alguns comentários mordazes qualificaram-no mesmo como “mais branco que McCain”, “candidato elitista” e houve até montagens fotográficas que circularam amplamente na Internet em que Obama aparecia como branco e McCain como negro.
Todavia, é impossível que Obama desconheça o forte impacto da sua vitória, enquanto negro.
Num mundo centrado sobre o homem branco, em que até a linguagem funciona como mecanismo de discriminação racial, como o demonstraram vários estudiosos, para vencer, os negros têm de ser muito bons: inteligentes a dobrar, fortes a dobrar, astutos a dobrar.
Aí está o mérito pessoal de Obama: ele foi duplamente mais inteligente, mais forte e mais astuto que McCain. E isto a começar na forma como a campanha eleitoral foi montada, nomeadamente quanto ao esquema de financiamento, que privilegiou os pequenos doadores, os jovens e usou de modo maciço a Internet.
Ora, Obama é um homem de carne e osso. Não é nenhum Messias. É apenas um homem dotado de muitas qualidades e com ambição de liderança. A redenção dos negros não virá necessariamente por aí. É certo que o facto de uma família negra morar na Casa Branca inaugura uma nova era e, em termos simbólicos, derruba a barreira racial no alto escalão do poder. A redenção negra virá, efectivamente, com a ascensão massiva dos negros nos altos escalões da Educação, da Ciência e do empreendorismo e com o seu resgate das garras das drogas, das doenças endémicas e da pobreza crónica, que, no seu conjunto, actualmente parecem um destino fatal. A redenção dos negros reside no progresso económico, social, político e cultural, beneficiando do mesmo tipo de oportunidades que qualquer outro ser humano, independentemente da cor da sua pele.

terça-feira, 4 de novembro de 2008

Pela partilha de ideias, até daqui a pouco

Alló, caros internautas interessados neste espaço.
Agradeço o carinho que tenho recebido de muitos de vós. Sem essa atenção dificilmente encontraria motivação para dar vazão a este projecto. Razões de força maior por vezes obrigam-me a ficar muito tempo sem postar. Entendam-me: é de todo interesse, da minha parte, dar livre curso a este blog.
Na verdade, a sua existência também obedece a imperativos de comunicação pessoal e de interacção humana. Ao longo de todo este tempo cheguei à conclusão que todo o ser humano, independentemente da sua condição económica e social, tem sempre algo a dizer, a comunicar aos outros. A experiência humana, mesmo quando aparentemente vivida por muitos, é irrepetível: o “ADN” de cada um confere à experiência aparentemente comum algo de muito individual, especificamente singular.
Daí que não só prometo dar continuidade ao projecto deste blog como também convido os caros internautas a comparticipar deste processo global de comunicação e troca de ideias que a Internet propicia.
Até daqui a pouco.

Isaquiel Cori

domingo, 12 de outubro de 2008

A CONSAGRAÇÃO DO SILÊNCIO INSTITUCIONAL


As fontes oficiais, os cidadãos que estão investidos de cargos públicos, notadamente governamentais, tendem a fechar-se em copas


Isaquiel Cori



A cultura de Angola, em particular, e de África, em geral, é substancialmente marcada pelo culto do autoritarismo. O autoritarismo, entendido como a ascendência, a supremacia indiscutível do chefe, do mais velho, que também se apresenta como depositário de um saber que emana dos antepassados, está nos interstícios da nossa vida, atravessa toda a nossa sociedade. Trata-se de um autoritarismo que não se impõe pela força, na medida em que é aceite por todos e é uma realidade cultural.

O representante típico dessa forma de autoritarismo é o soba. Na aldeia o soba é o senhor da comunidade. A figura do soba retém muito da autoridade própria das monarquias feudais, de que emana, com tudo de arcaico que isso possa significar.
É, efectivamente, um problema cultural. O chefe, ou melhor, a ideia e a imagem do chefe enchem a cabeça dos subordinados de tal forma que estes vivem a tentar agradá-lo e a sondar o que ele, o chefe, estará a pensar. O desejo de qualquer subordinado, neste contexto, é receber um olhar ou uma palavra de atenção. Um olhar ou uma palavra de atenção do chefe têm o efeito de um reconhecimento explícito. Uma palavra, uma frase, pronunciada pelo chefe, é encarada como um oráculo e os subordinados tentam, com denodo, decifrar a “verdade profunda” de cada um dos pronunciamentos do chefe.
Lá vão poucos anos que, em conversa informal com jornalistas, um destacado ministro do anterior Governo, questionado sobre o seu futuro depois de terminada a função que ocupava, foi mais do que enfático e liminarmente preciso: “Nós estamos em África. E em África as coisas processam-se como numa aldeia. Na aldeia quem manda é o soba. O que o soba diz é o que todos devem fazer”.
Esta é a concepção, na simplicidade com que foi expressa, de poder em África.
Ora, na cerimónia de empossamento dos novos membros do Governo, o Presidente da República, José Eduardo dos Santos, detentor do poder constitucional que lhe assiste, mas também, e acima de tudo, do poder simbólico que emana da realidade histórica, cultural e espiritual africana, disse, a dado momento, numa passagem esclarecedora do seu discurso: “Diz-se que é conversando que os homens se entendem. Mas aqui no Governo penso que é trabalhando bem, com dedicação e disciplina, que todos se entendem. Sei que é um homem [Referia-se ao novo Primeiro Ministro, Paulo Kassoma] de acção e é só isso que de nós se espera - acção, mais trabalho e menos discursos!”
Estas palavras repercutiram de tal modo nos destinatários das mesmas que a comunicação social, nomeadamente os jornalistas, passaram logo a sentir os seus efeitos: as fontes oficiais, os cidadãos que estão investidos de cargos públicos, notadamente governamentais, tendem a fechar-se em copas. O lema, dizem, é “menos palavras, mais trabalho”. Enfim, é a consagração da cultura do silêncio institucional.

terça-feira, 30 de setembro de 2008

POR UMA NOVA ERA NA POLÍTICA ANGOLANA

A renovação da classe política só irá consumar-se com as eleições autárquicas

Isaquiel Cori

Com a tomada de posse dos novos deputados, eleitos nas eleições legislativas de 05 de Setembro, e a formação, em breve, do novo Governo, a classe política angolana tem a grande oportunidade de reaparecer aos olhos da opinião pública com uma imagem de competência e referência incontornável na solução dos problemas que afectam o país e os cidadãos.
A efectivação dos ciclos político-eleitorais tem o grande condão de renovar a classe política, infundindo-lhe sangue novo, com a subida à ribalta de novos contingentes de políticos sedentos de demonstrarem o quanto valem. Aliás, por razões histórico-culturais em Angola a vida política é encarada, ainda, como a principal via para a auto-realização económica: o político de sucesso, com carreira parlamentar ou governativa, no quadro actual (e esperamos que seja sempre assim) jamais cairá nas malhas da pobreza; pelo contrário, é-lhe dado todo o tipo de oportunidades para acoplar à carreira política a condição de empresário. Cabe-lhe aproveitar e caminhar pela vida com o desafogo que só dependerá, em grande parte, da sua criatividade e capacidade de gestão.
A renovação da classe política angolana ficará mais vincada com a realização, no próximo ano, das eleições presidenciais. Mesmo que ganhe o actual detentor do cargo de Presidente da República (trata-se do cenário mais do que provável) necessariamente serão introduzidas mudanças de métodos de actuação e, no que aqui nos interessa, de pessoas no círculo presidencial.
Mas a grande esperança de renovação profunda da classe política vai concretizar-se com a realização das eleições autárquicas: a carreira política estará ao alcance de um número mais vasto de cidadãos interessados. Tais cidadãos serão projectados dos círculos partidários, onde muitos deles levam uma existência de apagados “aparatchiks”, para o universo da vida verdadeiramente pública, junto dos cidadãos e dos seus problemas, podendo então batalhar pelo reconhecimento dos seus méritos ao mesmo tempo que se empenham na solução dos problemas.
As instituições autárquicas serão a grande escola em que a classe política se vai forjar. Os políticos, temperados no dia-a-dia dos bairros, dos municípios, vão suar ao lado dos eleitores e serão obrigados a construir um percurso de dedicação em prol das comunidades. Isto é, estará aberto o caminho para o resgate da política enquanto missão, mais do que isso, sacerdócio, pelo bem público. Quando lá chegarmos, estaremos numa nova era política em Angola.

segunda-feira, 15 de setembro de 2008

À DESCOBERTA DAS CHANAS DO LESTE

Onde se fala de caminhos arenosos no meio da mata e de pistas somente usadas por caçadores
Isaquiel Cori (texto)
Paulino Damião “Cinquenta” (fotos)

A viagem que devia ter começado de manhã cedo acabaria por iniciar apenas por volta das onze e meia. Estávamos no Luena e o destino era o Luau. A viagem, de 362 quilómetros, seria feita ao longo da linha férrea. Passaríamos pela chana, esse tipo de vegetação do Leste, famosa na memória da geração dos guerrilheiros da Luta de Libertação Nacional, magistralmente descrita por escritores como Pepetela e cantada por músicos como David Zé. A chana é um vasto território de capim rasteiro a perder-se na linha do horizonte. Compará-la ao mar é o pensamento que imediatamente nos ocorre.
É impossível viajar pela chana sem evocar o sacrifício daqueles homens e mulheres que durante vários anos por lá penaram, lutando pela independência do país. Muitos dos quais lá morreram e os seus corpos lá estão enterrados algures. O conhecimento da chana permite aquilatar a têmpera dos que durante tantos anos lá viveram, lutaram e sobreviveram.
Patos selvagens voam a meia altura na chana e alimentam-se de peixe nas águas paradas das valas ao longo das linhas do Caminho de Ferro de Benguela. Estamos na estação seca, por isso os pântanos estão secos. No tempo chuvoso a chana transforma-se num vasto pantanal que torna os caminhos inacessíveis mas constitui uma das principais fontes de alimentação da população. Nessas águas turvas os patos disputam os peixes com os pescadores, que também montam armadilhas onde incautas aves se vêem presas pelas patas, impedidas de alçar voo e com o destino marcado para um repasto humano. Os pescadores passam vários dias nas chanas, longe das suas aldeias. Durante esse tempo pernoitam em pequenas cabanas, ao lado das quais secam o peixe capturado.
Em poucas horas de viagem alcançamos a sede municipal do Léua. A paragem é breve, apenas para nos certificarmos do caminho certo. A próxima etapa leva-nos ao Lumeje-Cameia. Pelo caminho, impressionantes destroços vindos de um passado de guerra: locomotivas e carruagens queimadas e enferrujadas, bem como ruínas de estações de caminho de ferro.
A viagem prossegue ao longo da linha férrea. A areia fina obriga, amiúde, o motorista a accionar a alavanca do reforço da viatura. Somos um ponto que se move na chana. Um ponto isolado, pois, aparentemente, mais ninguém circula por aqueles caminhos.
O tempo passa rápido. A noite cai e encontrámo-nos à entrada da sede municipal do Luacano, que, para agradável surpresa, está toda iluminada. Tem iluminação pública e doméstica. Faz muito frio e as ruas estão vazias de gente. Um agente policial vem a correr ao nosso encontro.
“Qual é o caminho que vai directo ao Luau? Estamos a quantos quilómetros do Luau?”, apressámo-nos a perguntar, pois estávamos dispostos a continuar viagem, mesmo durante a noite.
“Depois da aldeia de Muchikengue virem à esquerda. O caminho da direita vai para o Cazombo. Daqui ao Luau são, mais ou menos, cem quilómetros”, informou-nos o agente.
“Tínhamos” de chegar ao Luau naquela noite. Sabíamos que lá a mesa do jantar já estava posta, em casa do Superintendente Lupin, comandante da sub-unidade local da Polícia de Guarda Fronteiras. Luau soava de modo muito especial, talvez por ser a estação terminal do Caminho de Ferro de Benguela e a localidade mais importante do extremo Leste do país.

Perdidos no meio da mata

Logo depois de Muchikengue deparámo-nos com uma encruzilhada. Metemo-nos pelo caminho da esquerda. Ou a explicação foi mal dada ou a percebemos mal: perdemo-nos. Enveredamos por um caminho que logo se tornou uma picada no meio de uma mata cerrada. Na noite escura o carro abria passagem entre o capim alto e seco. Estávamos rodeados de um silêncio enorme. Por vezes deparávamo-nos com pontes improvisadas, precariamente feitas com grossos troncos de árvores. A opção única era continuar a viagem, a ver aonde aquela picada nos levaria. Mais tarde soubemos que nos tínhamos metido numa pista de caçadores, bastante utilizada pelos guerrilheiros durante a guerra de libertação nacional.
Para agravar as coisas, por ter sido maltratado pela brita da plataforma da linha férrea, um dos pneus perdeu ar. Fomos obrigados a parar na passagem estreita e arenosa. A mata vibrava, parecia animada com espíritos antigos, de ancestrais que, aparentemente, queriam dizer qualquer coisa. A tecnologia, na forma de um telefone satélite, era o único meio que nos ligava ao mundo. Foi possível trocar o pneu e continuar viagem. A picada desembocou numa estrada mais larga que nos levou ao caminho certo para o Luau.

Acolhimento inesquecível no Jimbe
O Posto Fronteiriço do Jimbe, a 310 quilómetros do Luau, fica no vértice superior do saliente do Cazombo, na fronteira com a República da Zâmbia. É um local remoto, de acesso difícil. A estrada é um carreiro arenoso e sinuoso no meio da chana. Lá foi possível constatar a dimensão do sacrifício e dedicação do efectivo da Polícia de Guarda Fronteiras. São homens duros, de “barba rija e cabelo nas ventas”. Numa noite fria de rachar os lábios fomos recebidos com um calor e uma amizade inesquecíveis. À volta de uma fogueira animaram-nos do cansaço da viagem contando anedotas e até declamando poemas.
A noite foi entremeada com histórias da guerra. Ela terminou, é certo, mas entre militares é impossível não falar dela, já que ela dominou grande parte das suas vidas. Rimo-nos bastante com histórias de tragédias que agora, milagrosamente, já são antigas.
Na hora de ir dormir aconteceu uma surpresa: o cobertor reservado para os jornalistas estava cheio de kassumunas, aquelas formigas dotadas de uma picada imensamente dolorosa. A solução veio logo, bem ao jeito radicalmente militar: quatro homens estenderam o cobertor sobre as chamas da fogueira, sacudindo-o com cuidado. As formigas não resistiram.

MENDES DE CARVALHO / UANHENGA XITU: O PERFIL POSSÍVEL




Por: Isaquiel Cori

Agostinho André Mendes de Carvalho, ou melhor, Uanhenga Xitu, é inegavelmente um dos escritores angolanos de primeira linha. Pertence à geração de autores mais velhos ainda em actividade. É um dos mestres da literatura angolana. E ele faz jus a esse estatuto não apenas no domínio estrito da criação literária, em que os seus livros servem de inspiração e modelo a muitos neófitos da coisa literária, mas também no do activismo literário, transmitindo aos jovens a sua vasta experiência humana e até apadrinhando-os de modo quase incondicional.
Apesar de ter a sua obra estudada em várias universidades, sendo objecto de teses de mestrado e doutoramento, para além de possuir uma legião incomensurável de leitores fiéis em Angola e noutros países de língua portuguesa, Uanhenga Xitu nunca se assumiu como escritor. Prefere que o considerem apenas um “contador de estórias”.
Mas claro que ele é um escritor. Um escritor de estilo despojado de circunlóquios e floreados “literários”, dono de uma escrita que parece brotar directamente da fala popular. É como se essa escrita fosse tão somente a fixação dessa fala. Uanhenga Xitu, na sua própria concepção, será assim um griot, um desses emblemáticos bardos africanos depositários da memória colectiva.
Correndo o risco de sermos considerados apologistas de uma terminologia desfasada no tempo, diremos que Uanhenga Xitu é um “escritor popular”, cuja escrita simples é um perfeito passaporte para quem se queira iniciar no mundo da leitura. Aqui, é preciso ressaltar que em literatura, como aliás nas artes em geral, o simples não é necessariamente sinónimo de fácil. O mais fácil é escrever “difícil”, “complicado”.
Por detrás da aparente simplicidade da escrita de Uanhenga Xitu emergem figuras e ambientes que jamais tinham sido, tão claramente, realçados na literatura angolana. Na sua obra o quotidiano da vida rural, o “homem do mato”, o ambiente das sanzalas, em toda a sua singeleza e riqueza, são descritos de modo tão honesto e humanizante que se gravam, indelevelmente, na memória do leitor. Personagens como Mestre Tamoda, Kahitu e Manana, ultrapassaram os limites materiais dos livros em que foram concebidos e fazem já parte do imaginário de milhares de leitores angolanos e estrangeiros.
A abordagem rural da escrita de Uanhenga Xitu hoje, 33 anos depois da nossa independência, de liberdades constitucionalmente asseguradas ao cidadão logo à nascença, pode parecer aos olhos de leitores desavisados algo “normal” e “pouco importante”. Ela pode ser melhor compreendida se dissermos que Uanhenga Xitu pertence a uma geração de angolanos que foi submetida aos rigores do processo de assimilação cultural, pelo regime colonial. Esse processo visava, em última instância, que o autóctone negasse a sua própria cultura, a sua história, e adoptasse a cultura do colonizador.
É nesse contexto que se deve valorizar o feito de Uanhenga Xitu: constitui um acto de resistência, ou melhor, de libertação. (Lembre-se que tanto “Mestre Tamoda” como “Kahitu” foram escritos durante os anos em que o autor esteve preso, por actividades nacionalistas, no centro prisional do Tarrafal, na ilha de Santiago, em Cabo Verde).
Agostinho André Mendes de Carvalho, o homem, o político e também o escritor, já foram alvos de homenagens públicas, merecidas. É sempre bom quando um ente humano é testemunha das homenagens públicas e cerimoniais que lhe são prestadas. Mas o maior tributo que se pode prestar a um escritor é a reedição e a difusão dos seus livros.
Aos 84 anos de idade, Agostinho Mendes de Carvalho, a encarnação de Uanhenga Xitu, é um político angolano de referência. O MPLA tem tudo para se sentir orgulhoso de ter nas suas hostes um cidadão cuja dimensão é tão grande ao ponto de constituir-se numa das reservas morais da nação.

LIÇÕES A TIRAR DOS RESULTADOS DAS ELEIÇÕES LEGISLATIVAS EM ANGOLA

Isaquiel Cori

Com a consumação das segundas eleições legislativas e a consequente vitória arrasadora do MPLA, o país entra num novo ciclo político-institucional. Como disse o Presidente da República, José Eduardo dos Santos, inaugurou-se “uma nova era, uma nova maneira de fazer política”.
As eleições, como é normal num processo competitivo, trouxeram a alegria a alguns e amargos de boca a outros. Mas ao fim e ao cabo, como foi dito por vários comentadores, ganhou o povo angolano, que teve a oportunidade de influenciar directamente na escolha dos seus governantes e vê assim robustecida a democracia.
A permanência dos ciclos eleitorais é a melhor maneira de separar o trigo do joio no universo da política. Até ao último dia da votação prosperavam no país, à sombra do maná do financiamento público, ao lado de notáveis personalidades políticas, líderes políticos medíocres à frente de partidos igualmente medíocres, que mais pareciam conglomerados de mercadores. A classe política angolana, a prazo, corria o risco de perder toda a credibilidade, invadida que estava por mercenários, gente sem escrúpulos nem pruridos éticos.
A normalização do ciclo eleitoral, para além do indispensável banho de legitimidade política, propiciará, certamente, o retorno da figura do político dotado de espírito de missão, com preocupações éticas e honesto nas suas pretensões porque se sabe escrutinado pelos eleitores.
As eleições legislativas de 2008, e os seus resultados, deram inúmeras lições a todos os intervenientes.
Primeira lição: Os eleitores angolanos estão maduros, mais bem informados, e já não ficam à mercê dos discursos encantatórios de um qualquer político demagógico. Efectivamente, a população votante, de 1992 para cá, viu-se reforçada com um enorme contingente de jovens - muitos dos quais votaram pela primeira vez - dotados de um nível educacional maior e donos de uma cultura predominantemente urbana, com acesso às novas tecnologias de comunicação e informação e, por isso, voltados para os fenómenos modernos da globalização.
Segunda lição: Aos partidos da Oposição não basta criticar o partido no poder. É preciso apresentar programas concretos, alternativas reais (e não abstractas) de mudança na governação, que satisfaçam as aspirações do eleitorado, sobretudo das suas franjas maioritárias, notadamente os jovens e as mulheres.
Terceira lição: a campanha eleitoral não começa às vésperas das eleições. A política é uma actividade de todos os dias e os partidos políticos, se de facto querem assumir a sua vocação para o poder, devem mergulhar no quotidiano do eleitor, nas comunidades, nas suas preocupações diárias, nos seus sonhos de vida. A “campanha porta-a-porta”, apressadamente encenada pela maioria dos partidos, durante o período oficial da campanha eleitoral, teve contornos ridículos e pretendeu esconder a incapacidade dos mesmos de juntar sequer uma centena de pessoas em comícios.
Quarta lição: É preciso deixar de fazer política apenas via conferências de imprensa. O político tem de ir à estrada, palmilhar o país, tirar o fato, arregaçar as mangas, suar e misturar-se aos cidadãos comuns, que, afinal, têm a chave da porta de entrada para o edifício do poder.
Quinta lição: Os eleitores querem um compromisso com o futuro. Doravante, quem quiser ganhar as eleições em Angola tem de estar um passo, ou mais, à frente dos outros. Tem de apresentar uma visão do país, nos próximos quatro anos, que signifique um avanço, um aumento da prosperidade, uma melhoria real, concreta, pessoal, individual, de vida.
Sexta lição: Os partidos da Oposição, incluindo a UNITA, e isso justifica a grande diferença de votos em relação ao MPLA, não captaram o impacto das transformações económicas e estruturais ocorridas no país ao longo dos últimos seis anos. O mote do discurso da Oposição – a mudança – já estava desactualizado: mudar para quê, se Angola já vem mudando, aos olhos de todos, desde 2002? As obras de reconstrução nacional, consubstanciadas na edificação e reabilitação de pontes, estradas, escolas, hospitais, etc., etc., voltaram a ligar o país, deram um novo ânimo aos cidadãos, dinamizaram a vida, enriqueceram o quotidiano, fizeram subir a fasquia do sonho angolano. As obras de reconstrução nacional são o esteio da mudança pretendida pelos eleitores.
Sétima lição: A Oposição, sobretudo a UNITA, não compreendeu que Angola, desde 1992, sofreu profundas transformações sociológicas. A guerra pós-eleitoral de 1992, e outras ocorridas antes, provocou gigantescos movimentos migratórios e detonou o mapa étnico do país. Tal “mapa”, hoje, em termos científicos, é uma falácia: os angolanos estão mais misturados do que nunca.
Em suma, o MPLA ganhou esmagadoramente as eleições porque é o partido que, hoje, mais está em sintonia com a Angola do futuro. A ver vamos se nos próximos quatro anos mantêm ou não este privilegiado estatuto.

CABINDA QUER SER O PRINCIPAL PÓLO DESPORTIVO DE ANGOLA





Isaquiel Cori │ Cabinda
Eduardo Pedro (fotos)

De manhã, a tarde e à noite o pavilhão desportivo da escola Barão de Puna acolhe dezenas de jovens ávidos de se aperfeiçoarem na prática desportiva. Rapazes e raparigas ora correm ao longo da quadra ora disputam a bola entre si. O suor corre-lhes pelo corpo e o entusiasmo é-lhes visível no rosto e nos gritos com que se autoestimulam. Amélia Simba, 13 anos, estudante da 7.ª classe, treina andebol há 3 meses. De segunda a sábado faz-se presente aos treinos e ela não esconde a sua ambição: “Quero chegar à selecção nacional de andebol”. O seu ídolo desportivo, a figura que lhe serve de farol no quadro do seu sonho, afirma ela, é a campeã Ilda Bengue. “Sonho ser tão famosa como ela”.
A pequena Amélia treina-se no âmbito do Promad, um projecto de massificação desportiva, gizado pelo Governo provincial com a intenção não só de ocupar os tempos livres dos jovens mas também de descobrir novos talentos para a alta competição. O projecto que começou com a modalidade de basquetebol estendeu-se ao andebol e ao futebol.
No basquetebol o Promad já deu resultados mais que visíveis: Cabinda já tem atletas na alta competição, inclusive na selecção nacional e em clubes estrangeiros.
Um dos principais alicerces do Promad é a formação de formadores. Quinze monitores formam atletas de basquetebol. O Governo de Cabinda contratou técnicos especializados para a abertura de várias escolas de futebol, que irão funcionar nos quatro municípios da província: Cabinda, Cacongo, Buco Zau e Belize. “Mandamos também vir técnicos para formação de ciclistas, pugilistas e nadadores”, revela Inocêncio Tomás Júnior, director provincial da Juventude e Desportos.
O Promad não é uma iniciativa isolada. As autoridades provinciais não escondem a sua intenção estratégica. “Queremos tornar Cabinda no principal pólo de desenvolvimento desportivo do país. Esta é uma grande aposta do Governo da província e, em particular, do seu governador”, diz Inocêncio Júnior.

Nada periga o CAN’2010

Não são meras palavras ou intenções vazias. Hoje, Cabinda já se afirma como um dos maiores parques desportivos do país. Desde a realização do Afrobasket, em 2007, Cabinda beneficiou de novas infra-estruturas, como é o caso do Pavilhão Multiuso do Tafe. Na província existem oito pavilhões desportivos cobertos, nomeadamente os pavilhões multiuso da escola Barão de Puna, do Instituto Médio de Economia, de Landana, das escolas Jika e Dangereaux, do Sporting e da escola Lombolombo.
O estádio de futebol do Tafe está em reabilitação profunda, para servir de apoio para o CAN’2010. O de Lândana também está a ser reabilitado.
“Estamos a construir um outro estádio, de luxo, no município de Buco Zau, que já está na fase terminal. Vamos construir no município de Cabinda, no âmbito do CAN, outros campos de apoio nas áreas do Mbaca e de Santa Catarina, para além do adjacente ao estádio principal para o CAN”, informa o director provincial da Juventude e Desportos. “Como pode observar, Cabinda está muito bem servida em infra-estruturas desportivas”, acrescenta.
Mas não é tudo. No âmbito do projecto Despontar, sob tutela do Ministério da Juventude e Desportos, Cabinda vai conhecer a construção de 21 campos pelados de futebol. Em todas as sedes municipais e comunais e na maior parte das aldeias está-se a construir pelo menos um campo de futebol.
“De modo a garantir a manutenção contínua e eficiente desses espaços, adoptamos um modelo em que os mesmos serão tutelados pelas administrações municipais, comunais e pelas autoridades tradicionais, no caso das aldeias, mas sempre sob a supervisão do Governo provincial”, diz Inocêncio Júnior.
Muito recentemente foi bastante comentado o facto de as obras do estádio que vai albergar, em Cabinda, as competições do CAN estarem um tanto atrasadas. Isto deveu-se, com base na fonte que vimos citando, a problemas de escoamento de materiais via Ponta Negra, na República do Congo. “O atraso foi de 20 dias, mas, segundo o empreiteiro, já foi recuperado. Nada poderá perigar a realização do CAN’2010 em Cabinda”.

Para lá do desporto

Como é óbvio, o desporto não é a única área de interesse da juventude. No âmbito do programa Angola Jovem, está-se a terraplanar o local aonde serão construídas 150 residências económicas para a juventude. As casas estarão prontas dentro de cinco meses. Serão igualmente construídos dois centros comunitários para a juventude, um em Cacongo e outro em Belize.
Os centros comunitários são uma espécie de casas da juventude em miniatura. São espaços multidisciplinares que abarcam vários serviços, como formação técnica, lazer, desporto, biblioteca e outros, que servem para os jovens aumentarem as suas habilidades técnicas e académicas e melhorar as desportivas.
No município de Cabinda, a par do projecto habitacional será erguida a Casa da Juventude.
Perto de 200 cooperativas constituídas por jovens, nas mais diversas áreas produtivas e profissionais, beneficiaram de financiamentos no quadro do projecto Crédito Jovem. E isto está a resultar. “Já podemos observar, na província, pequenos negócios feitos com base nesse crédito. Isto é um passo bastante positivo. Estão a surgir pequenos empresários jovens que, se forem bem sucedidos no mercado, a breve prazo poderão transformar-se em grandes empresários”, augura Inocêncio Tomás.
A primeira fase do projecto Crédito Jovem, em Cabinda, atingiu um montante de 200 mil dólares, repartidos pelas distintas cooperativas, através do BPC. Aguarda-se que, em breve, a nível central se dê vazão à segunda fase.

quinta-feira, 15 de novembro de 2007

Manuel Rui Monteiro criador da letra do Hino Nacional enfatiza “clima de convicções” reinante aquando da proclamação da independência

Autor, a par do músico Rui Mingas, do Hino Nacional da República de Angola, Manuel Rui é, hoje, um homem inteiramente dedicado a criação literária e à advocacia. Entretanto já exerceu vários cargos políticos e académicos: foi director-geral da Informação e ministro da Informação no Governo de Transição para a independência; ocupou posteriormente outros cargos, incluindo os de director da Faculdade de Letras do Lubango e do Instituto Superior de Ciências da Educação (ISCED); foi também professor universitário. Na breve (e possível) entrevista que se segue, feita através da troca de vários e-mails, Manuel Rui fala das circunstâncias em que surgiu o actual Hino Nacional, num clima, afirma ele, “pleno de convicções”, apesar da “extrema tensão” e dos bombardeamentos. Por outro lado, lançando um olhar sobre o tempo transcorrido desde 1975, o escritor afirma que “o desenvolvimento macro nem sempre se inscreve na diminuição da desigualdade que parece cada vez maior entre ricos e pobres”. Pelo que, aduz, “há que inventar mudanças que beneficiem a todos”.

Isaquiel Cori

Jornal de Angola - Em que circunstância concreta foi criada a letra do Hino Nacional, por muitos considerada uma das mais perenes e bonitas do Mundo?
Manuel Rui - Em circunstâncias de extrema tensão, os bombardeamentos, a hipótese de, em ultima análise e se os blindados entrassem em Luanda, recorrer-se à guerrilha urbana mesmo com coktails artesanais, mas também num clima pleno de convicções.
JA - Como é que Manuel Rui é convidado a escrever o Hino?
MR - ... A estória e a história é que houve um concurso com aquelas regras todas dos envelopes com os pseudónimos, etc. O concurso foi dirigido pela dra. Paulette Lopes que vocês deviam ouvir e outras que funcionavam no Ministério da Informação. Levadas as cassetes ao Comité Central alargado, foi escolhido um hino que seria da autoria de um jovem, mas mesmo assim sob reserva e logo se decidiu, que Rui Mingas e eu fizéssemos outro. No entanto ocorreu que tivera havido uma troca involuntária de envelopes e o tal hino era de autoria de duas pessoas consideradas pessoas não gratas, ex-colaboradores disto ou daquilo, eu havia saído do Huambo para estudar em Portugal e mal conhecia Luanda e suas makas. Então deixou-se de pensar em alternativa mas numa necessidade imediata de Rui Mingas e eu fazermos o hino.
JA - Quem os convidou?
MR - Bem, não foi um convite, foi o cumprimento de uma decisão.
JA - É verdade que a criação literária, para ser feliz (conseguida) deve nutrir-se de circunstâncias de crise?
MR - Nem sempre. Tudo depende do empenho, do talento e do estado de espírito.
JA - Qual é o seu sentimento, hoje, em relação ao Hino Nacional, quando o ouve (ou canta)?
MR - De algo que não me pertence, principalmente, quando é cantado no basquete e no futebol e a selecção ganha. Choro de alegria.
JA - Hipoteticamente, se ainda não tivesse escrito o Hino em 1975 e o convidassem hoje, em 2007, para escrevê-lo, consideraria a possibilidade de o fazer?
MR - Talvez não.
JA - Eventualmente provocatório: alguma vez pensou em pedir direitos de autor pelo Hino Nacional?
MR - Não, nem às enciclopédias que o publicam em cê-dês. Essas coisas não se pedem. Recebem-se quando nos dão. É como os carros e casas que de vez em quando aqui se oferecem... a mim nem um farolim nem um tijolo.
JA - O que lhe vem à memória quando se lembra do momento exacto da proclamação da independência, no Largo 1º de Maio?
MR - Um rol de ingenuidades que nos fez sonhar e valeu a pena, apesar dos pesares.
JA - A escrita de Manuel Rui é considerada um dos paradigmas da angolanidade literária. Acredita que os 32 anos de independência tornaram os angolanos mais angolanos?
MR - Acho que só há angolanos angolanos e a questão da identidade é uma questão de cada pessoa. Cada um é que sabe porque é que se sente angolano.
JA - O crescimento económico, as amplas perspectivas de reconstrução nacional e de desenvolvimento económico, a avalanche de investimento estrangeiro, e não só, colocam Angola diante da oportunidade histórica de dar um conteúdo económico e social à independência, ou colocam-na diante do risco de perder-se no dinamismo da globalização?
MR - O desenvolvimento macro nem sempre se inscreve na diminuição da desigualdade que parece cada vez maior entre ricos e pobres. Há que inventar mudanças que beneficiem a todos e também a globalização é um novo perigo, como um pacote de dogmas que não se conhece mas se apregoa... foi assim com o socialismo científico.
JA – Que pressupostos teria essa “invenção” de mudanças? Acha que as soluções teóricas (doutrinárias) actualmente existentes não resolvem o problema da desigualdade social? Há que ter a ousadia de “inventar” novas utopias?
MR – Claro que não resolvem. E o problema não é inventar novas utopias, que as utopias nunca foram inventadas como a penicilina ou a pólvora, mas foram e continuam a ser intoleradas como a impermissibilidade do sonho, de Júlio Verne, ou o sonho lunar e quando em prática, nas revoluções vitoriosas, não as deixam florir ou, de repente, pela mão e voz dos seus autores, se transformam em novas tiranias, por cristalização do poder que não aceita a mudança e impede o pensamento negando aquilo porque se lutou que é a constante mudança, sendo certo que na sociedade, não mudar é morrer... e foi isso, mais ou menos que aconteceu com o comunismo que andávamos a copiar com "maus tradutores". Sempre hão-de aparecer novas teorias para resolver a desigualdade social. O capitalismo, mesmo travestido de neo-liberalismo que entra no circo com o "pseudónimo" de globalização, parece-me que, pela sua origem e postura actual, só fica bem na fotografia para se eternizar como aquele que quer matar a pobreza que criou, inventor das grandes invasões a países pobres, da definição do outro como ser naturalmente escravizado e definir-se como branco só depois de encontrar o negro... já com a "amnistia" das bombas atómicas e outras malfeitorias sempre com a Bíblia e a guerra santa contra os infiés. Vão aparecer pensadores e o mundo vai mudar e coisas vão cair... que já houve coisas que caíram, até sem aparente sentido de legitimidade humana, e que nunca ninguém poderia imaginar.
JA – Quanto à globalização, ela é incontornável… Quem não se adaptar a ela e procurar tirar proveito, corre o risco de ser marginalizado… Quer comentar?
MR – Não comento. Acho que abordei isso quando você me falou a pergunta anterior. Mas é certo que a globalização é acima de tudo excludente.
JA – Qual é a sua visão dos 32 anos de literatura angolana?
MR – Fica difícil responder a isso e que se reporta só à produção literária post-independência quando, até a "Sagrada" de Agostinho Neto é anterior e outras obras desde muito lá para trás. Esta matéria é mais para os críticos e académicos e espero que do Congresso do Rio de Janeiro, a partir do próximo dia vinte, em que deverei estar presente, os críticos e académicos possam apresentar e discutir novidades.
JA – Nesta fase do pós-guerra, de reconstrução do tecido económico e social do país, e de consolidação da democracia, que papel joga ou deveria jogar, a literatura?
MR - A literatura não joga nem deverá jogar, isto é, não deve nem deverá ser um instrumento. Claro que, no passado, ela esteve directa e intrinsecamente ligada à luta de libertação nacional. Neste momento, a literatura é, essencialmente, a arte da palavra escrita, sendo certo que anda alijada ... porque vende mais a revista "Playboy" do que um prémio Nobel. E eu paro de ler um livro para ver um bom jogo de futebol. Aqui íamos entrar num dos chavões das democracias ocidentais que é o das maiorias, mas não quero ir por aí, porque as maiorias estiveram nos inícios e a favor de muitos bandidos... e de Hitler e Salazar... então a maioria das pessoas serão imbecis ou haverá elites estúpidas que ditam o que é bom e o que é mau, será? Mas e aliás, a sua pergunta está cheia de vírus, a saber, pós-guerra, andam a comprar mais armamento, reconstrução do tecido económico e social do país, onde é que anda a Textang, consolidação da democracia, como é que vamos de betão armado... bem e papel higiénico?
JA – O novo momento político, social e económico que se vive em Angola estimula-o, particularmente, no capítulo da criatividade literária?
MR - Escrevo por mim e você não disse qual é o novo momento.

quarta-feira, 24 de outubro de 2007

“Nova” geração versus Nova Angola: o desafio que já não é futuro

O interior do país está aí, ou melhor, aqui, à espera de ser melhor conhecido pelos seus filhos. De Cabinda ao Cunene o país geográfico e cultural é um portento, uma caixa de surpresas e um verdadeiro tónico.
Viajar pelo interior do país é como fazer uma viagem longa e profunda ao interior de nós mesmos, às nossas raízes e à origem daquilo que somos. É impossível contornarmos, nessa viagem, a imensa carga de memória que nos invade, uma memória que está para lá de nós e da nossa vivência: é como se a história de Angola fosse um mar e nele estivéssemos a mergulhar; lugares que passam para lá da vidraça do carro, ou em que parámos por alguns minutos, evocam figuras relevantes da história antiga e moderna, bem como factos a elas associados, e assim vai se construindo, na nossa cabeça, tendo como pano de fundo a paisagem indescritível, toda uma trama que nos eleva e enleva e, mais do que isso, orgulha-nos pelo facto de sermos angolanos e os donos de um país literalmente virgem, em que quase tudo, em pleno século 21, está por começar.
Nem os destroços da guerra, feitos de casas destruídas, viaturas queimadas e tenebrosos avisos de caminhos minados, ou ainda as vívidas cenas contadas por protagonistas sobrevivos de batalhas travadas aqui mesmo, onde estamos, fazem esmorecer em nós a certeza de que este país tem tudo para vencer. A questão chave é apenas esta: que sejamos dignos de tanta riqueza natural e que a saibamos explorar, bem como partilhar os seus frutos.
A paz é um convite ao turismo interno e à recuperação do tempo perdido no conhecimento multiforme do país. Esse mergulho no interior das nossas raízes será assimilado individualmente das mais diversas maneiras, de acordo com a sensibilidade, a mundividência cultural e a idiossincrasia de cada um. Mas dele resultarão, certamente, incalculáveis mais-valias criativas. É de se esperar que, com as imensas possibilidades resultantes do conhecimento de Angola pelos seus filhos (afinal trata-se de um auto-conhecimento), venha a ocorrer um “boom” no domínio da criação artística, e não só: mas estará esta geração, esta geração sacudida, estremecida e quase triturada pela guerra, capacitada para não só captar esta nova Angola mas também cantá-la com elevação, com perfeito domínio dos recursos artísticos e estéticos?
Vejamos o caso da literatura: para se ser um bom escritor, para além da sensibilidade, das emoções apuradas, enfim, do talento e da persistência, é imperioso o domínio da língua em que se escreve e da linguagem literária. Não basta só o talento. O trabalho. Ou o suor. É necessário o domínio da técnica literária. E da história literária.
Estará “esta” geração preparada para captar e cantar a nova Angola, a Angola que emerge não só da penumbra da guerra, mas também, e sobretudo, do choque do passado com o futuro e das transformações ágeis, apressadas, quase nervosas, resultantes da vontade geral, dos poderes instituídos e dos cidadãos, individualmente, que vão no sentido da “recuperação do tempo perdido”, ou, mais prosaicamente, do “ir atrás do prejuízo da história?”
Isaquiel Cori

Oferta de Natal

Tirou do bolso o relógio, uma coroa a um tempo macia e rugosa, com números e ponteiros fosforescentes. Que coisa mais convencional e pretensiosa, pensou. Quanto orgulho e imodéstia, o Homem, essa insignificância no Eterno, querer medir o Tempo? Devolveu o relógio ao bolso, não sem constatar, de esguelha, que eram 22 horas, e limpou o suor da testa com a palma da mão.
Era véspera de Natal e estava preocupado. Os salários, incluindo o décimo terceiro mês, estavam em dia. E as compras atafulhavam a dispensa lá de casa. Este ano, de certo modo, estava facilitado no modo de passar o Natal: o Wilson, o Ney e a Nonó, seus filhos, há uma semana respiravam os ares do Namibe, numas férias encarecidamente solicitadas pela tia e pelos primos. A preocupação residia no Kédy, o filho caçula de três anos. Que presente de Natal daria ao seu querido Kédy? Tão pequeno, tão criança, tão alegre, tão querido!Os brinquedos habituais, aquele jogo de carros, aviões, balões, combóios, barcos, a vida moderna miniaturizada, já não os queria como presentes para o filho caçula. Gostaria de lhe oferecer algo de que ele jamais se esquecesse. Algo que fosse uma experiência inaugural e memorável. Foi quando lhe veio à mente o episódio sensacional do romance de Gabriel Garcia Marquez, “Cem Anos de Solidão”, aquele episódio, dizia-lhe a memória, em que pela primeira vez o jovem Buendia, na longínqua e tropicalíssima Macondo, fora levado a conhecer o gelo. Sim, ofereceria ao Kédy, neste Natal, para lá dos objectos materiais, uma experiência marcante e inesquecível. Lembrou-se que nunca levara o filho a conhecer o mar. Pois então levá-lo-ia, neste Natal, a ver o mar, este princípio, e também o fim, de tudo. Antecipou o prazer da cumplicidade da descoberta pelo filho da dimensão aquática da vida e voltou a tirar o relógio do bolso. Estranhamente, já achou muito natural o facto de o Homem tentar medir o Tempo...
Isaquiel Cori

Aquela chuva em Kambambe...

Por culpa de vivermos em cidades apertadas, com a rede de saneamento básico a rebentar pelas costuras e as estradas esburacadas e quase intransitáveis, fomos imperceptivelmente metendo na cabeça que a chuva é algo que faz mal e quase a “diabolizamos”. Como se ela, uma realidade tão natural e antiga como a Terra, fosse a culpada da impreparação das nossas cidades.
O que seria então de Luanda se recebesse aquela carga de água que recentemente testemunhámos em Kambambe?
Localidade da província do Kwanza Norte, Kambambe, bem pertinho do rio Kwanza, alberga e dá o nome àquela que é a segunda maior barragem hidroélectrica do país, depois de Kapanda. Detentor de um potencial turístico inexplicavelmente inaproveitado ou insuficientemente explorado, Kambambe é um excelente lugar para repousar, meditar e reganhar forças espirituais e físicas para as mais diversas batalhas da vida. Da varanda da Pousada local tem-se uma vista do rio Kwanza que se dobra em cotovelo e das montanhas esverdeadas que lhe servem de moldura, tudo isso, de manhã cedo, enquadrado por um nevoeiro que se vai desfazendo ao correr do dia. O ar é húmido e puro e propicia a respiração profunda.
Pois então foi nesse ambiente calmo e saudável que ocorreu a grande chuva. Caiu sem fazer estragos, sem estrangular fosse o que fosse, completamente integrada no meio e na vida local. Foi uma farta, longa e bela chuva. Uma daquelas chuvas apropriadas para nelas nos banharmos e livrarmo-nos de todas as impurezas físicas e espirituais. Uma daquelas chuvas que nos obrigam a fazer um recorrido de memória e põem-nos ao mesmo tempo tristes e alegres, e fazem-nos pairar, com saudade, na impalpável fronteira entre o passado e o presente, fazendo confrontarmo-nos connosco mesmos. Aquela chuva em Kambambe foi um momento alto, fascinante e inquietante de êxtase e libertação. Aquela chuva em Kambambe...
Isaquiel Cori

Dos livros (II)

Havia um hábito saudável nas escolas secundárias de Luanda, e que terá perdurado até meados dos anos 80, que consistia na troca de livros entre estudantes. Os livros, geralmente romances e novelas, circulavam de mão em mão inicialmente num círculo informal de interessados, até que finalmente desapareciam e raramente retornavam, absorvidos por outros círculos de leitores.
Esse intercambiar de livros proporcionava uma boa variedade de leituras e ajudava a amortecer o custo elevado e a carência dos mesmos.
Hoje é constrangedor ver o que acontece na maioria das nossas escolas. Os professores queixam-se cada vez mais das crescentes dificuldades dos alunos assimilarem as matérias, o que é geralmente explicado pela também crescente incompetência linguística dos educandos. Ora, tudo isso, para além de outros factores que os estudiosos da coisa social saberão melhor explicar, deve-se obviamente ao enorme défice de hábitos de leitura.
Mas essa carência de hábitos de leitura não derivará igualmente de uma certa maneira elitizada como se vem encarando em Angola o fenómeno da produção de livros? Por que razão a produção de livros há-de ser apenas apanágio dos escritores e dos académicos?
Os livros que são editados, se não são “técnicos” ou “científicos” enquadram-se (em muitos casos pretensamente) na literatura entendida como arte. Mas esse leque de ofertas editoriais claramente não satisfaz nem cativa todos os potenciais leitores. O que aconteceria se por exemplo um ex-atleta como Jean-Jacques fosse encorajado a escrever (ou a mandar escrever) e publicar a sua biografia e as suas memórias de atleta de sucesso nacional e internacional? E, ainda, se viesse a público, em livro, uma grande reportagem sobre o fenómeno do feiticismo em Angola? Ou se um determinado músico popular contasse em livro a história das suas canções?
Está claro que mais contingentes de cidadãos seriam atraídos ao mundo da leitura.
Isaquiel Cori

Dos livros I

Face a emergência das chamadas novas tecnologias de informação, cogitou-se, pelo mundo fora, a possibilidade da morte do livro enquanto suporte de informação e conhecimento. A literatura, como arte, estaria igualmente em perigo, a não ser que se adaptasse ao novo contexto tecnológico.
Passam-se os anos e entretanto o livro, apesar da enorme concorrência que lhe faz a Internet, em todo o mundo continua a ser um meio incontornável de acesso aos vários saberes.
Mas o que particularmente fascina nos livros é a sua capacidade de retenção e difusão da cultura. O livro, aparentemente objecto, a partir do momento em que é folheado e lido passa a ser um sujeito activo de influência cultural. Assim, dezenas, centenas ou mesmo milhares de anos, épocas, sociedades e pessoas de cuja existência material talvez só reste mesmo como prova a referência contida no próprio livro, como num acto de magia voltam a ganhar vida através deste gesto tão simples, mas carregado de plena soberania e autodeterminação, que é o gesto da leitura.
Um gesto que propicia o prazer e uma melhor compreensão do mundo, da vida e de nós mesmos. E que, por outro lado, é um campo aberto aos afectos.
As pessoas que não sabem ler jamais saberão verdadeiramente o quanto perdem. Mas já é, no mínimo, paradoxal, haver pessoas que saibam ler e desperdicem a oportunidade que têm de entrar directa e pessoalmente em comunhão com uma fatia que seja da herança cultural humana e intemporal patente nos livros. E mais do que paradoxal já chega a ser mesmo uma atitude de irresponsabilidade quando tais pessoas vedam ou não fazem nada para que os seus filhos tenham acesso ao livro.
É que na verdade a formação integral dos cidadãos passa pelo acesso ao livro e pelo cultivo do gosto da leitura. E como já estamos na “antecâmara” da quadra festiva de fim de ano, talvez fosse bom pensarmos já em traduzir e concretizar a nossa afectividade uns para com os outros através da oferta de livros.
Isaquiel Cori

sábado, 13 de outubro de 2007

Similitudes entre o projecto "Andar o país" e o Movimento Vamos Descobrir Angola

O projecto de reportagem jornalística "Andar o país", idealizado pela Rádio LAC - Luanda Antena Comercial, e que visa calcorrear cerca de quinze províncias do país, tem um alcance de tal modo transcendente, que, certamente, ficará marcado nos anais do jornalismo angolano.
É uma tentativa de redescoberta do interior do país, da Angola Profunda, se quisermos, ao longo de dezenas de anos de guerra entregue à sua própria sorte. É também uma tentativa de tomar contacto com a visão das populações interioranas relativamente ao todo nacional e aos poderes centrais que as governam.
O projecto "Andar o país", pela sua concepção e alcance, apresenta ressonâncias e analogias com o ideário do Movimento Vamos Descobrir Angola, que, na década de 1950, levou alguns jovens intelectuais angolanos, entre os quais Agostinho Neto, Mário Pinto de Andrade, Viriato Cruz, e outros, a questionarem os valores que lhes eram impostos pela sociedade colonial e a orientarem-se na descoberta e promoção dos valores da terra, autóctones, dando assim um substracto teórico à angolanidade.
Seria bom que os profissionais envolvidos se imbuissem de uma perspectiva despreconceituosa e fizessem o seu trabalho com o sentimento de quem, verdadeiramente, está à descoberta de uma realidade desconhecida, que, entretanto, o pode enriquecer enquanto ser humano e, mais especificamente, angolano.
Pena é que, sem desprimor pelas qualidade profissionais dos jornalistas que fazem parte do projecto, a maioria dos órgãos de comunicação social integrantes da caravana não tenham enviado os seus melhores repórteres. O que revela uma miopia inicial, na forma como encaravam o projecto. Oxalá que os jornalistas consigam, também, elevar-se da visão instantânea, imediata, da realidade, e possam colher elementos e impressões de que possam resultar livros, seja de carácter jornalístico, literário ou, eventualmente, científico. Parabéns à LAC pela iniciativa e, aos profissionais envolvidos, que estejam à altura do desafio.
Isaquiel Cori

segunda-feira, 8 de outubro de 2007

Pré-Publicação: Extracto (brevíssimo) de um romance


O que a seguir podeis ler é um extracto de um romance meu, "O Último Recuo", que será publicado no primeiro semestre de 2008:
“João Segura tinha de comer. Levantou-se e pôs-se a caminhar pelos becos. Alcançou o que se poderia considerar uma rua: uma longa passagem de dois metros de largura que cortava o bairro todo e onde se localizavam, iluminadas pelas luzes tremulantes dos candeeiros a petróleo, as vendedoras de “pão-burro”, chouriço em fatias, milho assado na brasa, mabanga cozida e outras iguarias. Estava confiante que apesar de não ter dinheiro alguém conhecido lhe daria algo para comer. E tinha razão. Ajudado pela boa disposição, que até a ele próprio surpreendia, abraçou a Maricas, que vendia “pão-burro” de ontem.
- Minha comadre, como vai a vida? As crianças já melhoraram?
- A mais velha está mbora cada vez pior. O negócio não está a andar e já nem sei o que fazer. Só Deus é que sabe.
- Deus sabe mesmo. Todo o sofrimento acaba. É só ter paciência e continuar a trabalhar. Bumba só, minha kota, não dá muita confiança. A boa vida é já amanhã.
- Esse mano Segura também! Come então ainda um pão. É mbora de ontem, não faz reparo.
- Obrigado, minha mana.
Ela não sabia que o pão seria o seu jantar. O pão sabia a mofo, era como se estivesse a mastigar uma esponja suja de lavar a loiça. Mais do que comer tinha a sensação de que o pão lhe estava a lavar a boca, o esófago e o estómago. Até sentia o roçar irritante dos pedaços contra as paredes dos órgãos internos. Fez um esforço para não vomitar, pois não tinha a certeza de quando voltaria a meter qualquer coisa na boca. A fome era tanta que naquele momento comeria até mesmo uma pedra.
A noite escapava-se pelo seu olhar e tornava-se mais escura à medida que mastigava o pão. Via em redor, entre a escuridão debilmente rompida pela luz fumarenta dos candeeiros, muitos adolescentes e até mesmo crianças, à compra de pão e chouriço. Via também, por trás das filas das vendedoras, dezenas de adultos, homens e mulheres, sentados em cadeiras de plástico, que bebiam cerveja e vinho, petiscavam pincho de porco, falavam aos gritos e riam com toda a alegria das suas vidas. Envoltos que estavam na barulheira da pracinha, naquela atmosfera pesada de fumo que vinha dos candeeiros a petróleo e dos grelhados de pincho, aqueles bebedores nocturnos pareciam saídos directamente de um quadro de Gumbe: até o vórtice característico do estilo deste pintor parecia presente nas volutas de fumo branco e escuro que subiam para o céu.
- Não fala nada, mano Segura? Estás buamado com o ambiente?
- Às vezes me acontece. Fico a ver as coisas tipo não estou aqui. Ou então fico a ver as coisas tipo já vi essas coisas há bué de tempo...
- Fica com atenção, mano Segura. Muita gente então está a ficar maluco. Diminui ainda lá um pouco no quente.
- Por enquanto é o meu girabola. Cada um bebe como pode. Um dia vou subir de divisão.
- Já conseguiste trabalho de verdade?
- Nada, minha mana. Continuo mesmo a trabalhar de roboteiro nos “Transportes”.
- Quanto é o pão com chouriço? - A Maricas perdeu-o de vista, de repente rodeada por quatro clientes impacientes.
Ele afastou-se e penetrou num beco ainda mais estreito que o do mercado. Transpôs a porta de um quintal de chapas de zinco amachucadas, onde encontrou um grupo ruidoso de homens e mulheres a beberem kaporroto e kimbombo e a fumarem cigarros sem parar, sentados num longo banco corrido. No centro do quintal situava-se uma barraca de velhas chapas de zinco. Num dos cantos via-se um reduzido cubículo, que, pelo cheiro forte e nauseabundo a urina, vômitos e fezes, era certamente a casa de banho. Evitou a fossa, cuja tampa parecia render-se cada vez mais à força de gravidade do buraco, e avançou rapidamente para o centro do quintal, onde foi calorosamente cumprimentado por uma mulher.
A mulher era magra. Tinha o rosto atravessado por inumeráveis rugas entrecruzadas e uns lábios secos que quase desapareciam na boca. Cobrindo-lhe a cabeça tinha uma peruca castanha que, mal assente, descobria uma parte dos seus maltratados cabelos.
- Só agora, meu bem? Tenho estado à tua espera desde manhã”.
Isaquiel Cori


sexta-feira, 5 de outubro de 2007

A vertigem do Poder Judicial angolano


A liberdade, os direitos e garantias dos cidadãos, constitucionalmente garantidos, estão expostos, como nunca antes, ao escrutínio público, face a algumas sentenças exaradas por instâncias do poder judicial angolano. A condenação a quatro anos e meio de prisão de Fernando Miala, e, mais recentemente, a oito meses, do jornalista Graça Campos, director do Semanário Angolense, levanta a questão da independência do poder judicial e da impacialidade, ou não, da justiça em Angola. A credibilidade de todo o sistema judicial está a ser posta em causa.

Ora, a crise do sistema judicial angolano já começou há muito tempo. No sistema de Partido Único, que vigorou da Independência até 1991, os tribunais dependiam, nas suas decisões, do partido no poder. Os juízes só o eram porque pertenciam ao Partido. Com a mudança de regime ocorrida, constitucionalmente mudou-se o quadro, mas é claro que ainda existem sequelas de tutela político-partidária, se não formal, pelo menos emocional e sentimental: as pessoas não se reconvertem como as fábricas ou outra actividade económica. Esta é uma questão de fundo. Mesmo que não existam directivas explícitas, provindas do poder político, no sentido de influenciar este ou aquele juiz, estes, quando têm de decidir num julgamento com implicações políticas, naturalmente que, no âmago de si mesmos, prescrutam a respeito do que as instâncias políticas, de que foram formalmente membros durante vários anos, pensam, ou melhor, a respeito do que estas instâncias deles esperam.

Aí está a raiz da falta de independência e da questionável imparcialidade do sistema judicial angolano. Grande parte dos juízes acham-se tributários, pela sua história e por aquilo que são, do poder político. Ademais, Angola não tem uma tradição de liberdade plena.

A independência que a lei atribui aos juízes, tendo em conta a história do sistema judicial angolano, com muitos dos actuais magistrados judiciais detentores de um passado de militância activa no partido no poder, coloca estes cidadãos numa pesada situação de vertigem, num país em que a liberdade ainda é criança e está a dar os primeiros passos.

Isaquiel Cori

quarta-feira, 3 de outubro de 2007

Basta de ser testemunha


Eis-nos aqui, hoje, no nosso tempo. Estamos vivos. E queremos lançar a nossa pedra no edifício da época que nos compete viver. Basta de sermostestemunhas. Também nos queremos partícipes, feitores da nossa existência.

Nesta tribuna caberá de tudo um pouco. Gota a gota, ou em catadupa, de rompante ou por via de um parto lento e doloroso, as nossas ideias aqui estarão, sem auto-censuras, livres, mas honestas e responsáveis. Não nos impomos limites no tratamento das questões. Da literatura à política, da música às artes plásticas, do sério ao cómico, do sagrado ao profano, do real ao ficcional, os nossos textos terão como substracto Angola, o país e as suas gentes, o passado, o presente e o futuro desta realidade impossível de separar do nosso ser. Mas também não deixaremos de lançar um olhar acutilante ao que se passa no Mundo, pois, muito do que nos afecta, aqui, no nosso recanto, foi gerado nessa dimensão chamada Mundo.

Estaremos abertos à partilha de ideias e de pontos de vista. Queremos nos enriquecer com a experiência de quem divide connosco a existência neste Mundo de hoje, nesta época que nos coube viver. Simbolicamente, procuraremos estabelecer uma ponte com o passado e com aqueles que, não estando já vivos, deixaram um rasto de vida, um contributo perene para a continuidade física e espiritual da espécie humana.

Isaquiel Cori